quarta-feira, outubro 23, 2019

A CRÔNICA SOCIAL DE UM PAÍS CONTADA NA CARNE

Em Uma História da Tatuagem no Brasil, Silvana Jeha traça a formação de nossa sociedade. Lançamento amanhã no MAB

Acima e abaixo: imagens do livro. Divulgação
Se “toda obra de arte é autobiográfica”, dizia Lucian Freud (1922-2011), imagina o que deve ser a tatuagem, arte entranhada diretamente na carne do apreciador?

Em conjunto, talvez as tatuagens possam nos dizer algo sobre o próprio povo, sua história, seus costumes.

No livro Uma História da Tatuagem no Brasil - Do século XIX à década de 1970, a historiadora Silvana Jeha nos oferece justamente isso: um pouco da história social do Brasil a partir da tatuagem.

Amanhã, ela estará em Salvador para lançar seu livro, uma belíssima peça de história popular brasileira (em edição de luxo, com muitas imagens e capa dura), no Museu de Arte da Bahia.

Como tem feito nos lançamentos em outras praças, haverá uma roda de conversa com a autora e um tatuador veterano convidado.

“Em Salvador será o Bingha, tatuador pioneiro da cidade (desde 1980) que aprendeu a tatuar com um coreano no Rio de Janeiro”, conta Silvana.

Ela pretende juntar os depoimentos que vem colhendo desses tatuadores veteranos para produzir um outro documento e passar a sabedoria destes mestres adiante, para os artistas mais jovens.

“Há muitos e muitas que me escrevem, sedentos de informações dessa história que é difícil de pesquisar justamente por ser popular. E infelizmente, a maior parte da documentação está em arquivos judiciários e páginas policiais dos jornais”, conta.

“A tatuagem é uma arte e uma cultura muito diversa, merece um olhar mais atento dos pesquisadores da cultura. Merece um lugar mais nobre na história cultural do Brasil e do mundo”, afirma Silvana.

Religiosidade e afetos

No livro, a pesquisadora enfoca a tatuagem antes da massificação que ocorreu no Brasil (e no mundo) dos anos 1980 / 90 para cá.

Para os mais jovens, pode parecer inimaginável, mas até os anos 1980, a tatuagem não maculava as “carnes nobres” de moças e senhoras de família.

Tatuagem era coisa de trabalhador braçal, marinheiro, prostituta,  soldado raso – além de costume entre alguns povos  africanos, indígenas e asiáticos.

"Há muitas suposições para esse fenômeno de massa e realmente muito universalizado que é a tatuagem. Para o caso brasileiro, eu sempre faço uma correlação com o samba, a capoeira, o funk: antes fenômenos exclusivamente populares e criminalizados, sendo que o funk ainda é. No livro, as pessoas tatuadas são lavradores, pedreiros, prostitutas, lavadeiras, pescadores, barbeiros, operários etc. Como a cultura de baixo atrai as classes mais abastadas? Acho que tem um tanto de desejo de transgredir as normas burguesas que são muito opressoras e conservadoras. Não é só isso, mas passa por aí. Historicamente, no ocidente, a tatuagem começou a se espalhar em outros grupos nas décadas de 1960 e 1970. Época de revoluções comportamentais na sexualidade, na cultura. São os hippies, os punks, roqueiros, gangues variadas, surfistas urbanos, entre outros, que começam a se tatuar nesse período. Tribos urbanas que foram ditando comportamentos que se tornaram depois fenômenos de massa. Ao que parece que são eles em alguma medida que fazem essa passagem para a popularização. Mas esse é um tema muito vasto que merece mais pesquisa", observa.

“No livro não trato dessa passagem (para a massificação). O subtítulo é Do século XIX à década de 1970, quando a tatuagem era de fato uma cultura popular e também étnica. Não só indígenas e africanos se tatuavam – no caso dos africanos usa-se mais a palavra escarificação – mas também os imigrantes europeus, árabes e asiáticos que chegaram aos milhões na passagem do século 19 ao 20 trouxeram tanto a tatuagem dita ocidental quanto a de seus povos de origem”, pontua Silvana.

“Se você olhar o índice do livro verá a lista de seus personagens: marítimos, soldados, africanas e africanos, imigrantes, artistas, trabalhadores e trabalhadoras (principalmente prostitutas), prisioneiros. Acresci os dois motivos principais do uso da tatuagem: a religiosidade e os afetos. E por afetos entendo amor, ódio, paixão, desejo, virilidade, saudade”, detalha.

O curioso é que, na verdade, a história da tatuagem nem era a princípio, o objeto de estudo da autora. “Eu acabara de defender uma tese de doutorado sobre marinheiros da Marinha de Guerra no Brasil Imperial, onde havia uma pequena seção sobre tatuagem. Até hoje os registros mais antigos que encontrei da tatuagem dita ocidental foi em listas de navios da década de 1830”, conta Silvana.

“Enfim, parece que foram os marítimos os principais responsáveis por espalhar essa cultura no país. Como tatuagem era um assunto muito popular e sua história pouco pesquisada, quando acabei a tese, resolvi fazer um projeto sobre a história da tatuagem no Brasil e ganhei uma bolsa da Biblioteca Nacional”, relata.

Apesar de ser fruto de uma pesquisa acadêmica, é bom que se diga: Uma história da tatuagem no Brasil passa longe do hermetismo das academias. De fácil leitura, é acessível a qualquer pessoa alfabetizada.

“O livro pode ser lido como um mosaico de gentes, uma leitura da formação do povo brasileiro, uma história vista de baixo, onde homens e mulheres estão lutando pela sua sobrevivência em meio a suas paixões, desejos e fé.  O livro tem dezenas ou mesmo centenas de histórias de pessoas que se tatuavam. Pus o título Uma história da tatuagem no Brasil pois toda história é parcial e incompleta. Infelizmente não deu para eu escrever o capítulo da tatuagem indígena, que é de fato a pioneira no território que hoje chamamos de Brasil. E vários povos ainda se tatuam, como os Ikpeng, Matis, Kaiabi. Korotowi Taffarel, Ikpeng, escreveu uma dissertação belíssima sobre o ritual da tatuagem de seu povo”, conta.

Nessa toada, Silvana acabou se surpreendendo com algumas de suas descobertas, até mesmo sobre suas próprias origens.

"Muita coisa me surpreendeu. Do ponto de vista pessoal, que a tatuagem era popular entre os imigrantes sírios e libaneses, dos quais eu descendo. Nunca ninguém na minha família tinha mencionado essa cultura. Eu atribuo ao fato de que como a tatuagem era marginalizada no Brasil da época que eles chegaram, foi uma memória apagada para se afastar do estigma. Isso não impediu que vários sirios e libaneses tenham se tornado tatuadores eventuais, como mostra a documentação. Outras novidades foram a tatuagem no mundo do samba, capoeira, a tatuagem patriótica entre soldados, a tatuagem religiosa", detalha.

