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O que realmente difere Bashir de seus predecessores é que a HQ veio a reboque de uma película previamente lançada (ganhadora de diversos prêmios, entre ela o Globo de Ouro de Melhor Filme Estrangeiro), enquanto Persépolis só virou filme de sucesso anos após sua aclamação como HQ. O caso de Maus é ainda mais diverso, já que seu criador é publicamente contra a adaptação de sua obra para as telas de cinema.
Já a forma como o roteirista (e diretor do filme) Ari Folman costura sua narrativa se aproxima de Maus e Persépolis no sentido de que todos eles partem do tema da memória para reconstruir, de forma cronológica, os acontecimentos de um período traumático de guerra e privação.
Folman utiliza sua obra como uma terapia para reconstruir, na sua cabeça, aqueles dias tenebrosos da invasão israelense a Beirute (capital do Líbano) em 1982, quando a milícia cristã Falangistas, apoiada por Israel, massacrou cerca de 3,5 mil refugiados palestinos nos campos de Sabra e Shatila – com a desculpa de que iam purgá-los dos terroristas.
Folman, então um recruta do exército, não participou ativamente do massacre.
O papel do exército israelense – comandado pelo então ministro da defesa Ariel
Sharon – no caso, foi o de cruzar os braços e abrir caminho para a milícia fazer o que fez.
O trauma ao testemunhar o resultado da ação dos Falangistas foi tal na cabeça de Folman, que ele simplesmente apagou tudo da sua memória.
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A partir deste momento-chave em sua vida – e na obra em si –, ele começa a procurar outros parceiros de combate para reconstruir os dias que vieram antes e depois daquilo, além de conversar com um psicólogo e uma especialista em estresse pós-traumático.
O que se vê daí em diante é uma sucessão de depoimentos fortíssimos, entremeados de sonhos e alucinações, que denunciam, como nas melhores obras do gênero, toda a estupidez e falta de sentido que há em qualquer forma de conflito bélico.
Maquiagem pop – Se em Persépolis a narradora era uma jovem intelectual que via o conflito Irã-Iraque enquanto vítima, e, em Maus, o relato da guerra serviu para aproximar pai e filho, em Bashir, a narração parte de alguém diretamente envolvido no combate.
Pior: o relato aqui surge embotado pela óbvia culpa que, silenciosamente, corroeu um homem durante décadas, até que um gatilho – no caso, uma conversa de bar – disparou uma memória enterrada no subconsciente desta pessoa.
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Marcada por um clima intimista de conversas face a face em que memórias e confissões surgem a todo momento, Valsa Com Bashir tem momentos fortíssimos, como, por exemplo, o relato do seu amigo Carmi.
Após beberem a noite toda em um barco, ele e seus companheiros desembarcaram em uma praia qualquer do Líbano. No lusco-fusco da aurora, atiravam a esmo em qualquer coisa que se mexesse diante deles. Quando o sol surgiu, o resultado a sua frente foi um carro civil – furado como uma peneira – com um família inteira massacrada dentro.
Mas o pior mesmo ficou para o final: com sua memória restaurada, Folman – e o desenhista e diretor de arte do filme, David Polonsky – substituem os desenhos por imagens reais aterradoras do massacre nos campos de refugiados.
Um golpe final na sofisticada maquiagem pop que emprestava uma moldura artística a história até ali.
O filme, premiado e aplaudidíssimo em festivais, tem estreia no Brasil marcada para 3 de abril. A versão em HQ, idêntica ao filme, já se encontra a disposição nas livrarias.
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Ari Folman e David Polonsky
L&PM Editores
120 p. | R$ 46
www.lpm.com.br
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