domingo, julho 15, 2018

JUNTOS E SEPARADOS

Edu Lobo, Dori Caymmi e Marcos Valle releem obras uns dos outros em belo álbum conjunto. Cada um na sua, gravaram pérolas dos repertórios alheios

Edu, Marcos e Dori na foto de Clara Nascimento
Membros do primeiro escalão da MPB e setentões, Edu Lobo, Dori Caymmi e Marcos Valle são homens de outro tempo, de outro século.

Essa característica meio que marca  seu primeiro (e belo) álbum conjunto, Edu Dori & Marcos.

Amigos de longa data – há mais de 50 anos – os três cantores / compositores até já chegaram a formar um trio lá nos anos 1960, mas de rápida duração e sem registro fonográfico.

Antes tarde do que nunca, o álbum lançado agora pela Biscoito Fino é bem-vindo.

O reencontro musical foi em 2016, quando Marcos Valle fez dois shows (Rio e SP) em parceria com a cantora norte-americana Stacey Kent.

“Aí o Marcos nos convidou para participar. Acontece que a Sônia,  irmã do Edu (Lobo)  trabalha com a Kati Almeida Braga, da Biscoito Fino. A Kati se interessou em fazer o disco e cá estamos nós”, conta Dori Caymmi por telefone, do Rio.

Com suas vozes intactas, cada membro do trio gravou quatro músicas cada, com duas regras valendo.

Primeira: cada um grava composições dos outros dois.

Segunda regra: não houve encontros no estúdio entre os três. Cada um arranjou, produziu e  gravou suas músicas escolhidas do próprio jeito, sem qualquer interferência dos outros dois.

“A deia é que ninguém ia tomar conhecimento do trabalho do outro. Então o disco traz a visão de cada um a respeito das músicas do outro. E chegamos à conclusão de que seria assim mesmo. Cada um decidiu seu repertório, seu arranjador e seus músicos”, detalha o filho do meio de Dorival.

O repertório, escolhido a dedo, evita lugares-comuns e é primoroso. Edu canta pérolas como Na Ribeira Deste Rio (poema de Fernando Pessoa musicado por Dori) e Viola Enluarada (dos irmãos Marcos e Paulo Sérgio Valle).

Dori bota seu vozeirão a serviço de  Bloco do Eu Sozinho (Marcos Valle e Ruy Guerra) e Na Ilha de Lia No Barco de Rosa (de Edu Lobo e Chico Buarque).

E Marcos Valle vai de Canto Triste (de Edu e Vinícius) e Alegre Menina (de Dori, com letra de Jorge Amado).

Nos arranjos, ênfase nas cordas, sopros e percussão sutil. O resultado são doze faixas que escorrem calmas como as águas  de um regato, massageando ouvidos e coração.

“Não sou de música animada, então procurei gravar as composições mais tranquilas do Edu e do Marcos, como  Na Ilha de Lia No Barco de Rosa e Dos Navegantes (ambas de Edu)”, conta Dori.

“Em algumas delas cabia umas cordas. Por mim, faria com uma  formação enorme (de músicos), mas não tinha dinheiro pra isso, então  fiz com um quarteto  de cordas nas músicas do Edu e outro de  sopros nas do Marcos”, detalha.

Interação, não!

Apesar do resultado inegavelmente bonito, o método “cada um na sua” adotado pelo trio resultou também em uma certa frieza – algo que não passou despercebido pela crítica.

“A  imprensa em geral achou que deveríamos ter interagido. Eu acho essa palavra – interação – um lixo. Achei que a liberdade de fazer o que pensa da música do outro era mais importante”, afirma Dori.

“O disco ficou legal e nós não interagimos talvez por que eu não gosto da palavra. Eu não interajo”, acrescenta o músico, caindo na risada.

A possibilidade de incluir pelo menos uma faixa cantada pelos três juntos chegou a ser aventada, mas, infelizmente, não avançou.

“Chegamos a cogitar, mas aí era complicado. Que música vamos cantar? Se for do Edu, preocupa Marcos e Dori. E daí por diante”, conta.

“Aí para ser de outra pessoa tinha a ideia de ser uma do Tom (Jobim), que era nosso mentor, mas isso morgou logo, não vingou. Então não levamos adiante essa coisa de interagir”, crava Dori.