"É muito difícil dirigir a leitura do que a gente escreve. Mas eu tenho sim uma intenção subjacente no livro: é 'popularizar a história popular' que a gente produz com todo o rigor na Universidade há décadas. É a história do povo brasileiro, sem folclorismo, mitos, bem documentada. É sobre sua diversidade, sensibilidade, originalidade. A gente pode se orgulhar da nossa diversidade e criatividade sem ser ufanista, produzindo e lendo história. No caso dos historiadores profissionais, uma história cheia de notas de rodapé, pra dizer de onde a gente tirou aquela informação. As pessoas que encontrei nos arquivos que pesquisei são pessoas comuns, mas também extraordinárias", afirma.

Agora, Silvana se dedica à pesquisar  a vida e a memória na obra de dois artistas que produziram em manicômios: Arthur Bispo do Rosário e Aurora Cursino dos Santos.

"Bispo foi marinheiro e pugilista e Aurora, prostituta. Ambos versam sobre suas profissões nas suas obras. É isso que me interessa neles, além de grande artistas, produziram discurso e memória de si, documentos menos comuns da classe trabalhadora que viveu na primeira metade do século XX. Eles não só produziram bordados, esculturas e pinturas, como textos dentro da sua obra plástica. Estou fascinada pelo que dizem de si e do Brasil de sua época", conclui.

Que venha um novo livro.

Lançamento e roda de conversa com Silvana Jeha: Amanhã, 18h / Museu de Arte da Bahia (Corredor da Vitória) / Participação: Bingha

Uma História da Tatuagem no Brasil  – Do Século XIX à Década de 1970 / Silvana Jeha / Veneta / 352 p. / R$ 109,90

terça-feira, outubro 22, 2019

THE DARK IS RISING

Morcegões da cena gótica voltam a voar. Sábado tem festa no Portela com  a CelulaMekânika, KFactor e DJs locais e de fora

Célula: David Giassi e Henrique Letárgico, foto Fernando Ricanelli
Se você acha o rock baiano underground, é porque nunca se deparou com a cena gótica local.

Underground do underground, ela vem marcando presença na cena desde os anos 1980 com diversas bandas.

Neste século, a mais marcante delas é sem dúvida a Modus Operandi, que, na maciota, já lançou álbuns bem impressionantes e comandou festas e festivais pela cidade.

Vocalista da MO, David Vertigo Giassi, porém, tem mais ideias na cabeça, as quais nem sempre cabem na nave-mãe.

Ao lado do parceiro de Modus Henrique Letárgico, ele apresenta nesta sexta-feira o projeto paralelo CélulaMekânika: uma colisão de batidas eletrônicas sujas (e dançantes) com texturas pesadas e guitarras abrasivas.

Prato cheio para fãs de Suicide, Kraftwerk, Ministry, Atari Teenage Riot etc.

“Havia algumas ideias que eu (sintetizador, voz, programações) e Henrique Letárgico (guitarras, vocais, programações) tínhamos e que não cabiam num formato ‘orgânico’ da Modus Operandi, até mesmo em respeito as influências dos outros membros. Daí surgiu a CélulaMekânika, com uma sonoridade mais industrial / EBM / experimental, onde podemos exercitar nosso fetiche por batidas eletrônicas, ruídos e afins”, conta David.

E de fetiche eles entendem: a festa de sexta, no Portela Café, se chama Gothic Intoxication Fetish Mode: ON.

Além do Célula, se apresentam os projetos K Factor (de São Paulo) e Xymox (da Paraíba), além dos DJs Aries, CyberPuke e Bat. (Na dúvida, leve uma cabeça de alho no bolso).

Back to bat

CelulaMekânika ao vivo
 No cômputo geral, um evento fora da curva desta província: “Nosso show utiliza projeções de filmes e imagens coma mesma temática de nossa letras. O evento é organizado pela produtora Gothic Intoxication e pretende reativar a cultura gótica aqui em Salvador, reunindo DJs, performances e a CélulaMekânika. Quem for vai presenciar algo bem diferenciado e inusitado do que rola normalmente em Salvador”, convida David.

"Com a correria de 3 bandas (Modus Operandi, CélulaMekânika e a vindoura Entre 4 Paredes, com uma sonoridade mais anos 80/Pós Punk/Gothic Rock) realmente fiquei sem tempo para produzir eventos, sem contar que houve um certo esvaziamento de público aliado à ausência temporária de locais para eventos. Mas as coisas estão voltando a se aquecer aos poucos", acredita.

Sombria e apocalíptica, a cultura gótica pós-moderna floresceu bastante nos anos 1970 / 80, quando extermínio nuclear, opressão política e recessão econômica eram quase regra no planeta. Com o caos planetário novamente se instalando, não será surpresa uma nova onda gótica.

“Tudo isso reflexo do cenário caótico que vivemos: guerra fria, discriminação, aumento de doenças globais. É o sinal de que cada dia mais caminhamos para um fim sombrio e desolador”, aposta David.

E tá errado?

"Esperamos os antigos frequentadores do Darktronic lá no evento, para matar a saudade. Fiquem ligados em nossa redes sociais pois ano que vem já lançaremos nosso segundo EP", conclui David.

Gothic Intoxication Fetisch Mode:ON / Sexta-feira, 22H / Portela Café / R$ 20 (Sympla); R$ 25 (lista); R$ 30 (porta); R$ 50 (casadinha)



NUETAS

Cátia de França aqui

Essa é pra quem sabe: Cátia de França, verdadeira lenda viva da cultura nordestina, se apresenta neste sábado, na Casa Preta (2 de Julho), 18h, preço de ingresso não divulgado.

MAEV com Iorigun

Duas grandes bandas de rock pelo preço de uma: Meus Amigos Estão Velhos e Iorigun (de Feira de Santana) fazem A Melhor Festa da Cidade. Sábado, 22 horas, no Lebowski Pub. R$ 10 (lista) e R$ 15 (portaria).

O climão da Letrux

A celebrada cantora Letrux traz a Salvador o último show da turnê Letrux em Noite de Climão, homônima do premiado disco de 2017. Rapeize moderna se amarra. Sábado, no Largo Tereza Batista (Pelourinho), 21h30. R$ 60 (1º lote no Sympla).

segunda-feira, outubro 21, 2019

LAURENTINO GOMES: "O BRASIL FOI O MAIOR TERRITÓRIO ESCRAVAGISTA DO OCIDENTE"

O assunto é vastíssimo (e urgente) e o espaço, mínimo. Tudo o que você precisa saber é que o premiado jornalista Laurentino Gomes, autor dos livros 1808, 1822 e 1889 estará amanhã (sorry, foi ontem, domingo, 20) em Salvador para lançar e autografar seu novo livro: Escravidão Vol. 1. Mais dois volumes virão em 2020 e 2021. A seguir, uma esclarecedora entrevista com o homem.

