quarta-feira, dezembro 26, 2018

MESTRES DA NARRATIVA

Edições de luxo em P&B resgatam trabalhos esquecidos de dois grandes artistas das histórias em quadrinhos: Bernie Krigstein e Mike Mignola

Drácula, de Mike Mignola
Como se sabe, vida de artista não é fácil. Muitos só são reconhecidos e valorizados após a morte. Van Gogh é o caso mais famoso, mas Franz Kafka, Edgar Allan Poe, Claude Monet e Lima Barreto (entre muitos outros) também só atingiram a fama depois de mortos.

Nas HQs, o caso mais famoso talvez seja o de Bernie Krigstein. Já Mike Mignola, que está bem vivo, deu sorte: é reconhecido e festejado no mundo todo.

Mas Krigstein e Mignola tem um ponto em comum: ambos são mestres.

Não o fossem, edições de luxo como as de  O Perfeito Estranho (de Krigstein, pela editora Mino) e Drácula (de Mignola, pela Veneta) não seriam lançadas com tamanho cuidado e capricho editorial.

Natural do Brooklyn, Nova York, Bernard Krigstein  (1919 - 1990) tinha em si a marca dos grandes artistas: não se satisfazia com pouco.

“Esticava a corda”, como se diz, até conseguir o resultado que entendia ser o mais satisfatório.

Além da corda, Krigstein é mais conhecido por esticar outra coisa nos quadrinhos: o tempo. Artista plástico de formação acadêmica, o jovem Bernie queria mesmo era ser pintor.

Como nos Estados Unidos pós-crash da Bolsa isso estava  fora do seu alcance, começou a trabalhar desenhando histórias em quadrinhos.

Uma das HQs de Bernie Krigstein na edição da Veneta
Com sua formação sólida e talento natural, Krigstein começou a perceber que a linguagem dos quadrinhos, na época, ainda poderia ser melhor desenvolvida e se tornar uma forma de arte respeitável, e não apenas um passatempo ligeiro e descartável para crianças e pessoas de pouca educação, como era visto então.

Suas HQs, aos poucos, começam a ganhar certa sofisticação visual e formal, com desenhos classudos e diagramação de páginas insólitas.

Não que ele fosse o único: nomes como Winsor McCay (Little Nemo), Alex Raymond (Flash Gordon) e Will Eisner (The Spirit) já exploravam as infinitas possibilidades da narrativa sequencial antes de Krigstein.

O fato é que Krigstein, durante os anos da década de 1950 em que trabalhou na editora EC Comics, esteve na vanguarda da modernização da linguagem das histórias em quadrinhos.

O auge de sua produção é o conto Raça Superior, apontada por muitos críticos ainda hoje como a mais importante HQ já publicada.

E aí chegamos ao ponto em que Krigstein “esticou o tempo”. Cinematográfica, Raça Superior inaugurou um novo padrão de narrativa ao “descomprimir” a ação dos personagens em uma HQ.

A página de HQ mais estudada de todos os tempos
O exemplo mais perfeito disso está justamente na última página (vista ao lado colorida, pescada de uma edição americana).

Nela, vemos um personagem correndo passo após passo e caindo na linha do trem, o efeito do trem em movimento diante do personagem  parado na estação e depois ele lentamente se virando para ir embora.

Antes de Raça Superior, esse tipo de “decupagem” cinematográfica de uma cena simplesmente não existia.

“O que é fascinante é o que acontece entre um quadrinho e outro. [...] Olhe para toda aquela ação dramática que ninguém tem a chance de ver. É entre esses quadrinhos que a coisa realmente acontece. E, a menos que o artista possa mergulhar nisso, a forma permanece infantilizada”, disse Krigstein em uma entrevista citada pelo jornalista Rogério de Campos em sua introdução.

Não a toa, Krigstein é apontado por nove entre dez quadrinistas de ponta como influência direta.

Pode por aí na conta gente do naipe de Art Spiegelman (Maus), Chris Ware (Jimmy Corrigan, O Menino Mais Esperto do Mundo) e Daniel Clowes (Ghost World).

Frank Miller (do clássico Batman: O Cavaleiro das Trevas, entre outros) diz que o copiou, mesmo, na cara dura.

Estupenda, a edição da Veneta traz dezenas de HQs da fase áurea de Krigstein, (incluindo Raça Superior) e diversos textos sobre o artista, sua obra e sua época, incluindo um de seu biógrafo, Greg Sadowski, detalhando HQ por HQ.

Jogos de luz e sombras

Drácula, de Mike Mignola
Já Drácula, de Mike Mignola, é outro caso muito interessante.

Badaladíssimo entre os fãs (e na indústria das HQs) desde fins dos anos 1980, Mignola estourou mesmo ao criar o personagem Hellboy, lançado pela editora Dark Horse em 1994.

Sucesso estrondoso, o personagem já estrelou dois filmes longa-metragem dirigidos por Guillermo Del Toro e tem um terceiro prestes a chegar às telas em 2019.

Mas sua versão de Drácula, na verdade, surgiu antes disso, em 1992. Trata-se de uma adaptação em HQ do filme dirigido por Francis Ford Coppola, que foi um estouro de bilheteria naquele ano.

Esquecida, a HQ de Mignola ficou fora de circulação por vinte tantos anos – apesar do culto dos fãs do artista em torno da obra –, e só voltou em nova edição agora, em 2018.

Esplendorosa, a HQ, com roteiro do veteraníssimo Roy Thomas (o mais aplicado discípulo de Stan Lee), traz em si todas as qualidades que fizeram de Mignola um astro: os jogos de luz, o clima sombrio, o detalhamento de cenários, figurinos e as tomadas de ângulos insólitos.

Milhares de vezes adaptadas em todas as mídias possíveis, a obra de Bram Stoker tem nesta HQ e no filme que a originou uma de suas visões mais originais e emocionantes.

Com a arte de Mignola preservada em glorioso P&B, tem fôlego para seguir século 21 adentro como o clássico imortal que sempre foi.

O Perfeito Estranho / Bernie Krigstein / Veneta / Tradução: Dandara Palankof / 262 p. / R$ 94,90

Drácula / Bram Stoker, Roy Thomas, Mike Mignola, John Nyberg / Mino/ Tradução: Dandara Palankof/ 136 p./ R$ 84,90

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