Se não se encontraram no estúdio, que tal então um encontro ao vivo – de preferência no palco do Teatro Castro Alves, em Salvador?

“(Uma possível série de shows) Ainda esta em discussão, o pessoal está procurando fazer. O Edu já disse que não quer fazer show em lugar com mesa pra nego beber e comer croquete. Nosso som é coisa para teatro. Sentar e apreciar em silêncio”, conclui.

Edu, Dori e Marcos / Edu Lobo, Dori Caymmi e Marcos Valle / Biscoito Fino / R$ 34,50

quarta-feira, julho 04, 2018

MEMÓRIAS DO MACHISMO ESTRUTURAL

Influente ativista, a escritora colunista do The Guardian  Jessica Valenti teve lançado no Brasil seu livro Objeto Sexual: Memórias de uma Feminista

Jessica Valenti. Foto Leslie Hassler / divulgação
Norte-americana – de ascendência italiana –, casada e com uma filha, a jornalista e escritora  Jessica Valenti poderia muito bem passar por uma dona de casa tradicional, não fosse ela uma das representantes mais visíveis do feminismo na mídia de língua inglesa.

Colunista da edição on line do tradicional jornal britânico The Guardian, Jessica teve seu livro de memórias recentemente lançado no Brasil, via editora Cultrix: Objeto Sexual: Memórias de uma Feminista.

Ousado, o livro traz um relato em primeira pessoa sem amarras: Jessica conta sobre as (várias) vezes em que foi assediada ou abusada – um homem ejaculou em sua calça no metrô quando era adolescente –, sobre abortos, sobre os namorados que teve  e também uma fase mais farrista, em que curtiu usar drogas.

Desta forma, este é, como o título já deixa  claro, rigorosamente  um livro de memórias. Portanto não é o caso de se procurar aqui as ideias e teorias acerca do feminismo desenvolvidas por Jessica.

Suas ideias podem ser encontradas nos livros em que escreveu, como Full Frontal Feminism: A Young Woman's Guide to Why Feminism Matters (Feminismo Total: O Guia de Uma Jovem Mulher Sobre Porque o Feminismo Importa), He's a Stud, She's a Slut, and 49 Other Double Standards Every Woman Should Know (Ele é Pegador, Ela é Vadia e Outros 49 Casos de Dois Pesos e Duas Medidas que Toda Mulher Deveria Conhecer) e The Purity Myth: How America's Obsession with Virginity Is Hurting Young Women (O Mito da Pureza: Como a Obsessão da América pela Virgindade Está Ferindo as Jovens), entre outros – além dos seus artigos.

Linhagem de vítimas

Filha de um casal de comerciantes de roupas de Nova York, Jessica descobriu bem cedo que, para muitos homens, ela não passava de um “objeto sexual”.

Aos doze anos, um homem lhe exibiu o pênis em um vagão de metrô.

Ao contar o fato em casa, soube de sua mãe que, tanto ela quanto sua avó e suas tias já haviam passado por  episódios semelhantes, alguns mais ou menos graves.

Conclusão: as mulheres formam uma linhagem de vítimas de violências – grandes ou pequenas –  que se sucedem, geração após geração.

“Mas pior do que o abuso em si era a aterradora compreensão do que significava ser do sexo feminino: não era uma questão de se algo ruim aconteceria, mas de quando e de quão ruim seria”, escreve.

“A frequência com que as mulheres da minha família sofreram abuso ou foram agredidas sexualmente tornou-se uma mensagem com luzes piscantes codificada em nosso DNA: Me. Machuque”, percebe a escritora.

Nos anos seguintes, Jessica apenas viu aumentar a frequência com que era ofendida e humilhada, especialmente por ser uma mulher sexualmente ativa e envolvida no movimento feminista.

Já na faculdade, após dormir com um rapaz, um preservativo usado foi pregado à porta do seu dormitório, acima da palavra “vadia” rabiscada.

Foi o primeiro de muitos.

Já atuando no movimento feminista, um (supostamente) conceituado repórter político escreveu e publicou um artigo inteiro apenas sobre seus seios, a partir de uma foto sua ao lado de Bill Clinton.

Depois de fundar, com uma amiga, o site Feministing, foi que a coisa piorou de vez. Passou a receber constantes ameaças de morte e estupro – ameaças estas que foram estendidas à sua filha, Layla (hoje com sete anos) mal ela havia nascido.