O que levou o senhor a embarcar neste projeto específico neste momento específico? Foi um passo lógico depois da trilogia oitocentista ou foi a conjuntura do Brasil neste momento pós-golpe de 2016, pós-reforma trabalhista?

No Cais do Valongo (RJ), maior entreposto de comércio escravo das Américas
Laurentino Gomes: Escrever sobre a história da escravidão no Brasil foi uma decorrência natural da minha primeira trilogia de livros. Nos três livros anteriores, 1808, 1822 e 1889, eu procurei explicar as três datas fundamentais para a construção do Brasil como nação independente no século 19. Essas datas ajudam a explicar a maneira como nos constituímos do ponto de vista legal, institucional e burocrático. Mas não são suficientes para entender os aspectos mais profundos da nossa identidade nacional. Para isso é preciso ir além da superfície, observar o que fizemos os nossos índios e negros, quem teve acesso às oportunidades e privilégios ao longo da nossa história e como a sociedade e a cultura brasileiras foram se moldando desde a chegada de Pedro Álvares Cabral à Bahia até os dias de hoje. Ao fazer isso, eu me dei conta de que o assunto mais importante da nossa história não são os ciclos econômicos, as revoluções, o império ou a monarquia. É a escravidão. O trabalho cativo deu o alicerce para a colonização portuguesa na América e a ocupação do imenso território. Também moldou a maneira como nos relacionamos uns com os outros ainda hoje. Neste início de século 21, temos uma sociedade rica do ponto de vista cultural, diversificada e multifacetada, mas também marcada por grande desigualdade social e manifestação quase diárias de preconceito racial. Isso, no meu entender, é ainda herança da exploração desumana, cruel e indigna do trabalho de milhões de pessoas forçadas a cruzar o Oceano Atlântico a bordo dos navios negreiros para viver como cativas no Brasil colônia. No final do século 17, o padre jesuíta Antônio Vieira cunhou uma frase famosa. “O Brasil tem seu corpo na América e sua alma na África”, afirmava ele. No meu entender, é uma frase profética, que se torna cada vez mais verdadeira com o passar do tempo. E continua atual ainda hoje. O Brasil foi o maior território escravagista do hemisfério ocidental. Recebeu quase cinco milhões de cativos africanos, cerca de 40% do total de doze milhões embarcados para as Américas. Como resultado, tem hoje a maior população negra do mundo, com exceção apenas da Nigéria. Foi também o país que mais tempo resistiu a acabar com o tráfico negreiro e o último a abolir o cativeiro, pela Lei Áurea de 1888 - quatro anos depois de Porto Rico e dois depois de Cuba. A escravidão foi a experiência mais determinante na história brasileira, com impacto profundo na cultura e no sistema político que deu origem ao país depois da independência. Nenhum outro assunto é tão importante e tão definidor para a construção da nossa identidade.

Entre as várias viagens de pesquisa de campo que o senhor fez, cinco delas foram à África. O que mais o impressionou nestas incursões em relação ao seu objeto de estudo? Que marcas a escravidão deixou visíveis no solo e no povo africano nativo de hoje?

LG - Brasil e África já estiveram mais próximos. Como bem demonstrou Pierre Verger, até o final do século 19, havia rotas regulares de navios entre Salvador, na Bahia, e a Nigéria, por exemplo. Angola tentou aderir à independência do Brasil, em 1822. O intercâmbio econômico e cultural era bastante intenso nessa época, muito em consequência do próprio tráfico negreiro. Hoje, essas relações estão mais frias, mas marcas brasileiras são hoje bem visíveis no continente africano. Em Gana e no Benim encontrei uma numerosa comunidade descendentes de ex-escravos retornados durante o século 19. Ocupam posições importantes na hierarquia social. Alguns foram presidentes, ministros, governadores. Esses ex-escravos deixaram também contribuições importantes na arquitetura, nas artes e nos costumes em diversos países. Na cidade Porto Novo, no Benim, por exemplo, há uma mesquita muçulmana com traços arquitetônicos de igreja católica brasileira. Foi construída por escravos libertos da Bahia, que tinham por ofício erguer templos católicos no Brasil e levaram sua técnica de construção para a África. Essa influência continua muito forte ainda hoje. As novelas da Rede Globo têm uma audiência enorme nos países de línguas portuguesa. Ao ponto de alterar o sotaque o modo de fala o idioma nesses locais.

A escravidão, como o senhor e tantos outros autores nos lembram, sempre existiu na humanidade, em todos os continentes. Ainda assim, nunca conheceu um período tão "próspero", com o perdão da má palavra, quanto quando os europeus entraram no negócio, entre os séculos 15 e 19. E ainda hoje ela persiste em várias partes do mundo. A escravidão, portanto, é um problema da humanidade como um todo, correto?

Castelo de São Jorge da Mina, litoral de Gana, construção portuguesa, século 15
LG - Infelizmente, sim, a escravidão parece fazer parte do código genérico do ser humano. Existiu em todas as grandes civilizações, incluindo a Babilônia, o Egito, a Grécia, Roma, os territórios dominados pelo islã e a própria África antes da chegada dos europeus. Ainda hoje, o regime escravista persiste no mundo sob formas de trabalho desumanas, indignas e inaceitáveis para os padrões éticos que julgávamos ter atingido neste início de século 21. Uma organização britânica a Anti-Slavery International (mais antiga entidade de defesa dos direitos humanos, fundada em 1823 para combater o tráfico negreiro), afirma que existem atualmente mais escravos no mundo do que em qualquer período nos 350 anos escravidão africana nas Américas. Seriam 40 milhões de pessoas vivendo hoje em condições de vida e trabalho análogas às da escravidão – ou seja, quatro vezes o total de cativos traficados no Atlântico até meados do século 19. Ainda segundo a Anti-Slavery Internacional, a cada ano cerca de 800.000 pessoas são traficadas internacionalmente ou mantidas sob alguma forma de cativeiro, impossibilitadas de retornar livremente e por seus próprios meios aos locais de origem. E lamentavelmente, o nosso Brasil aparece sempre com destaque nesta lista suja.

Muita gente não entende - ou finge não entender - a relação entre o passado de escravidão dos negros, o racismo e a clara posição de desvantagem social que estes amargam ainda hoje. O senhor poderia nos esclarecer isto, por favor?

