segunda-feira, setembro 17, 2018

EM NOME DA MÃE

Uma descoberta tardia sobre a própria mãe levou o escritor espanhol Antonio Altarriba a investigar seu passado. E o que ele descobriu foi mais do que uma história de família

Foi só bem próximo do momento  da morte de sua mãe, Petra, que Antonio descobriu que ela tinha o braço esquerdo quase imóvel, incapaz de  flexionar plenamente.

Foi assim que Antonio também se deu conta de que sabia muito pouco sobre ela.

No romance gráfico Asa Quebrada, o escritor Antonio Altarriba – auxiliado pela expressiva arte  em preto & branco do desenhista Kim – acerta as contas com o passado de Petra Ordóñez, sua mãe.

Perplexo pela descoberta tardia, Antonio visita o asilo em que se encontra seu pai a fim de pergunta-lo sobre a deficiência de Petra. Mas o pai nem desconfiava.

Ainda mais perplexo, Antonio volta para casa, imerso em perguntas sem resposta: “Como pode ser que meu pai não soubesse que minha mãe não movia o braço? Como era a intimidade deles? Que carinhos faziam entre si? De que abraço eu nasci?”

A partir desse tapa na cara que a vida deu em Antonio, ele reconstrói toda a vida de sua mãe a partir justamente do próprio incidente que aleijou Petra: seu nascimento.

Ao dar Petra à luz, Sofia, sua mãe, morreu. O pai de Petra, Damián, um barbeiro com pretensões a ator dramático, fã de Shakespeare, enlouquece de dor ao receber a notícia.

A cena bizarra  que se segue faz jus à predileção de Damián pela tragédia teatral – e também soluciona o mistério do braço curto de Petra. Contar mais é estragar a leitura de possíveis leitores da obra.

Conspiração monarquista

Obra de leitura viciante, Asa Quebrada tem pelo menos três níveis de leitura.

O primeiro e mais obvio é ser encarado como o mero relato biográfico da mãe de seu autor.

Mas também pode ser um testemunho pungente da força  e da abnegação silenciosa das mulheres espanholas em uma sociedade profundamente católica, machista e dominada por uma ditadura militar sanguinária e de cunho fascista.

E por último também pode ser lida como um comentário acerca desta mesma ditadura, jogando alguma luz em personagens históricos com os quais Petra Ordóñez conviveu, como o General Juan Bautista Sánchez González (1893 - 1957).

Já adulta, após a morte do pai Petra foi trabalhar de governanta na mansão de Sánchez González, em Zaragoza.

As duas faces da Espanha franquista: acima, a babação de ovo fascista...
Acontece que o tal general era um “rebelde” dentro da cúpula de poder do Generalíssimo Francisco Franco (1892 - 1975).

Monarquista convicto, Sánchez González – sustenta Antonio Altarriba – conspirava com alguns companheiros de farda para destituir Franco do poder e restaurar o regime monárquico na Espanha.

Entre os cuidados com os filhos do general e o serviço de copa e cozinha, Petra captava aqui e ali o burburinho conspiratório na mansão do militar – porém, à moda silenciosa das mulheres de então, mantinha-se absolutamente discreta sobre tudo o que via e ouvia.

...Enquanto a perseguição aos inimigos do regime não dava tréguas
Acabou que, pouco tempo depois de Petra pedir demissão do emprego para se casar com Antonio Altarriba (pai do autor), Sánchez González morreu em condições misteriosas, um episódio até hoje mal explicado na própria Espanha.

A edição bem cuidada da Editora Veneta traz um posfácio de Altarriba, no qual ele detalha todas as descobertas que fez ao pesquisar sobre a vida da própria mãe, incluindo os fatos conhecidos e as teorias correntes sobre a morte do General Sánchez González.

Completam a edição fotos de família e os estudos de personagem do desenhista Kim, pseudônimo de Joaquim Aubert i Puig-Arnau.

Altarriba, que é Doutor em Literatura Francesa pela Universidade do País Basco, é autor de quatro romances premiados em seu país natal. Que  venham outras obras de sua lavra.

Asa Quebrada / Antonio Altarriba e Kim / Veneta/ Tradução: Marcelo Barbão / 272 p./ R$ 64,90

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