Ainda hoje, Jessica recebe ofensas e ameaças em ritmo diário, conforme ela mesma nos conta nesta entrevista exclusiva, concedida por email, ao Caderno 2+.

ENTREVISTA COMPLETA: JESSICA VALENTI: “Não há nenhuma boa razão para não abraçar a igualdade entre homens e mulheres”

Porque a senhora acha que algumas pessoas tem tanta raiva do feminismo?

Jessica. Ft Brendan Bush (Roanoke College Wikicommons)
Acho que as pessoas que tem raiva ou não entendem o que realmente é o feminismo ou estão muito conectadas ao sistema patriarcal que mantem as mulheres por baixo. Não há nenhuma boa razão para não abraçar a igualdade entre homens e mulheres.

Como é ser uma feminista no governo Trump? Pior do que no governo Obama?

Muito pior, porque tudo se tornou muito mais urgente e muitos avanços que tivemos no governo Obama foram anulados. Fora da política, também tem a incrível mudança cultural que tem sido tão anti-mulheres – toda essa gente sexista e racista que estava calada até alguns anos atrás se tornou muito mais ousada.

Você não se preocupou em falar tão abertamente (no seu livro) sobre sexo e drogas em uma época tão (falsamente) moralista? Ou devemos falar mais sobre sexo e drogas justamente por vivermos nesta época?

Não me preocupei muito - era apenas a verdade. Também acho que existe uma preocupação a mais quando mulheres escrevem sobre esses temas. Homens tem escrito sobre sexo e drogas desde sempre, e isso jamais foi considerado controverso.

Quais são as maiores mentiras (ou fake news) sobre o feminismo que acabam servindo para voltar as Pessoas contra a causa?

Acho que um dos maiores mitos sobre o feminismo é que odiamos os homens, ou que queremos destruir a família. A verdade é que os homens se beneficiariam do feminismo em suas vidas.

O que você diria às mulheres que não se identificam com o feminismo?

Não acho que todo mundo é, ou deva ser, feminista. A mim parece um pouco derrotista não se envolver com o feminismo, mas a verdade é que precisamos de pessoas apaixonadas e seguras de si no movimento.

A senhora ainda recebe ameaças e insultos? Já processou alguém?

Não processei ninguém, mas obrigada pela ideia. Recebo ameaças e assédio todos os dias, isso se tornou parte de minha vida, o que é bem triste.


O feminismo teve muitas vitórias no século passado, desde o direito ao voto. Qual você diria ser a próxima grande conquista do movimento no século 21?

Ótima pergunta! Acho que a próxima batalha é garantir que meninos não cresçam como sexistas. Já fizemos um desserviço à inúmeros jovens permitindo que fossem doutrinados pela misoginia.

Seria lícito acreditar que o feminismo beneficiaria não apenas às mulheres, mas também aos homens, ao livra-los de tantos papeis pré-determinados?

Exatamente. Existem tantas possibilidades para os homens, mas eles não acham que o movimento lhes diz respeito. Essa é uma das maiores mudanças que precisamos fazer.

Objeto Sexual: Memórias de uma Feminista / Jessica Valenti / Cultrix/ Trad.: Jacqueline D. Valpassos/ 232 p./ R$ 37

terça-feira, julho 03, 2018

SOLITÁRIO, PORÉM COMUNICATIVO

Túlio Augusto faz pausa no Doutorado em Aveiro para dois shows no Gamboa Nova


Túlio Augusto, foto Estúdio Kryna
Membro de uma brilhante geração de artistas gestada na Escola de Música da Ufba, a geração OCA (Oficina de Composição Agora), Túlio Augusto bateu asas de Salvador há alguns anos para morar em Portugal, onde agora cursa Doutorado em Composição na Universidade de Aveiro.

Este mês, Túlio retorna à Bahia para visitar família e amigos, além de trazer seu novo show, Solitário, à cidade.

Serão dois domingos no Teatro Gamboa Nova: 15 e 22.

No show, o mesmo que ele apresentou em uma turnê pela Galícia (região entre Portugal e Espanha) em março e abril, Túlio se apresenta sozinho, tocando guitarra e gaita.