LG - Ao contrário do que se imagina, a escravidão não é um assunto acabado, bem resolvido e congelado no passado. Ainda está vivo entre nós, como se pode ver nos discursos de campanhas eleitorais e nas discussões diárias que aparecem nas redes sociais. O preconceito é uma das marcas das nossas relações sociais no Brasil, embora sempre procuremos disfarça-lo construindo mitos a respeito de nós mesmos. Um desses mitos dizem que somos uma ‘democracia racial’ e que a escravidão entre nós foi mais benévola, patriarcal e tolerante do que eu outros territórios da América. Tudo isso é ilusório e desmentido pelas estatísticas, que mostram um fosso enorme de desigualdade entre negros e brancos no país em todos os itens analisados. Os descendentes de africanos ganham menos, moram em lugares mais insalubres, estão mais expostos aos efeitos da violência e da criminalidade e tem oportunidades em todas as áreas, incluindo emprego, saúde, educação, segurança, saneamento, moradia e acesso aos postos da administração pública. Um homem negro no Brasil tem oito vezes mais chances de morrer vítima de homicídio do que um homem branco. Esse é um legado da escravidão, mal resolvido no passado e que ainda hoje tentamos negar. Portanto, tudo o que fomos no passado, o que somos hoje e o que seremos no futuro tem a ver com as nossas raízes africanas e a forma como nos relacionamos com elas.

Entre os vários enfoques e detalhes da história da escravidão que o senhor explora no livro, a questão dos eunucos é especialmente impressionante, até porque a imagem que temos dessa classe de escravos é aquela que nos foi dada pela indústria cultural – portanto, edulcorada. Como sopesar aquela versão dos desenhos animados com a realidade brutal de tamanho genocídio?

LG - A escravidão é um tema doloroso, repleto de sofrimento e crueldade. Por isso, precisamos estudar e refletir sobre o que aconteceu. Os eunucos eram homens privados da virilidade mediante a castração dos órgãos genitais ainda na adolescência. Há registros dessa forma radical de escravização desde a mais remota antiguidade. Eram também muito valiosos no mercado de cativos. No Egito, uma jovem negra valia cerca de 40 dinares, e um eunuco, mais de 65. O motivo era a alta taxa de mortalidade nas cirurgias de amputação dos órgãos genitais. Cerca de 90% dos adolescentes morriam em decorrência da operação. Os que sobrevivessem ocupavam funções importantes na hierarquia escravista, encarregados de fazer a guarda dos haréns, cujas mulheres em geral eram também escravas, e desempenhar funções-chave na estrutura dos impérios, como tesoureiros, ministros, conselheiros e até comandantes militares. Havia mais de cem mil deles nos palácios chineses da dinastia Ming.

Roda de conversa no Quilombo Caiana dos Crioulos (Agreste da Paraíba)
Muita gente parece acreditar que a história da África começa com a chegada dos exploradores europeus, mas no seu livro aprendemos que há um vasto arcabouço histórico antes disso, com muitos reinos, guerras e civilizações. Porque não temos acesso a isso ainda na escola, nas aulas de História Geral?

LG - A África sempre foi um continente muito diverso, culturalmente rico, com uma história milenar que remonta às próprias origens do ser humano na Terra. Infelizmente, a visão que se tem ainda hoje do continente reflete o preconceito e a ignorância dos próprios europeus que, na época do início do tráfico negreiro, viam todos os africanos como bárbaros, selvagens e infiéis, estranhos à fé católica e distantes da supostamente avançada civilização europeia. Isso também se reflete na maneira como nós estudamos a África no Brasil. Até muito recentemente, a história africana e da escravidão negra no Atlântico era tratada como tema secundário, quase casual, nos livros didáticos e a historiografia oficial. Isso não aconteceu por acaso. É resultado de um propósito de esquecimento. Alguns dos grandes abolicionistas do século 19, como Joaquim Nabuco e André Rebouças, diziam que não bastava acabar com a escravidão. Era preciso também enfrentar o seu legado, dando terra, trabalho, educação e oportunidades aos ex-cativos e seus descendentes. Isso o Brasil jamais fez. Nossa população afrodescendente foi abandonada à própria sorte, como mostram hoje todas as estatísticas e indicadores sociais. O projeto de abandono e esquecimento incluiu também a nossa história negra e africana, relegada a um segundo plano nos livros didáticos. Felizmente, isso está mudando. Hoje, já existe até uma lei que obriga o ensino desse tema em sala de aula.

Muita gente (branca) se ofende quando se fala em reparação histórica pela escravidão, como se isso dissesse respeito a estas pessoas - o que denota certa egolatria, diga-se de passagem - mas diz respeito à sociedade como um todo. Na opinião do senhor - ou dos especialistas com quem o senhor conversou - o que seria uma reparação realmente justa para todos - mas para com os negros, principalmente?

Senzala no Engenho Uruaé (PE): argola de ferro para imobilizar escravos
LG - Eu sou a favor dos programas de cotas preferenciais para afrodescendentes por duas razões. A primeira é que essa política vem dando resultados concretos. As estatísticas mostram um aumento no número de negros ou pardos (categoria do IBGE que inclui uma ampla gama de mestiços) mestres e doutores nas universidades e também em cargos mais qualificados da administração pública e da iniciativa privada. Ainda que lentamente, estamos abrindo espaços para essa parcela da população que, no passado, sempre esteve sub-representada. A segunda razão é que, mesmo sendo polêmica, a política de cotas demonstra que o Brasil da democracia, pela primeira vez, topa o desafio de enfrentar o legado da escravidão e corrigi-lo. Isso nunca aconteceu antes. Claro que ainda há muita reação. Um dos argumentos contrários à política de cotas, presente até em discursos de altas autoridades da república, tenta culpar os escravos pela própria escravidão. Muita gente afirma que, se os africanos participaram e lucraram com a escravidão, não haveria razão para manter no Brasil, por exemplo, um sistema de cotas de inclusão dos afrodescendentes em escolas ou postos da administração pública. A chamada “dívida social” brasileira em relação em relação aos descendentes de escravos estaria anulada pelo fato de os africanos serem corresponsáveis pelo regime escravista. Desse modo, não haveria porque indenizá-los ou compensá-los pelos prejuízos sociais e históricos decorrentes disso. Tudo isso é muito injusto porque, obviamente, não se pode culpar os escravos pela própria escravidão. O fato de chefes africanos terem participado do tráfico nada tem a ver com a enorme dívida social e real que o Brasil tem com os seus afrodescendentes. Basta ver as estatísticas, onde a nossa população negra aparece como a parcela da sociedade com menos oportunidades e a que mais sofre com a desigualdade social crônica brasileira. Precisamos corrigir isso urgentemente. E não podemos nos esconder atrás de falsas e incorretas discussões a respeito de fatos históricos.

Tendo em perspectiva o momento atual da Igreja Católica sob o pontificado do Papa Francisco, como o senhor avalia a posição da Igreja ao longo de todos aqueles séculos em relação à escravidão? Não que impressione muito, dado o comportamento da instituição durante a Inquisição (ou durante a 2ª Guerra e os escândalos de pedofilia), mas enfim.

