sábado, dezembro 29, 2018

A IGNORÂNCIA QUE NUNCA FOI BÊNÇÃO E SEU REVERSO

Em Flores para Algernon, Charlie vai da burrice ao QI elevado em questão de dias, mas há coisas que ele nunca entenderá

Cliff Robertson: Oscar pela atuação em Os Dois Mundos de Charly (1968)
Um ditado comum da lingua inglesa nos diz que “ignorance is bliss”: a ignorância é uma bênção, em tradução livre. Flores para Algernon, livro do norte-americano Daniel Keyes (1927-2014), primeiro confirma, depois refuta o dizer.

Lançado em 1966, Flores... é um clássico contemporâneo nos EUA: vendeu cinco milhões de exemplares e até hoje é estudado nas escolas.

Dois anos depois de chegar às livrarias, foi adaptado ao cinema, no filme Os Dois Mundos de Charly (Charly), que rendeu um Oscar de Melhor Ator para o esquecido Cliff Robertson no papel-título.

Na trama, acompanhamos a trajetória de Charlie Gordon, um homem de 32 anos com a inteligência (e a mentalidade) de um garoto de seis.

Selecionado para servir de cobaia em um revolucionário tratamento que promete transforma-lo em um gênio com QI de 130, o próprio Charlie é o narrador de sua história, a partir dos relatórios que os cientistas lhe pedem para redigir, descrevendo seu dia a dia a fim de avaliar seu avanço.

A evolução na escrita do personagem é um dos atrativos do livro. De início, tudo é mal-escrito, com muitos erros de ortografia, concordância e sintaxe.

À medida que o tratamento vai fazendo efeito, seus textos ganham não apenas exatidão técnica, mas também profundidade, muitos questionamentos e – ainda mais – infelicidade.

E aí entra a confirmação do ditado do primeiro parágrafo.

À medida que vai ganhando poder mental, o cérebro de Charlie começa a desenterrar, do fundo de sua memória, todas as lembranças de uma infância e adolescência infelizes.

Menino, Charlie era desprezado pelos pais. Após o nascimento de uma irmã caçula, foi entregue por eles para viver só em um abrigo.

Essas lembranças, aliadas à frustração que sente ao não ser correspondido em seu interesse amoroso e ao fato de ser tratado como um rato de laboratório pelos cientistas, vão tornando Charlie um sujeito cada vez mais angustiado e problemático.

A ignorância, de fato, era uma bênção para o pobre Charlie. Felizmente, porém, o livro de Daniel Keyes está longe de ser um elogio à ignorância e à burrice.

Com Claire Bloom como a Dra. Alice Kinian
Obra humanista

Com a inteligência aguçada e o conhecimento que vai adquirindo, Charlie ganha algo além da angústia de se deparar com certas verdades inconvenientes: a consciência de si, do outro e da sociedade que o cerca.

Em um dos momentos mais pungentes do livro, Charlie fica enfurecido em um restaurante, ao perceber que alguns clientes caçoavam de um servente que parecia sofrer do mesmo problema que ele.

“Que estranho é o fato de pessoas de sensibilidade e sentimentos honestos, que não tirariam vantagem de um homem que nasceu sem pernas ou braços ou olhos, não verem problema em maltratar um homem com pouca inteligência”, observa, em seu relatório.

Delicado, o livro de Daniel Keyes nos lembra da responsabilidade que a inteligência traz: cabe aos que tem consciência iluminar os que não tem, cabe aos fortes proteger e zelar  pelos fracos.


Profundamente humanista, Flores Para Algernon é uma obra atemporal, que discute diversos temas sociais pela ótica ora inculta, ora culta de seu personagem principal, alguém que quanto mais sabe, menos se satisfaz com respostas fáceis.

Alguém complexo como qualquer ser vivente, seja dotado de pouca, muita ou nenhuma inteligência. Todos dignos de viver plenamente.

Flores para Algernon / Daniel Keyes / Aleph / Tradução: Luisa Geisler /  288 páginas/ R$ 59,90/ www.editoraaleph.com.br


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