O som é uma releitura jazzística e muito pessoal de um gênero popular: o blues.

“O formato solo é, por si só, inusitado. Pouca gente tem coragem de encarar. Deixa aparecer muitas das nossas falhas que ficariam mais escondidas quando se toca em conjunto, além de exigir muito esforço técnico e concentração”, observa o músico, por email.

Apesar de se apresentar sozinho em um show instrumental, Túlio afirma não ser esta uma viagem tão solitária quanto o título deixa transparecer.

“Há pessoas que não se importam com as expectativas do público ou se dispõem a ouvi-lo. Acho isso um grande erro. A arte acontece pela comunicação. Não ouvir o que o público tem a dizer é como fazer um monólogo”, afirma.

“Gosto da troca, da conversa, do contato. Em formato solo, como é  o caso, levo sempre um repertório aberto, sujeito a mudanças. Posso perguntar o que o público quer ou mudar de acordo com o momento”, conta o músico.

Educação real e libertadora

Como todo mundo que vai morar no estrangeiro, depois de algum tempo, Túlio começou a enxergar o Brasil com mais clareza: nada como um pouco de distância para ver melhor.

“Estar fora do Brasil me fez sentir mais próximo do Brasil. Talvez por ter tido a oportunidade de ver as coisas de fora, de forma mais neutra. É verdade que a gente reclama muito de tudo no Brasil e às vezes se sente desanimado.  Mas todo lugar tem seus próprios problemas. O Brasil é muito especial em muitos aspectos e aos poucos o brasileiro vai percebendo isso, deixando de valorizar mais o que vem de fora do  que o que está bem à nossa frente”, observa.

“Acho que a gente precisa aprender mais com as tradições e nosso próprio contexto social, investir em educação real e libertadora, não naquela que forma operários. Sobretudo, acho que a gente tem que parar de subestimar o poder que existe em fazer nossa parte”, conclui. Tá falado!

Túlio Augusto / 15 e 22 de julho, 17 horas / Teatro Gamboa Nova / R$ 20 e R$ 10 / Ouça:  www.tulioaugusto.com



ENTREVISTA COMPLETA: TÚLIO AUGUSTO

Como é esse show que vc traz à Bahia? Só composições autorais ou também tem releituras?

Foto Emília Suto
Tenho tentado tocar mais músicas autorais que releituras. Minha abordagem é predominantemente jazzística, e no caso do jazz, a performance, por si só, tende a mostrar algo mais pessoal, mesmo quando se apresentam versões. Ao mesmo tempo, é preciso encontrar um equilíbrio entre o que é novo e familiar. Há pessoas que não se importam com as expectativas do público ou se dispõem a ouvi-lo. Eu, particularmente, acho isso um grande erro. Embora o artista tenha necessidade de criar e falar, e sua voz seja sua obra, a arte acontece pela comunicação. Não ouvir o que o público tem a dizer é como fazer um monólogo. E eu não creio que essa seja uma forma muito interessante de comunicação. Gosto da troca, da conversa, do contato. Em formato solo, como é esse o caso, levo sempre um repertório aberto, sujeito a mudanças. Posso perguntar o que o público quer ou mudar de acordo com o que o momento pede. Pode ser um tema em especial ou mesmo um estilo (blues, jazz, música brasileira). Minha música se apoia bastante em improvisação e isso me dá a liberdade de fazer com que um mesmo repertório possa durar meia hora ou a noite toda. Coloco a guitarra em destaque, mas também toco algumas músicas para gaita solo. O formato solo é, por si só, inusitado. Pouca gente tem coragem de encarar. Deixa aparecer muitas das nossas falhas que ficariam mais escondidas quando se toca em conjunto, além de exigir muito esforço técnico e concentração. É o formato que tenho me dedicado mais e é também como apresentei praticamente todos os shows da turnê pela Galicia em março e abril.

Você, meio como a banda local Laia Gaiatta, parece propor uma releitura de gêneros tradicionais (blues,nos dois casos) via métodos acadêmicos muitas vezes pouco compreensíveis para quem não é necessariamente estudante de (ou estudado em) música. A afirmação confere? Como estabelecer uma ponte com plateias leigas?