LG - Foram escassas as vozes dentro da hierarquia católica que se ergueram contra o cativeiro dos africanos. Havia exceções, mas eram relativamente raras. Como apontou o historiador americano David Brion Davis, a escravidão sempre foi um problema insolúvel para a sociedade ocidental. Havia enorme contradição nas leis civis e eclesiásticas que tratavam da condição dos cativos. O estado sancionava a privação da liberdade e considerava os escravos como propriedade de seus senhores, passíveis de compra e venda, como qualquer animal ou bem imóvel. Seus filhos nasciam e permaneciam no cativeiro. Mas, ao mesmo tempo, essas mesmas leis reconheciam que os escravos tinham alguns direitos mínimos, como à própria vida, que não poderia ser tirada pelo seu senhor sob pena de crime. Os códigos canônicos determinavam que os escravos deveriam ser batizados e acolhidos no rebanho cristão, participavam de confrarias, como a de Nossa Senhora do Rosário, e se faziam representadas em festas, procissões e outros rituais religiosos, mas até o final do século 19, com raras opiniões isoladas, a igreja nunca se pronunciou oficialmente e de forma inequívoca contra a escravidão. A igreja reconhecia que os cativos tinham uma alma imortal, que deveria ser salva mediante a administração dos sacramentos, mas bispos, padres e ordens religiosas eram donos de escravos e participavam ativamente do comércio negreiro. A igreja também reconhecia o casamento de cativos e defendia a proteção da família, mas isso nunca impediu que maridos e mulheres, pais e filhos fossem separados nas transações de venda de escravos.

Outro dia, uma reportagem da BBC mostrou que guias de fazendas históricas do sul dos Estados Unidos volta e meia são xingados por turistas (brancos) que se ofendem ao se deparar com a verdade na forma como os escravos eram explorados, torturados, estuprados e mortos. Dizem que os guias tem "viés esquerdista". Ser contra a escravidão virou coisa de esquerdista? Não deveria ser uma luta de todo ser humano?

LG - A escravidão não é assunto exclusivo de direita ou de esquerda, de brancos ou negros. É um tema com o qual todos nós, brasileiros, deveríamos nos preocupar. Todos nós que estamos vivos hoje somos descendentes de escravos ou de senhores de escravos. O legado da escravidão, que se traduz em desigualdade social no Brasil, é um desafio urgente, que exige nossas atenções e esforços como cidadãos, independente da nossa cor da pele e das nossas preferências político-partidárias. Esse clima de polarização e ódio me preocupa muito. Acho que em nada contribui para o estudo da escravidão nem para a construção do Brasil dos nossos sonhos. Mais preocupante é ver que a discórdia muitas vezes é semeada por quem deveria dar exemplos de serenidade, discernimento e sabedoria. Infelizmente, isso inclui o próprio presidente da República. Durante a campanha eleitoral de 2018, fiquei assustado com a crueza e a falta de sensibilidade que o candidato Jair Bolsonaro demonstrou ao tratar de temas como a escravidão, o papel das mulheres, os direitos dos homossexuais, dos emigrantes e das pessoas mais pobres na sociedade brasileira. Esse discurso de enfrentamento rendeu votos e muita gente se valeu dele para ser eleita em 2018, mas esperava que, passada a campanha eleitoral, a retórica, o comportamento e as decisões dos eleitos fossem diferentes. Não é o que está acontecendo. É preciso que o presidente deixe para trás o discurso de palanque e governe para todos os brasileiros, levando em conta principalmente os mais fracos, os mais necessitados, os mais desprotegidos. Precisamos urgente cicatrizar as feridas, superar as divisões e encontrar pontos de união, que nos ajudem a caminhar em direção ao futuro e enfrentar os desafios mais urgentes.

Escravidão Vol. I: do primeiro leilão de cativos em Portugal até a morte de Zumbi dos Palmares / Laurentino Gomes / Globo Livros/ 480 p. / R$ 49,90

terça-feira, outubro 15, 2019

RETORNO ARREPIANTE

Grande banda feirense, Calafrio lança novo trabalho e se prepara para o Feira Noise

Calafrio, foto Eduardo Aquintela
Possivelmente a melhor banda da prolífica cena feirense, o quarteto Calafrio ganhou este colunista há alguns anos, com o EP Bater de Frente (2014): cinco faixas cheias de personalidade e boas letras – especialmente a faixa Segunda Chance, simplesmente uma obra-prima do rock baiano.

Cinco anos depois eles retornam com mais cinco faixas no EP – sugestivamente intitulado – Hiato. Há alguns dias eles lançaram o primeiro clipe: Primitivos.

Felizmente, o tempo que a banda passou no estaleiro não diminuiu seu ímpeto ou sua pegada rock.

O EP será lançado em grande estilo com um show no principal festival de Feira de Santana – e um dos principais da Bahia –, o Feira Noise, que acontece nos dias 23 e 24 de novembro.

Um bem-vindo retorno depois de um tempo longe pelas razões de sempre: “Passamos por um aperto comum à maioria das bandas independentes. A dificuldade em conseguir bons shows, falta de perspectiva no cenário e limitações em gerir o projeto, aliado às dificuldades dos integrantes com questões familiares e financeiras, principalmente, fez com que a banda quase chegasse ao fim nesse ‘Hiato’. Uma situação corriqueira na cena independente”, relata o vocalista  e guitarrista  Siddartha Gautama.

Cinco melhor que dez

Calafrio, foto Eduardo Aquintela
Ao lado de Pedro Patrocínio (guitarra e voz), Bruno Mendes (baixo e voz) e Robson Sousa (bateria), Siddartha admite que, de fato, seguir acreditando no rock hoje em dia é “uma aposta arriscada, pensando no mercado. Mas pra gente é um processo muito orgânico. Apesar de todos integrantes beberem da música brasileira e da música em geral, quando a banda se reúne, a nossa verdade fica evidente”, afirma.

“Dessa forma a gente mantem uma coerência com nossa história e nosso público”, acrescenta.

No ano que vem o quarteto pretende gravar seu primeiro álbum show após quatro EPs: “Antes do Bater de Frente, já havíamos lançado Para Ambos os Lábios (2007) e também Ácido (2009). Inicialmente optamos por fazer cinco músicas por lançamento por não ter grana para um álbum completo. Acabamos descobrindo vantagens, por exemplo na divulgação, é melhor para trabalhar um conceito visual impactante, além de produzir dois ou mais clipes por EP”, diz o músico.

“Preferimos ver as pessoas no show cantando cinco músicas inteiras  que dez pela metade. Mas com certeza a ideia é lançar um disco ano que vem”, afirma Siddartha.

Para Salvador ainda não há previsão de show. “Já tocamos na capital em várias ocasiões. No palco Gueto Square do Festival de Verão, Palco do Rock em Piatã e casas de show. Ainda não temos convite pra retornar mas pretendemos voltar o quanto antes”, conclui.

www.facebook.com/calafriorock



NUETAS

Julio quinta, Eric sexta

Julio Caldas apresenta seu tributo ao imortal B.B. King assessorado por Gilmário Celso e Eric Dultra. Quinta-feira, 20h30, no  Solar Gastronomia (Rio Vermelho).  No dia seguinte, o mesmo local recebe Eric Assmar convida Jelber Oliveira. 20h30, R$ 15.

