Em O Deus da Sacanagem, Gonçalo Junior resgata vida e obra do quadrinista Carlos Zéfiro, o grande pornógrafo responsável pela educação sexual dos jovens nos anos dourados
Se hoje em dia falar de sexo por aí tá dando problema, imagina nos anos 1950 e 60, quando a repressão era muito maior.
Mas como se diz por aí, proibido é mais gostoso.
Daí o imenso sucesso das revistinhas pornográficas de Carlos Zéfiro (1921-1992), responsável pela edução sexual de gerações inteiras de brasileiros.
Agora, o premiado jornalista baiano Gonçalo Junior resgata a figura, a obra e a época do cultuado quadrinista carioca na biografia O Deus da Sacanagem: A Vida e o Tempo de Carlos Zéfiro.
Gonçalo, pode-se dizer, é um especialista no assunto – quadrinhos e mercado editorial, bem entendido.
Ele é autor de duas obras de fôlego, já consideradas clássicas: A Guerra dos Gibis: A Formação do Mercado Editorial Brasileiro e a Censura aos Quadrinhos, 1933 - 1964 (Cia. das Letras, 2004) e A Guerra dos Gibis 2: Maria Erótica e o Clamor do Sexo: Imprensa, Pornografia, Comunismo e Censura na Ditadura Militar, 1964 - 1985 (Peixe Grande, 2010).
Difícil, portanto, pensar em nome mais adequado para biografar Carlos Zéfiro.
O fato é que, em uma época em que as moças não davam antes do casamento, gays e lésbicas não ousavam sair do armário e a pornografia era proibida, qualquer informação sobre sexo – literária ou visual – era muito preciosa.
Nesse contexto, Zéfiro, além de ter ajudado a “aliviar” a tensão sexual da rapaziada abafada, também mostrou a muitos, que até então nunca viram uma mulher pelada (ou um homem nu), a como se comportar na hora do proverbial “rala & rola”.
Outro fator de atração por Zéfiro foi o mistério acerca da própria identidade do pornógrafo: somente em 1991, graças a uma reportagem do consagrado Juca Kfouri para a revista Playboy, os brasileiros ficaram sabendo que Zéfiro era o pseudônimo de Alcides Caminha, um pacato funcionário público, pai de cinco filhos.
“Zéfiro, creio, foi mais que um desenhista de quadrinhos pornográficos. Ele se inseriu no imaginário sexual masculino nas décadas de 1950 e 60 como um artista transgressor da moral e dos costumes, ao mesmo tempo em que serviu de orientador sexual e amoroso”, afirma Gonçalo.
“Some-se a isso todo o mistério que rondou sua identidade. Daí a decisão de biografa-lo”, conta.
Identidade secreta
Como em qualquer outro de seus livros, Gonçalo não se limita a contar, de forma cronológica, a vida do seu biografado.
Em Deus da Sacanagem, ele já começa buscando as origens de Zéfiro no Brasil Império, época de fundação da Farmácia Granado, onde o pai dele, Aurélio Caminha, arrumou emprego.
Nascido em 1921, Alcides / Zéfiro sempre demonstrou jeito para a arte: desde pequeno, enchia cadernos com mulheres e homens pelados em ação.
Ligeiramente hiperativo, jogava futebol (quase se profissionalizou), consertava eletrodomésticos e chegou mesmo a tentar a carreira de cantor.
Em 1948, um amigo que sabia de suas habilidades de desenhista lhe pediu que copiasse os desenhos de uma revistinha erótica italiana.
Ele e o amigo gostaram tanto do resultado que, em breve, ele estaria criando e desenhando as próprias historinhas de sacanagem – depois rodadas em gráficas clandestinas e distribuídas pelas bancas do Rio de forma discreta, para não chamar a atenção da polícia.
Em questão de poucos anos, suas revistas seriam distribuídas para todo o Brasil, para a alegria de jovens e velhos, solteiros e casados.
Ainda assim, sua identidade permaneceria oculta por décadas – e até mesmo um outro artista, Eduardo Barbosa, chegou a assumir seu nome.
No entorno da história de vida de Zéfiro, Gonçalo vai construindo também a história da indústria da pornografia no Brasil, a qual se confunde com a própria evolução do comportamento sexual do brasileiro.
“Meu livro tem algo imprescindível ligado à história da sexualidade no Brasil: um inventário inédito sobre a pornografia impressa ao longo do século 20. Isso foi necessário para situar toda rebeldia e ousadia de Zéfiro”, afirma.
Apesar de ligeiramente machistas, suas HQs traziam detalhes importantes: o sexo sempre era consensual, fruto de sedução e carinho.
Mais importante ainda: o prazer da mulher era valorizado.
“Zéfiro orientava a rapaziada a como conquistar uma mulher e a lhe dar prazer. Foi um professor nesse sentido. As feministas que jogam pedra nele nunca leram uma história sua. Hoje, ele passaria em branco, com tanta pornografia ‘mais atraente’ nas rede sociais. De qualquer modo, nossa moral é hipócrita”, pontua Gonçalo.
Nada mal para um funcionário público que escondia de todo mundo – inclusive da própria família – o que fazia na calada da noite em um quartinhos dos fundos de sua casa.
Simbólico de Brasil, sem dúvida. “Sim. Sem dúvida. Mas ele vivia sob o temor e o risco de ser descoberto e preso. Parece contraditório quando lembramos que ele levou a pornografia ao limite máximo de provocação”, sustenta.
Outro dado muito curioso sobre Caminha / Zéfiro é que ele é coautor (com Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito) de um clássico da música popular brasileira, A Flor e o Espinho, aquela dos imortais versos “Tire o seu sorriso do caminho / Que eu quero passar com a minha dor”, gravada por grandes nomes da MPB.
A vida de Zéfiro entre os bambas do samba nos botecos do centro do Rio também é ricamente descrita por Gonçalo: “Ele entrou no mundo da música como forma de tentar aumentar sua renda, pois tinha cinco filhos para criar. Com o que passou a ganhar com as revistinhas, deixou a música. Mas ele adorava escrever poesias e letras”, conta.
Hiperativo como seu biografado, Gonçalo tem mais duas biografias imperdíveis programadas para lançar ainda em 2019: “Espero lançar, finalmente, a biografia do Bandido da Luz Vermelha e estou finalizando a de Jacob do Bandolim”, conclui.
O Deus da Sacanagem: A vida e o tempo de Carlos Zéfiro / Gonçalo Junior / Editora Noir/ 384 p./ R$ 59,90/ www.editoranoir.com
Um comentário:
Chico, ouve isso aqui: https://www.youtube.com/watch?v=Bq3AFyNyk1M
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