Acho a pergunta muito interessante porque expõe algumas fragilidades de um dos maiores problemas presentes no meio  acadêmico atualmente, que é o distanciamento em relação ao público amador ou não especializado em gêneros musicais mais específicos. Creio que estamos num processo natural de retorno a muitos dos gêneros musicais tradicionais. Esse caminho de volta dá-se, em parte,  por uma sensação de esgotamento que a música erudita atual - que cada vez mais chamamos de música acadêmica - nos traz, do ponto de vista da composição, no sentido de se manter longe de uma concepção em que a música possa ser simplesmente ouvida e apreciada como música. Na maioria das vezes, é muito difícil para o público leigo ouvir a música erudita que se produz hoje, embora haja muitas exceções. No geral, existe uma preocupação exagerada com processos de composição e uma certa negligência com o resultado sonoro. Na música popular, sinto que o mainstream tem tido muita dificuldade em apresentar novidades e, de uma forma sutil, acaba incorporando muito da cultura tradicional, ainda que muitas vezes de forma caricaturada e superficial. No meio acadêmico, talvez pelo cunho científico, existe uma pressão para que se crie algo novo. Na minha opinião, a obsessão que muita gente tem por criar algo que ninguém fez, leva quase sempre a um isolamento que não contribui muito de forma mútua. A melhor maneira de estabelecer pontes com qualquer tipo de plateia é ser verdadeiro. E nem sempre é fácil falar a verdade. O que a Laia Gaiatta faz é simplesmente falar sua verdade utilizando a bagagem que cada integrante tem, deixar parte do que foi desenvolvido na academia se misturar com o outras coisas que se inserem de forma mais visível em gêneros tradicionais. E o blues tem muita coisa em comum com a música nordestina: os acordes com sétima, a simplicidade harmônica, a vida simples das pessoas num contexto rural e urbano, o lamento e a história contada. E ainda ouso traçar um paralelo entre o Mississipi e o São Francisco. No meu caso, embora a gaita remeta ao blues de forma quase inevitável, também faço analogia com a sanfona. O blues é uma maneira de contar histórias. A Laia Gaiatta e eu contamos nossas próprias histórias através do blues e outros gêneros tradicionais de uma forma menos tradicional e sem preocupação com purismo. Os métodos acadêmicos só precisam ser compreendidos se eles forem a finalidade e não o caminho (ou parte do caminho). Fiquei até com vontade de fazer alguma coisa com a Laia Gaiatta.

Como anda o mestrado em Aveiro? Já concluiu? E depois, vai continuar residindo em Portugal? 

Portugal surgiu na minha vida como uma possibilidade de explorar outros lugares, fazer mestrado em Composição e dar mais atenção a mim mesmo na área da música. Embora eu tivesse me formado em Composição e Regência na UFBA e abandonado um mestrado em seguida, passei meus últimos anos no Brasil me dedicando mais a projetos culturais e trabalhando na produção de outros grupos. E foi nesse período que me envolvi com a cultura de tradição popular de forma mais direta. Em Portugal, depois do mestrado em Composição fiz outro mestrado, em Educação Musical (Análise e Técnicas de Composição) e hoje faço doutorado em Composição na Universidade de Aveiro. Minha pesquisa relaciona cultura tradicional e contemporaneidade. Tenho me concentrado principalmente na música que integra em sua prática o uso de cordofones, como os vários tipos de violas encontradas na Península Ibérica e Brasil. Há muito tempo venho percebendo o quanto a música tradicional esteve presente no trabalho que tenho desenvolvido ao longo dos anos e se manifestado em dimensões além da "pureza". Não gosto da abordagem de folclorizar gêneros e manifestações. Por mais que as coisas não se apresentem de forma tão explícita, sempre há a presença de elementos formadores de uma cultura. Chamamos isso de intertextualidade, que é um termo que se desenvolveu bastante na área literária mas que tem suas bases em teorias filosóficas. E embora tudo que fazemos tenha algo de uma outra coisa, procuro tentar trazer à consciência muitos dos processos que possam ser utilizados diretamente na música. É, de certa forma, aquela  magia que molda minha visão de mundo. Ainda não sei como vai ser o futuro e onde estarei, mas sei tem a ver com música e educação.

Foto Emília Suto
O disco Solitário já saiu? Se não, quando sai? O que ele representa em termos de comparação com Blue Spell?