Pajeh na Vida e no Rock

A banda Pajeh lança seu primeiro EP, Vida Rock ‘n’ Roll, nesta sexta-feira, 19 horas, no Bardos Bardos. O som é na linha hard rock 70’s de boa cepa. Pague quanto quiser.

Vivendo do Ócio & cia. 

Rubatosis, Tangolomangos, Underismo e Vivendo do Ócio fazem mais uma edição do Facom Som neste sábado, 19 horas, no Largo Pedro Archanjo (Pelourinho). R$ 20 e R$ 10 no Sympla.

terça-feira, outubro 08, 2019

TRISTE, MAS QUEM NÃO ESTÁ?

André Dias, da Exoesqueleto, apresenta belo – e melancólico  trabalho solo. Confira dia 24 no Bardos Bardos

André Dias e seu amigo de seis cordas. Foto Eduardo César
Guitarrista e vocalista do power-trio Exoesqueleto, uma das poucas bandas de rock negras de Salvador (na formação e na proposta musical) – o que não deixa de ser irônico –, André Dias aproveita um momento de hiato do grupo para gravar e tocar projeto solo, produzido por André T.

Músico de mão cheia, evidencia o reconhecimento de seu talento com parcerias de primeiro time nas gravações: Antenor Cardoso (vibrafonista da banda Retrovisor), Morotó Slim (guitarrista, ex-Retrofoguetes), Joatan Nascimento (trompetista, Orkestra Rumpilezz) e Cadinho Almeida (o baixista xodó da Bahia).

No dia 24 André se apresenta no Bardos Bardos, em  noite dedicada à alguns dos “caras solo” do rock local – além dele tocam o grande Artur Ribeiro (ex-Theatro de Seraphin) e o ótimo Duda Spínola (ex-Adão Negro).

“A proposta é apresentar algumas das músicas do disco, mais algumas da ExoEsqueleto nesse formato voz e guitarra com a participação de Heverton Didoné na ‘percuteria’”, conta André.

“Inicialmente ele é o único dos participantes do disco a me acompanhar nesses pocket shows, mas a ideia é contar com todos no lançamento do disco”, acrescenta.

Antes ainda, no dia 18 ele leva seu som a Santo Amaro, durante o I Festival de Cultura e Arte Cecult da UFRB.

Chet Baker à baiana

André, foto Eduardo César
Ele ainda não soltou nenhum single do trabalho solo, mas adiantou para este colunista duas faixas: Be My Jazz e Mar de Desejos, ambas muito bonitas, sofridas e intimistas, especialmente a primeira, onde encarna uma espécie de Chet Baker baiano, com aquele auxílio luxuoso do trompete mágico de Joatan.

“Sim, o tom do disco é este. É um álbum sobre a tristeza, basicamente. A forma como ela permeia as relações, seja antes, durante ou depois e isso não quer dizer – essencialmente – que a sua presença anule a beleza das coisas”, diz.

“As letras são autobiográficas, aí alguém há de perguntar: ‘você é um cara triste’? Eu respondo com outra pergunta: ‘e quem não é hoje em dia’? Claro que o espectro é enorme, mas ela (a tristeza) sempre está por aí, ainda mais em dias tão sombrios”, acrescenta.

Tristezas à parte, André está felizão com o trabalho no estúdio: “Posso dizer que esse disco é um sonho que eu nunca tive até que comecei a gravá-lo. André T tem grande responsabilidade aí por ajudar a extrair o melhor de cada canção e me dar a oportunidade de trabalhar (e aprender) com Morotó (sou fã desde os Dead Billies) e  Joatan, que sempre vi na Jam do Mam e nunca imaginei  trabalhar com ele”, conta.

"Porque o rock e o jazz tem cenas que pouco dialogam aqui na cidade. Então, com eles dois as sessões foram assim: aperta o rec e deixa acontecer. Cada take era melhor que o anterior. Cadinho e Heverton Didoné, além de grandes músicos, são meus parceiros de ExoEsqueleto, o que torna tudo mais fácil. Antenor Cardoso e Felipe Guedes são dois queridos amigos que a música me deu e que não hesitaram em embarcar comigo nessa aventura", acrescenta.

Sobre o hiato da banda original, ele conta que "Acho que toda banda passa por um processo parecido com esse no qual a ExoEsqueleto está: Depois de um tempo na trincheira que é a música independente, a gente fica com vontade de tentar outros caminhos pra ver se obtemos resultados diferentes ou, até mesmo, ter acesso à novos públicos e praças. Na Exo, em particular, todo mundo está engajado em algum projeto particular nesse momento. Seja disco solo, seja família ou a correria por grana. Então, inicialmente, temos uma obrigação moral com a obra da banda que é regravar e relançar nosso primeiro disco – em 2023, quando ele completa 10 anos – com essa formação atual. Até lá, tudo pode acontecer. Até gravar um novo disco… Deixa rolar".

"É importante falar que esse disco solo está sendo feito sem ajuda de editais, vaquinhas virtuais etc. Então, a falta de grana é um fator que, muitas vezes, emperra o andamento das coisas. Dito isso, 2020 será um ano no qual quero extrair o máximo que o álbum puder me dar (clipes, apresentações aqui e em outras cidades). Pretendo começar lançar singles já a partir de janeiro e o disco deve vir em meados de março, no mais tardar, início de abril do ano que vem", conclui.

Solo Sessions com André Dias, Artur Ribeiro e Duda Spínola / Dia 24 (quinta-feira), 19 horas / Bardos Bardos / Pague quanto quiser

NUETAS

Sabadão heavy

Sábado tem o Impacta Music Festival com as bandas Nervosa (SP), Project 46, Torture Squad (SP), Headhunter D.C. e Arcantis.  16 horas, no Alto do Andu. R$ 100, últimos ingressos. No dia 30 de novembro o mesmo evento chega a Vitória da Conquista, com Ratos de Porão, Eminence (MG), Matanza Inc. (RJ), Suffocation of Soul e Arcantis.

Domingo no Centro

Chocolate com Blues, Anemia, Fridha, Jimmy Six e Lote 7 invadem a  Budega Pub (Carlos Gomes, Centro). Domingo, 15 horas, R$ 10.

Domingo na Pituba

O show Cidade Alternativa  bota as bandas Eustass, Rubatosis, Andar De Cima e Fernão Gaivota no palco do B23 Lounge Music Bar. Domingo, 16 horas, R$ 15 (lista).

sexta-feira, outubro 04, 2019

EDI ROCK: “TUDO EM FAVOR DO POVO É MARGINALIZADO, É CERCADO DE HIPOCRISIA E PRECONCEITO”

Quarteto master do rap nacional traz à Salvador, hoje à noite, o super-show em que celebra suas três décadas de luta e arte que transcende rótulos e nichos

Mano Brown, KL Jay, Ice Blue e Edi Rock, foto Klaus M.
Engana-se quem pensa que a música dos Racionais MCs é apenas para a (já imensa) plateia fã de rap e hip hop.

