quarta-feira, abril 12, 2017

RUMO AO DESCONHECIDO

Em 2012, Raphael Erichsen e três amigos foram os primeiros brasileiros no Rally Mongol, uma Corrida Maluca da vida real. A experiência está no livro Tudo Errado

Infinitas highways entre a Europa e a Ásia Central. Fotos Raphael Erichsen
As vezes, só o que você precisa é jogar tudo para o alto e pegar a estrada.

No auge da depressão por conta de uma separação, o documentarista Raphael Erichsen cruzou Europa e Ásia à bordo de um carro de passeio no rally mais insano do mundo, experiência narrada em seu livro Tudo Errado.

Em 2012, Raphael e mais três amigos (Pedro, Celina e Daniel) formaram a Brazil Nuts, primeira equipe brasileira a participar do Mongol Rally, uma não-competição organizada pela empresa britânica de aventuras Adventurists.

Em tempo: o rally é uma não-competição por que não importa quem chega primeiro. Na verdade, os primeiros a chegar são considerados perdedores, por que não aproveitaram a experiência.

No  Rally Mongol, os participantes devem sair de Londres e chegar em Ulan Bator, capital da Mongólia – distância equivalente a 1/3 da superfície da Terra.

Além deste livro, a experiência de Raphael foi narrada na série exibida pelo canal Multishow Rally Mongol (2012).

"O livro é um baita desabafo, uma maneira de expor o que eu estava sentindo e que a série não mostra”, conta Raphael, por email.

A simpática garotada da Mongólia
“Na verdade, o livro começou a ser escrito durante o rally. Nós ficávamos muitas horas por dia trancados no carro e cada um arrumou uma maneira de passar o tempo, eu resolvi escrever. Por outro lado, minha vida estava uma bagunça, e tudo o que estava acontecendo me parecia uma loucura, eu precisava botar aquilo para fora de alguma maneira. O livro foi escrito originalmente com uma caneta esferográfica e uma caderneta – acho que poucas pessoas ainda escrevem assim um livro”, acrescenta.

Não há rotas estabelecidas, e em muitos trechos não há sequer estradas. Os veículos não podem ser turbinados e sim, carros comuns – e velhos, de preferência, incluindo carros de bombeiros e ambulâncias.

Para completar, os participantes, de várias partes do mundo, se esmeram em fantasiar à si mesmos e aos carros.

Há bombeiros, carros com banheiras no teto, aviadores, super-heróis, carros revestidos de pelúcia – e por aí vai. Uma Corrida Maluca da vida real.

Toda essa loucura tem um pano de fundo humanitário: em Ulan Bator, os carros são doados à ONG Lotus Charity Foundation, que cuida das crianças de rua locais.

No trajeto, que durou cerca de um mês, Raphael e parceiros iam do céu ao inferno quase todos os dias.

Raphael Erichsen toma um fôlego 
A cada checkpoint, uma festa rave muito louca preparada pela organização. E a cada cidade, apuros nas mãos de figuras suspeitas (civis e uniformizadas) pela Turquia, Cazaquistão, Rússia e Mongólia.

Foi justamente no fim da viagem, em pleno deserto mongol, que o quarteto passou seu maior momento de aflição.

“O momento do resgate foi o mais dramático da história toda. Não só por eu achar que não ia sair vivo mas também porque a vida dos outros companheiros de time também dependiam da ação um do outro. O negócio é que como eu estava super frágil emocionalmente qualquer mosca que passasse eu já achava que as coisas iam dar errado e é muito ruim viver assim. Você sentir uma dor nas costas porque passou o dia inteiro dentro do carro e achar que já é um câncer fulminante – essa foi uma das minhas descobertas, que eu conseguia conviver comigo mesmo. No final das contas, o livro é sobre essas descobertas”, conta.

Um tema que permeia a narrativa é a dificuldade de confiar em estranhos - que ainda por cima não falam sua língua e muita vezes, sequer falam inglês. No livro, os Brazil Nuts aprendem na marra.