O significado da palavra "solitário" é diferente de "sozinho".  Não me sinto sozinho, mas sempre fui naturalmente solitário. Solitário representa uma reflexão sobre ser responsável por seu próprio destino, sobre desempenhar funções que são suas e outras que precisam ser. É também sobre adaptação. Em Solitário, como no formato de show solo que tenho me apresentado, preciso me adaptar para desempenhar em um só instrumento a função de vários. A verdade é que nada substitui a coesão de um grupo. E substituir não é minha intenção e muito menos busco uma ideia vaidosa de auto-suficiência. É, antes de tudo, um exercício de desapego em relação à falta de outros instrumentos para saber lidar com essa falta. Enquanto em Blue Spell eu gravei vários instrumentos, em Solitário, a ideia é justamente assumir que só há um instrumento e que não há nada de errado nisso. A guitarra muitas vezes traduz linhas melódicas que seriam comuns ao contrabaixo, torna-se percussão e dialoga consigo mesma. É importante dizer também que nesse trabalho eu pretendo diminuir a distância entre a gravação e a performance, algo que fica bastante evidente num formato solo. Queria já ter lançado, mas achei que ainda precisa trabalhar mais am algumas das músicas inéditas ou ainda pouco tocadas em shows, além de ter a oportunidade de gravar algumas coisas após o contato com plateias distintas, já que algumas das músicas terão sido apresentadas em pelo menos três países. Solitário sai muito em breve e deve dar origem a trabalhos semelhantes.

Me fala o que você realmente gostaria de dizer mas eu não perguntei?

Estar fora do Brasil me fez sentir mais próximo do Brasil. Talvez por ter tido a oportunidade de ver as coisas de fora, de forma mais neutra. É verdade que a gente reclama muito de tudo no Brasil e às vezes se sente desanimado.  Mas todo lugar tem seus próprios problemas. O Brasil é muito especial em muitos aspectos e aos poucos o brasileiro vai percebendo isso, deixando de valorizar mais o que vem de fora do Brasil que o que está bem à nossa frente. Os problemas que os artistas enfrentam no Brasil não são muito diferentes dos encontrados em outros lugares. A dificuldade de se viver de arte é real em todos os lugares. Quando os artistas se unem e se valorizam, as pessoas ao redor compreendem isso e valorizam também. Tenho visto que a prática do "pague quanto puder" se tornou comum em muitos lugares e isso me entristece porque são os artistas quem mais contribuem pra isso. É preciso encontrar estratégias mais eficientes para fazer com que o artista possa ser, de fato, profissional. Essa atitude tem que partir do artista, que precisa ser mais organizado, aprender a dizer "não" quando se deparar com uma proposta indecorosa. Outro grande desafio está em perceber que a música não deve depender de competições para se sustentar. Sinto que no meio artístico há uma necessidade muito grande de falar, mas pouca gente se dispõe a ouvir ou se preocupa se está sendo realmente ouvido. Nossa arte é um reflexo de nós mesmos e a nossa maneira de fazer arte é um reflexo da maneira de interpretar o mundo. Quando se foca demais no emissor, a mensagem, que nesse caso é a arte, se perde. E assim perdemos todos. Revisitar tradições, além de dar a elas um merecido lugar de valorização, é também uma atitude de buscar autoconhecimento, de se relacionar com as pessoas ao nosso redor. Acho que a gente precisa aprender mais com as tradições e nosso próprio contexto social, investir em educação real e libertadora, não naquela que forma operários. Sobretudo, acho que a gente tem que parar de subestimar o poder que existe em fazer nossa parte.

NUETAS

Babuca faz recital

Violonista, cantor, compositor, Babuca Grimaldi apresenta o   Recital Pindorama Utrópicos. Amanhã, 20 horas, no Teatro SESI, R$ 20 e R$ 10.

A volta dos doidões

Adoráveis e malucas, as veteranas bandas Los Canos e Vinil 69 retornam para um show no   Club Bahnhof sábado, 22 horas, R$ 20 e R$ 15.

Metal Saturday

Aqueronte, The Crypt, Rattle e Death Tales detonam sábado no antigo Tchê Night Club (Amaralina). 20h,  R$ 15.

My Friend is a Lo Han

Domingo tem My Friend Is A Gray e Lo Han no Groove Bar. 17 horas, R$ 15 e R$ 25.