A razão é simples: o grupo de Mano Brown, Edi Rock, Ice Blue e KL Jay há muito já transcendeu o nicho do gênero para imprimir uma marca indelével não apenas na (nata da) MPB, mas na cultura brasileira em si.

Para neófitos, uma única audição atenta da obra-prima Sobrevivendo no Inferno (1997) já constitui prova suficiente para esta afirmação.

Para estes e também para os manos e minas raiz, outra prova pode ser testemunhada hoje na Arena Fonte Nova, no show 3 Décadas, uma celebração dos 30 anos de estrada com tudo o que uma ocasião tão nobre pede: banda completa, cenário, projeções em led.

Donos de uma discografia enxuta – apenas quatro álbuns – porém essencial,  os Racionais são os maiores cronistas do povo preto, pobre e marginalizado deste país.

Suas rimas precisas e preciosas se beneficiam ainda de uma abordagem musical luxuosa, coisa de quem conhece  black music – brasileira e estrangeira – de ponta a ponta.

Enfim, uma turma difícil de ser superada, mesmo com a imensa qualidade da cena de rap brasileiro desde os anos 1980.

Nesta entrevista, o Racional Edi Rock saúda a Bahia – terra de seu pai –, fala dessa caminhada de 30 anos, da obra do grupo e do Brasil, entre outros tópicos.

Como é o show? Vem com banda completa, cenário, projeções etc?

Edi Rock: O show é aquele que ganhamos o APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte) em 2018. Com banda completa ao vivo e um led com projeções e tal. É chegar e conferir, esperamos todos na Arena Fonte Nova.

O repertório faz uma geral na carreira do grupo, correto?

ER: É um retrospecto da nossa discografia, uma linha do tempo passando por todos os discos.

Sobrevivendo no Inferno  é um álbum tão marcante e importante para a cultura brasileira que virou livro (Companhia das Letras, 2018) – e este se tornou leitura obrigatória no vestibular da Unicamp. Te surpreendeu essa sequência de acontecimentos ou hoje em dia isso nem  abala mais?

A rapeize cabulosa na foto de Klaus Mitteldorf
ER: Com certeza é muito importante. Não só importante, como também emocionante, aconteceu o que nós mesmos falávamos, isso faz parte da revolução que o grupo sempre cantou desde o começo, como por exemplo na música Voz Ativa. O rap salvou as nossas vidas e pelo que eu entendi, o livro tá representando essa missão. O melhor de tudo isso pra mim é tá vivo pra ver acontecimentos históricos como esse.

Ainda sobre o Sobrevivendo..., como vocês mesmos veem essa obra hoje, dada a forma como tempo muda a perspectiva das coisas? Certamente vocês tem orgulho, mas ele também pesa, tamanha sua importância, inclusive na obra dos Racionais? Ele ofusca, faz "sombra" sobre os outros discos, digamos assim?

ER: Cada integrante responderia de uma forma, na minha opinião o Sobrevivendo é um dos trabalhos mais importantes da banda. Existe o rap antes dele e depois, foi um divisor na história da música, do rap, dos negros, da periferia. Destaco também (o álbum) Raio X do Brasil (1993). Mas não vejo sombra, nem acho que ofusque, vejo a importância pra história. Foi necessário, porém, vida que segue, não podemos ficar no passado, mas sim usar esse disco como referência, olhando pra frente.

As letras dos Racionais são muito sofisticadas do ponto de vista literário. Alguns relatos são tão palpáveis que se pode "sentir" o cheiro, a tensão dos ambientes que vocês descrevem. São relatos incrivelmente ricos. Para escrever desta forma, é preciso ser bem educado, gostar de ler. Vocês eram bons alunos na escola, então? Ou são autodidatas? Como se prepararam para escrever tão bem, mesmo em condições tão adversas?

ER: Em média no grupo temos o ensino fundamental. O complemento foi por esforço próprio. Foi necessário o conhecimento, a leitura é fundamental para o poeta, somos poetas e o combustível disso são palavras. Gosto muito de filmes também. Todos os dias passo a madrugada vendo filme, desde quando ainda existiam locadoras. Gosto do cinema, das tramas, das histórias, dos romances, dos heróis, dos vilões, dos efeitos, da trilha, e tento passar isso nas músicas. Fazemos meio que cinematográfico mesmo, é intencional. Faço na música o que gostaria de ouvir, da forma que eu ficaria feliz ouvindo. Quando escrevo é como se estivesse escrevendo um roteiro. Nossa intenção é despertar e provocar a imaginação. Na escola eu era bom aluno. Do fundão, mas com boas notas em redação, estudos sociais, artes, sempre fui bem criativo. O (Mano) Brown, pelo que fala, sempre foi bom também em geografia, história, esse naipe.



Marighella, para nossa geração, sempre foi um símbolo de luta e resistência à ditadura militar, mas parte da juventude millenial comprou a versão de que ele era só um terrorista que queria instaurar uma "ditadura comunista" no Brasil. Como veem esse gap entre gerações? Falhamos em ensinar a História aos mais jovens? A música Mil Faces de um Homem Leal (Marighella) (2012) é tipo um esforço da parte de vocês?

ER: Acho que tudo que é em favor do povo é marginalizado, sempre cercado de preceitos mentirosos, hipocrisias e preconceitos. A hierarquia do poder na história do Brasil tem medo do que não pode entre aspas controlar, haja vista a prisão do ex-presidente Lula. No Brasil de hoje vemos o passado voltar à tona: coronelismo, repressão, extermínio, intolerância religiosa e de gêneros. Os gestores desse país nos dias de hoje enaltecem a ditadura com uma Bíblia em baixo do braço. Acho isso no mínimo engraçado, parece que voltamos ao século 16. Marighella nos dias hoje seria morto da mesma forma, ou talvez pior, exposto como fizeram com o Che, Escobar, ou até da forma como expuseram e mataram “Jesus” (aspas do entrevistado), longe de comparações, é lógico. Mas governos como o nosso não aceitam heróis do povo, heróis populares representam ameaça à ordem entre aspas. E falando sobre a música, ela foi feita para o filme (de Wagner Moura), se eu não me engano. Lembro quando fizeram o convite para o Brown, a música acabou saindo bem antes, inclusive o Brown ia interpretar o Marighella no filme, mas por conta da agenda de shows e compromissos, não foi possível. Brown tinha acabado de lançar seu álbum solo Boogie Naipe (2016), e para o filme era necessário dedicação de laboratório integral. No fim, quem fez o Marighella no filme foi ninguém mais nem menos que Seu Jorge, e adivinha o que aconteceu? Ele teve a data de estreia cancelada. Século 21, de volta ao Século 16.

Como vocês avaliam a evolução da sonoridade dos Racionais ao longo do tempo? As referências de som ainda são as mesmas? Tenho impressão que, com o tempo, os arranjos ficaram mais secos e diretos, sem os samplers de arranjos de cordas, por exemplo.

