sexta-feira, novembro 16, 2018

VIDAS CANADENSES

País do xarope de bordo e hóquei no gelo, o Canadá também exporta ótimos quadrinhos, como Nada a Perder e A Vida é Boa, Se Você Não Fraquejar
Página de abertura de Nada a Perder

País distante, o Canadá é mais conhecido no Brasil pelos seus astros pop como Alanis Morissette, Justin Bieber ou o deus do rock Neil Young, além da alta qualidade de vida.

Mas o país da Polícia Montada e do xarope de bordo também produz histórias em quadrinhos de primeira qualidade.

Que o digam Jeff Lemire e Seth, dois cultuados cartunistas.

Dois lançamentos recentes os colocam lado a lado nas prateleiras: Nada a Perder (de Lemire) e A Vida é Boa, Se Você Não Fraquejar (de Seth).

Em comum – além de serem canadenses –, a profunda humanidade de suas obras: não há super-heróis fantasiados aqui. Ambas as HQs tem como protagonistas pessoas comuns, vivendo dramas pessoais.

Lemire é bem conhecido de leitores habituais de HQ, com várias obras já publicadas no Brasil – tanto pela major DC e seu selo Vertigo, quanto independentes.

Já Seth (nome artístico de Gary Gallant) estreia por aqui com A Vida é Boa.

O mito do passado melhor

A Vida é Boa Se Você Não Fraquejar
E que estreia.

Essencialmente autobiográfica, A Vida é Boa, Se Você Não Fraquejar mostra a busca do próprio Seth para descobrir o paradeiro – ou destino – de um obscuro cartunista que publicou meia dúzia de cartuns na conceituada revista The New Yorker na década de 1950, e que assinava apenas como Kalo, misteriosamente desaparecido desde então.

Rato de sebos, Seth o descobriu comprando lotes de revistas empoeiradas do tempo do guaraná com rolha.

Obcecado pelo estilo e pelo traço retrô / vintage de Kalo, Seth deixa que sua investigação acabe afetando sua vida, interferindo em seus relacionamentos.

Na verdade, sua busca reflete sua  insatisfação com um mundo cada vez mais “moderno” e em constante transformação.

Seth vive absolutamente convencido de que nada melhora, só piora.

Nas longas caminhadas filosóficas pelas ruas de Toronto que faz com seu amigo, o também cartunista Chester Brown (de A Playboy e Pagando Por Sexo), Seth para diante de um prédio velho e desvenda a própria obsessão: “Engraçado. Algo na decadência do velho me dá uma tristeza que evoca o que já se foi. Se os prédios fossem bem preservados, não seria o mesmo”, diz.

“Uma casa de fazenda mal-conservada é diferente de um lobby de hotel em art déco intacto. De algum modo, esse lobby não convence da realidade ou beleza de antigamente. Odiaria pensar que minha crença na superioridade do passado é só uma escolha estética equivocada e racionalizada em excesso”, reflete.

Diferente do que se pode imaginar, a busca e os devaneios filosóficos do cartunista não chateiam o leitor – pelo contrário, é uma leitura leve, que flui sem pressa e se beneficia demais da arte deslumbrante em duas cores que retratam com muitos detalhes as ruas de Toronto e seus arredores.

Prédios, casas, estações de trem, lojas, passantes. Tudo está vivo e detalhado de forma serena e  evocativa. Sim, a  vida é boa no Canadá.

E o presente cruel

A não ser que você se chame Derek Ouelette, protagonista de Nada a Perder, obra que reúne muitas das melhores características de Jeff Lemire: personagens perdidos, um mundo hostil em volta e poucas chances de redenção.

No passado, Derek foi uma promessa do hóquei no gelo, o esporte nacional canadense – tema que Lemire já havia explorado na espetacular O Condado de Essex.

Só que tudo foi por água abaixo após um episódio especialmente violento em que Derek quase quebrou o pescoço de um oponente.

Desempregado e se rendendo ao alcoolismo, Derek retorna à sua cidadezinha natal, um fim de mundo gelado e isolado, impressão reforçada pela arte em tons de cinza e azul.

Bêbado, sobrevivendo de bicos, mal-humorado e com tendências violentas, parece que nada poderia piorar para Derek.

Mas como desgraça pouca é bobagem, eis que sua irmã, a quem Derek não via há muitos anos, bate em sua porta.

Com o rosto machucado e viciada em drogas, Beth está fugindo de um namorado abusivo. Contar mais estraga, mas não é difícil prever o porvir.

De narrativa seca, em estilo quase noir, Nada a Perder é mais uma bela HQ de Lemire – um narrador versátil sem dúvida, que transita com absoluta competência tanto nos universos super-heroicos da Marvel e DC, quanto em suas obras autorais.

Nada a perder / Jeff Lemire/ Nemo/ Tradução: Jim Anotsu/  272 páginas/ R$ 64,90

A Vida É Boa, Se Você Não Fraquejar / Seth/ Mino/ Tradução: Dandara Palankof/ 192 p./ R$ 64,90

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