sexta-feira, março 27, 2009

GUERRA & MEMÓRIA

Chega as livrarias versão em quadrinhos de Valsa Com Bashir, premiado documentário em animação sobre a guerra no Líbano

Desde os anos 80, o tema da guerra tem rendido excelente obras de romance gráfico, como Maus, de Art Spiegelman (premiada com o Pulitzer) e Persépolis, de Marjane Satrapi, só para ficar nos exemplos mais notórios. Agora, com o lançamento de Valsa Com Bashir, esta lista acaba de ganhar mais um item de valor.

O que realmente difere Bashir de seus predecessores é que a HQ veio a reboque de uma película previamente lançada (ganhadora de diversos prêmios, entre ela o Globo de Ouro de Melhor Filme Estrangeiro), enquanto Persépolis só virou filme de sucesso anos após sua aclamação como HQ. O caso de Maus é ainda mais diverso, já que seu criador é publicamente contra a adaptação de sua obra para as telas de cinema.

Já a forma como o roteirista (e diretor do filme) Ari Folman costura sua narrativa se aproxima de Maus e Persépolis no sentido de que todos eles partem do tema da memória para reconstruir, de forma cronológica, os acontecimentos de um período traumático de guerra e privação.

Folman utiliza sua obra como uma terapia para reconstruir, na sua cabeça, aqueles dias tenebrosos da invasão israelense a Beirute (capital do Líbano) em 1982, quando a milícia cristã Falangistas, apoiada por Israel, massacrou cerca de 3,5 mil refugiados palestinos nos campos de Sabra e Shatila – com a desculpa de que iam purgá-los dos terroristas.

Folman, então um recruta do exército, não participou ativamente do massacre.

O papel do exército israelense – comandado pelo então ministro da defesa Ariel
Sharon – no caso, foi o de cruzar os braços e abrir caminho para a milícia fazer o que fez.

O trauma ao testemunhar o resultado da ação dos Falangistas foi tal na cabeça de Folman, que ele simplesmente apagou tudo da sua memória.

Somente décadas depois, conversando em um bar com um amigo dos tempos do exército, Folman se dá conta desta lacuna em sua memória. Ao sair do bar, ele é atingido por uma cena específica da época: ele, mais dois companheiros, saem nus de uma praia em Beirute, enquanto sinalizadores cruzam o céu em meio a hotéis de luxo semi-destruídos pelo conflito.

A partir deste momento-chave em sua vida – e na obra em si –, ele começa a procurar outros parceiros de combate para reconstruir os dias que vieram antes e depois daquilo, além de conversar com um psicólogo e uma especialista em estresse pós-traumático.

O que se vê daí em diante é uma sucessão de depoimentos fortíssimos, entremeados de sonhos e alucinações, que denunciam, como nas melhores obras do gênero, toda a estupidez e falta de sentido que há em qualquer forma de conflito bélico.

Maquiagem pop – Se em Persépolis a narradora era uma jovem intelectual que via o conflito Irã-Iraque enquanto vítima, e, em Maus, o relato da guerra serviu para aproximar pai e filho, em Bashir, a narração parte de alguém diretamente envolvido no combate.

Pior: o relato aqui surge embotado pela óbvia culpa que, silenciosamente, corroeu um homem durante décadas, até que um gatilho – no caso, uma conversa de bar – disparou uma memória enterrada no subconsciente desta pessoa.

Não a toa, muitos críticos apontaram a obra de Folman como uma forma de descarrego da sua consciência – certamente pesada, depois de testemunhar, de braços cruzados, o massacre de milhares de mulheres, velhos e crianças que habitavam os campos de refugiados em Sabra e Shatila, já que os homens estavam no campo de batalha.

Marcada por um clima intimista de conversas face a face em que memórias e confissões surgem a todo momento, Valsa Com Bashir tem momentos fortíssimos, como, por exemplo, o relato do seu amigo Carmi.

Após beberem a noite toda em um barco, ele e seus companheiros desembarcaram em uma praia qualquer do Líbano. No lusco-fusco da aurora, atiravam a esmo em qualquer coisa que se mexesse diante deles. Quando o sol surgiu, o resultado a sua frente foi um carro civil – furado como uma peneira – com um família inteira massacrada dentro.

Mas o pior mesmo ficou para o final: com sua memória restaurada, Folman – e o desenhista e diretor de arte do filme, David Polonsky – substituem os desenhos por imagens reais aterradoras do massacre nos campos de refugiados.

Um golpe final na sofisticada maquiagem pop que emprestava uma moldura artística a história até ali.

O filme, premiado e aplaudidíssimo em festivais, tem estreia no Brasil marcada para 3 de abril. A versão em HQ, idêntica ao filme, já se encontra a disposição nas livrarias.

Valsa com Bashir
Ari Folman e David Polonsky
L&PM Editores
120 p. | R$ 46
www.lpm.com.br

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