Matita Perê é Rafael Galeffi, Luciano Aguiar e Borega. Foto João Alvarez |
Já lançado em Feira de Santana no último dia 29, Reino dos Encourados é mais do que a estreia do trio formado por Borega, Luciano Aguiar e Rafael Galeffi.
É também o resgate da memória e da obra de um artista popular de valor, que a Bahia esqueceu (ou mal conheceu): Giberval Melo (1939-2006).
Pai de Borega, Gilberval nasceu em Juazeiro do Norte (CE) mas ainda jovem se estabeleceu em Feira de Santana, onde trabalhou como funcionário do Banco do Brasil. Lá, desenvolveu sua carreira paralela.
“Meu pai foi bancário do Banco do Brasil, compositor e artista plástico. Na terça-feira (28), véspera do lançamento do CD em Feira de Santana, completou 11 anos de sua partida, Chicão. Nasceu em Juazeiro do Norte (CE). Meu avô mudou-se com a família primeiro para Petrolina (PE), depois para Jacobina (BA), onde meu pai viveu sua adolescência. Aos 23 anos, deixou o Derba em Salvador, para tomar posse na Agência do BB em Feira. Foi na Princesa do Sertão que ele encontrou sua arte, como compositor e pintor de olhar especial para as temáticas do vaqueiro e da existência humana diante da aridez do sertão”, relata Borega.
Reino dos Encourados nasceu de um desafio proposto ao trio pelo médico César Oliveira, proprietário do jornal Tribuna Feirense.
“Foi um convite do meu amigo, médico e cronista César Oliveira, proprietário do jornal Tribuna Feirense. Durante a confraternização de final de ano do jornal, em Feira de Santana, em 2015, numa rara oportunidade em que pude ir. O filho dele levou violão, toquei uma música de meu pai, Andarilho, todos ficaram encantados, pediram mais, toquei Carro de Boi e outras”, conta Borega.
“De repente, ele levantou a ideia, disse que apoiaria esse registro e me pediu prazo e orçamento. Procurei os matitas, eles aceitaram o desafio, e a gente fez o caminho do Reino dos Encourados. Este é o primeiro álbum oficial. A gente brinca – o nosso primeiro álbum com código de barras (risos). Gravamos um disco demo em 2002, meio ‘marginal’, que não passou por processo de fábrica, foi sendo copiado em computador mesmo, mas que teve um alcance fantástico, com qualidade técnica e que toca até hoje na rádio Educadora, por sinal. Das oito faixas, três são baiões. Um destes nós regravamos, a canção Rosiana, uma letra belíssima de Luciano Aguiar em referência ao Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. Então esse sertão sempre nos acompanhou, tanto na criação autoral quanto na escolha de repertório a se trabalhar. Aliás, a escolha do nome Matita Perê como proximidade a Tom Jobim, autor de música e disco com esse nome, é porque esse LP dele, assim como Urubu e Stone Flower (Quebra Pedra), traz esse sertão pra dentro da obra dele. No Reino dos Encourados, isso está escancarado. O maestro soberano sempre me influenciou nos arranjos, a flauta, o cello, o caminho harmônico. Depois dele é o Dori Caymmi”, conta.
Como pintor, Gilberval participou de coletivas com artistas importantes, como Juraci Dórea e Antonio Brasileiro.
Em 1978, destinou a renda da sua primeira exposição individual, O Sertão, para bancar parte dos gastos para a construção da Casa do Sertão, museu hoje pertencente à Universidade Estadual de Feira de Santana.
“Giberval retratou, também no canto e na composição, a alma catingueira de Feira e região. Levou essa verve sertaneja para os festivais de música que participou no País, como em São Paulo e Londrina (PR), e no disco que lançou, de forma independente, em 1987”, acrescenta Borega.
Deste LP de 1987, que teve participação de músicos de primeira linha como Alfredo Moura, Luizinho Assis e Carlinhos Brown, o trio pinçou a faixa Carro de Boi, uma das cinco da autoria de Gilberval no CD.
"Gravado em 16 canais no estúdio WR, em Salvador, o elepê Lembranças tem oito canções de sua autoria, arranjadas por Carlinhos Marques e com a participação de músicos da banda Acordes Verdes, como os tecladistas Alfredo Moura e Luizinho Assis e o percussionista Carlinhos Brown, além do lendário maestro Orlando Silveira, no acordeon", conta.
Suas obras seguem preservadas pela família de Borega, incluindo as telas, os desenhos e as gravações caseiras.
"Temos algumas gravações caseiras. Não temos todos os registros de suas composições gravadas, temos as letras, mas não o registro melódico de todas. Minha mãe, dona Zuleide, tem um acervo de telas e ainda ilustrações em blocos de desenho, que preservamos com carinho. O ano passado, reunimos pouco mais de 50 telas para que meu amigo, fotógrafo e jornalista João Alvarez, fizesse a reprodução. Ele chamou o colega Dario Guimarães para realizar a tarefa com ele", continua Borega.