Cazaquistão? Rússia? Mongólia? Sta. Rita do Passaquatro?
“É um exercício diário, mas sim, procuro cada vez mais confiar nas pessoas. E é realmente difícil. O que acontece hoje é que eu passei a observar isso em outras pessoas e no geral elas tem muita dificuldade em confiar. E isso serve para tudo. Me parece que vivemos hoje em um mundo onde tudo é muito controlado e com pouca margem para erros. Errar é o mais divertido da história e aprender a conviver com isso pode ser muito gratificante. Então, se você confia, joga os dados e deixa as coisas acontecerem do jeito delas, normalmente você vai se surpreender positivamente. Já me dei mal muitas vezes também mas se você aprende a lidar com isso, consegue enxergar que isso pode não ser o fim do mundo”, reflete.

No fluxo de consciência

No trajeto, Raphael, Pedro, Daniel e Celina conhecem uma pá de gente maluca entre os participantes do Rally. De cara, o autor cultiva uma paixonite instantânea por Saskia, uma neozelandesa. Cheia de atitude e muito segura de si, Saskia logo se torna uma espécie de amuleto para ele, que a cada dificuldade, pensa como ela lidaria com a situação.

Brazil Nuts: Daniel, Celina, Pedro e Raphael
"Hoje em dia, todo mundo é amigo no Facebook e acaba que fica uma coisa muito superficial. Como documentarista, já passei muito por isso, de ter um convívio muito intenso com uma pessoa e depois que a jornada termina, você perde o contato e só da feliz aniversário quando lembra. A única pessoa, tirando meus companheiros de time, que eu fiquei muito amigo foi a Saskia, a heroína do livro, e sigo acompanhando o que ela faz. No momento ela está na Índia rodando um documentário sobre mulheres em situação de risco. Ela não para", conta.

Escrito de forma ultra espontânea, Tudo Errado é um relato de viagem frenético, que torna o livro difícil de largar, uma vez iniciada sua leitura.

Leitor voraz, ele não esconde que se inspirou nas trips dos beatniks. “Com toda certeza os beats me influenciaram muito. Li quando era mais novo, principalmente Charles Bukowski e John Fante, mas têm outras influências também. De certa forma, eu queria soar um pouco como Holden Caulfield n’O Apanhador no Campo de Centeio, do JD Salinger”, afirma.

“Outra coisa que  me preocupei foi ser o mais transparente possível. O livro é sobre uma entrega, e por isso ele tem uma linguagem muito coloquial – as pessoas dizem que se sentem numa mesa de bar comigo quando o leem e era bem isso que eu queria”, conta.

O senhor pode informar pra que lado fica Ulan Bator?
Em Tudo Errado, Raphael abre o peito e desnuda todos os seus medos, incertezas, desejos e traumas, incluindo a depressão e síndrome de pânico que estava tratando com remédios imediatamente antes de embarcar na viagem.

“Eu tento me lembrar de ir para a Mongólia todos os dias e para mim, isso significa lembrar de viver uma vida mais criativa, com mais vontade e menos monótona. Como eu digo no começo do livro, a vida é como uma roda gigante cheia de altos e baixos”, diz.

“De lá pra cá, já tive novos altos e vários baixos – quem consegue ser feliz o tempo inteiro? Posso dizer que eu não tomo mais remédios, o que mudou radicalmente minha vida. Posso dizer que eu não tomo mais remedios o que mudou radicalmente a minha vida. Hoje em dia quando tenho problemas com a minha cabeça tento resolver com leitura e esporte, ou tentando criar uma aventura nova para mudar de ambiente. Sair da zona de conforto é uma ótima maneira de se voltar contra essas pegadinhas que a mente faz com a gente”, conta Raphael.

Documentarista experiente, Raphael dirigiu o elogiado Ilegal, sobre a luta de algumas famílias brasileiras para conseguir importar remédio a base de maconha para filhos com epilepsia severa.

"Este ano sai um outro filme chamado Cara do Mundo, sobre um grupo de jovens da periferia de São Paulo, descobrindo o mundo através dos emigrantes e refugiados na cidade. Em abril, um filme que dirigi em 2014, chamado Radical (sobre o lendário surfista Dadá Figueiredo) entra no NetFlix no mundo todo, então estou trabalhando na divulgação dele também. E já estou planejando novas jornadas para novos livros também, vamos ver no que dá", avisa.

Tudo Errado / Raphael Erichsen / Impossível Editora / 288 páginas / R$ 50 / www.raphaerichsen.com.br

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