Edi Rock olha para trás: "Envelhecendo igual vinho". Ft Klaus Mitteldorf
ER: Na minha visão, e repito, cada um de nós tem uma opinião, na minha visão de produtor, eu dirijo minhas músicas a vida inteira, parei de produzir apenas para escrever agora, mas na minha opinião, fazemos experiências em cada álbum, além de tentar fazer o que não fizemos, tentamos fazer principalmente o que estamos ouvindo naquele momento de criação. No meu caso, sempre tento passar qual a brisa do meu momento na época de composição e criação. Hoje tá bem mais diferente do que antes, e te falo que está melhor, muitos produtores bons, jovens e criativos, não precisamos mais nos preocupar com essa parte. Eu gosto da forma que eu venho fazendo, estou feliz e vem dando bons resultados, me preocupo apenas com a parte autoral de letra, a parte de produção musical apenas direciono. Tem muita coisa boa e surpresas pela frente, digo para os fãs de Racionais que é aguardar e ver. Muito sample, participações de músicos monstros da nossa MPB e lógico, muito peso, que sempre foi a nossa característica. A banda tá passando por um momento muito bom na vida e na carreira, profissional e pessoal. Não gosto de pegar carona em clichê, mas estamos envelhecendo igual vinho e isso é inspirador, é fundamental estar bem.

Como é a relação dos Racionais com Salvador? Vocês tocam aqui há bastante tempo. Tem alguma história da banda em Salvador que vocês possam nos contar?

ER: Minhas origens são nordestinas, minha e do Brown, ele por parte de mãe e eu por parte de pai, então só por aí já existe uma sintonia natural, sem contar que a todo momento tem alguma citação na nossa rima envolvendo a região. A Bahia tá no sangue né, então imagina, é como se voltasse no tempo, é como ir à “África” (aspas do entrevistado). Tem o lado ancestral pra mim, lembro de visitar o bairro onde a mãe do Brown cresceu, parou (a rua), multidão, emocionante. Recentemente, gravei um videoclipe aqui também, chama-se De Onde Eu Venho, justamente com essa finalidade de resgatar a ancestralidade. Bahia pra mim é isso, cultura, política, vida, luta, referência, música, arte, estética, raiz, pura inspiração. Tenho alguns amigos muito queridos em Salvador, do (grupo) Rap Nova Era, por exemplo, do reggae, do samba, todos meus irmãos. Bahia é mil trutas e mil tretas.

RACIONAIS MCs: 3 Décadas Tour 2019 / Abertura: Afrocidade / Hoje, 22 horas (abertura portões) / Arena Fonte Nova /R$ 120 / Vendas: eventim. com.br, lojas South e balcões Pida!

quarta-feira, outubro 02, 2019

ARMORIAL REVISITADO

Música nordestina de veia europeia medieval é resgatada pelo Duo Armorial

Julio, Daniel e amigos. Foto Flavia Maciel
Separados, Júlio Caldas e Daniel Neto já contam com boa estrada e reconhecimento da comunidade de músicos local, além dos fãs dos projetos em que atuam.

Juntos, Júlio e Daniel tocam um novo projeto que traz para Salvador uma antiga estética da cultura nordestina: a música armorial.

Acústica e de origem europeia medieval, a música armorial é a face sonora da estética arquitetada pelo genial Ariano Suassuna (e outros) para o Movimento Armorial, surgido em Pernambuco nos anos 70. Foi uma tentativa de se estabelecer uma cultura erudita essencialmente nordestina, a partir da cultura popular.

“(O Movimento Armorial) É um movimento cultural que visou mostrar a cultura popular nordestina, a música, a literatura, as artes plásticas, as tradições populares, a arquitetura e toda cultura em geral”, resume Julio.

No show / recital, Julio assume variados formatos de violas brasileiras, enquanto Daniel se acomoda na cadeira com seu acordeom.

“(No repertório) Revisitamos temas do Quinteto Armorial, tocamos folias de reis, fazemos adaptações de músicas de pífanos”, conta Julio.

“Tocamos compositores que pensam o nordeste, como o maestro pernambucano Duda. Tocamos Luiz Gonzaga, Dominguinhos e músicas autorais, tudo isso usando a sanfona e a viola”,  acrescenta.

Por enquanto, só ao vivo

Julio e Daniel na labuta. Foto Flavia Maciel
Relativamente recente, o Duo  tem se apresentado com certa regularidade no do Solar Gastronomia, mas tem potencial para invadir palcos de teatros, feiras e casas outras, graças à boa receptividade do som.

“A receptividade tem sido ótima. Esse trabalho tem o potencial de ser executado na rua, em praça pública, em teatro, ou em qualquer festival de música instrumental ou de jazz”, afirma Daniel.

“É um trabalho que, desde que fizemos a primeira apresentação, as coisas começaram a fluir espontaneamente”, acrescenta o acordeonista.

Por enquanto, só é possível ouvir o Duo Armorial ao vivo – e nem há uma data prevista de show por agora. Mas os músicos já pensam em alguma forma de registrar o trabalho: “(Gravar um álbum) Seria bacana, mas o disco tornou-se um conceito diferente hoje. A apreciação de música mudou. Não sei se um disco seria o ideal”, afirma Julio.

“Eu acho legal, no nosso caso, produzir uma série de vídeos. Mas, se pintasse uma gravadora, um selo que incentivasse... Booooom!”, diverte-se o músico.

Enquanto não pinta um registro ou show, ambos vão tocando outros projetos. “Estou finalizando um disco novo. Se chama Canções Amigas e trará composições de pessoas queridas da minha caminhada musical. Além disso, estarei em breve lançando o show BB King Sessions, relendo a obra do mestre e fazendo meus shows de blues, gênero do qual sou oriundo”, conta Julio.

“E eu estou me apresentando em parceria com alguns artistas do circuito soteropolitano e concluindo o terceiro EP da (banda) Toco y me Voy, além de preparar trabalho autoral para lançar ano que vem”, conclui Daniel.

NUETAS

Helsinque é aqui

E a turma da Finlândia não quer saber de ir embora da Bahia, não. Essa semana eles se apresentam duas vezes na city. Amanhã Hoje (02.10) tem Blizzard of Ozzmond e a local Gérbera no Bardos Bardos. 19 horas, pague quanto quiser. E domingo tem Blizzard, Blueintheface e Irmão Carlos no evento Faustão Falando Sozinho. 16 horas, no Espaço Cultural Dona Neuza, pague quanto quiser.

POWA às quintas

A banda POWA faz jazz/  black music instrumental  toda quinta no Mercadão.CC. 22 horas, pague quanto quiser.

Tremendão é amor

Sem ele, talvez não estivéssemos aqui. Erasmo Carlos apresenta o show Amor é Isso na Área Verde do Othon. Sábado, 18 horas, R$ 120.