Uma delas, Andarilho, registrada em 1984, aparece no álbum como vinheta e também como faixa de abertura, devidamente rearranjada e executada pelo Matita, com João Omar (filho de Elomar) no violoncelo.
De fato, a obra de Gilberval se encaixou como uma luva à estética buscada pelo grupo, um diálogo em alto nível com a cultura popular.
“O Matita reverencia e sempre reverenciou a cultura sertaneja, uma das mais populares e ricas do país, expressa em todas as linguagens artísticas e matéria prima de grandes mestres brasileiros. Algo para muito se orgulhar. Seus ritmos, como o xote, o baião e o xaxado, são prato cheio para um aprofundamento estético. E a proposta do grupo de usar uma linguagem musical sofisticada sem nunca deixar de ser popular está nitidamente presente no Reino dos Encourados”, afirma Rafael Galeffi.
“Em meio a versos singelos, notas serenas ou tensas, muito mistério é destilado na harmonia das cordas, do fole do acordeão, nas intervenções percussivas e por aí vai. Sobre esse lastro, surgem no disco momentos de improvisações jazzísticas e até uma citação à Ária da 4ª Corda, de J.S.Bach, na canção Andarilho, de Giberval Melo. Esta última, no arranjo de Borega e no violoncelo do maestro João Omar, filho do gênio Elomar, nos permite, por exemplo, traçar um paralelo entre a música clássica europeia e a herança cultural do divino, evocando uma atmosfera musical de introspecção própria do sertanejo nordestino. Há, no álbum, muitas pistas para se chegar ao Reino dos Encourados”, acrescenta.
Obra de Gilberval, uma das várias que estão na capa e encarte de Reino... |
A estrela é a música
Com 17 anos, o Matita é quase uma lenda em certos círculos culturais da cidade. Com apenas um EP artesanal lançado em 2002, faz poucos shows, apesar de ter um vasto acervo de composições ainda não registradas. Sua música guarda muita influência de Tom Jobim e Dori Caymmi, entre outros.
Em Reino dos Encourados, o trio finalmente demonstra sua excelência musical em cinemascope.
Não a toa, o álbum já nasce premiado, com a faixa Baião Bachiado, de Borega, vencedora do Festival da Educadora FM 2016, como Melhor Música Instrumental.
Com este primeiro álbum finalmente lançado, o trio faz planos para o futuro. “O Matita tem uma perna só, mas cobra o escanteio e corre pra área pra cabecear”, brinca Luciano.
“Este ano, o palco do Matita será preferencialmente do Reino dos Encourados, um projeto que se estende para além do disco, com arranjos para músicas como Lamento Sertanejo (Gil e Dominguinhos) e Pau de Arara (Gonzagão e Guio de Moraes), além de composições próprias como Maria Sol, minha e Borega”, acrescenta.
"Trabalhamos na viabilização desse projeto, que é perfeito para o período junino, por exemplo, e depende de uma equipe de músicos forte e sobretudo de uma boa produção. Também mantemos de pé o desejo de trazer novamente ao palco o show Curimã Lambaio, em homenagem ao mestre Caymmi. Além disso, outro disco também será gravado ainda este ano. Já agora em abril, entramos em fase de pré-produção. Com relação a vídeos e outras mídias para além da música, aos poucos estamos nos apropriando dessa linguagem. Não duvide que algo de bom venha pela frente", acrescenta.
Músicos por vocação, mas não por profissão, Borega, Luciano e Rafael nunca puderam se dedicar integralmente ao grupo. Mas sem mágoas.
“Meu parceirão Borega costumava dizer, emocionado, em shows, que, por enquanto, nós não podíamos viver da música, mas que tão pouco poderíamos viver sem ela. O Matita, no nosso coração, parece ser eterno, como na lenda”, conta Luciano.
“Ou seja, enquanto estivermos por aqui, ele estará lá, pois não é uma banda almejando sucesso, mas sim uma concepção partilhada, um projeto em plena confabulação, continuação e aprimoramento. Eis a razão de sua longevidade. A estrela é a música. Qualquer ascensão pública não será meio, mas consequência. Neste momento, com o disco, temos fé de que demos um imenso impulso no moinho, fazendo-o girar. Até mesmo porque já encontramos meios de gravar outro CD e continuar a escoar essa extensa obra represada. Sim, nosso sonho é que a música nos recolha de vez para ela, tome todo nosso tempo e nos garanta uma vida digna. Os passos estão sendo dados”, conclui o músico.
Matita Perê / Show de lançamento: Reino dos Encourados / Sexta-feira, 19h30 / Espaço Gonzaguinha do Restaurante Gibão de Couro (Rua Mato Grosso, 53, Pituba) / Entrada franca / www.grupomatitapere.com.br
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