sexta-feira, maio 05, 2017

"'NÃO AUTORIZADA' NÃO É 'DESAUTORIZADA'"

ENTREVISTA: Carlos Eduardo Drummond e Márcio Nolasco, biógrafos de Caetano Veloso

Dupla exposição 1972, foto Theresa Eugênia
Demorou, mas aconteceu: às 19 horas do dia 10, na Saraiva do Salvador Shopping, Salvador recebe o lançamento do livro Caetano, uma biografia: a vida de Caetano Veloso, o mais Doce Bárbaro dos Trópicos (Seoman), de Carlos Eduardo Drummond e Márcio Nolasco.

Trata-se da primeiro biografia não autorizada publicada após alterações na Lei de Direitos Autorais. Nesta entrevista, os autores falam do livro, de Caetano e mais.

Como nasceu o projeto? Vocês já começaram juntos? Quanto tempo levou para produzir o livro, pesquisa e redação?

A pesquisa começou em 1997. Eu e Marcio trabalhávamos na mesma empresa. Eu, Drummond, já havia escrito meu primeiro livro de poesias (1996). E o Marcio também já escrevia e fazia cursos de roteiro de cinema e televisão. Inicialmente, propus ao Marcio escrevermos outros trabalhos juntos (peças, textos etc). Realizamos essa primeira experiência (positiva, por sinal) e logo surgiu a ideia ousada e genial de escrever a biografia de um ídolo da música popular, sobretudo de um personagem que ainda não possuísse um livro dessa natureza, completo e detalhado. Descartamos alguns nomes e depois decidimos por Caetano Veloso. O projeto inteiro durou 20 anos (de 1997 a 2017). Nesse intervalo, foram 7 anos de pesquisa, 1 de redação da primeira versão, e mais 1 de redação, revisão e atualização da segunda versão. (Total de 8 anos de trabalho).

Como foi o procedimento de vocês e da editora em relação a todo aquele imbróglio do grupo Procure Saber, encabeçado por Paula Lavigne? Vocês preveem alguma polêmica no horizonte?

A editora acreditou no trabalho desde as primeiras conversas, que só começaram após a decisão do STF. Eles perceberam a seriedade do projeto, a consistência da pesquisa, a qualidade do material apresentado, a força do texto, e, sobretudo, a importância documental do livro. Acreditamos que tudo isso tenha encorajado a Editora a ir em frente. Não acreditamos em polêmica no horizonte, porque temos consciência da seriedade com que o trabalho foi conduzido. É um livro necessário. Precisava ser publicado.

A biografia é não autorizada, mas vocês chegaram a ter algum contato com Caetano, ele falou alguma coisa ou deu alguma recomendação à vocês dois?

Tivemos contato com ele na primeira fase do projeto. Ele sempre se mostrou bastante coerente em relação ao livro. Ele nos concedeu uma entrevista e escreveu uma carta reconhecendo a existência da pesquisa e encorajando sua continuidade. A biografia é “não autorizada” pelo fato de não termos uma autorização formal (ainda que o conteúdo da carta indique uma autorização tácita, além de termos sido bem recebidos por todos os contatos que eventualmente falavam com ele antes de nos conceder entrevista). Também é “não autorizada” por não se tratar de um livro de encomenda, com participação e aprovação prévia do biografado no texto. Por outro lado, “não autorizada” não é sinônimo de “desautorizada”. Vale ressaltar que, especialmente as fotos do Caetano (capa e miolo), foram aprovadas por ele e pela Paula Lavigne, que não cobraram nada por isso. Ficamos muito agradecidos por esse gesto.

1979, Caetano em casa, foto Theresa Eugênia
E quanto a Gil, Gal e Bethânia? Eles aceitaram dar depoimentos? Como vocês foram recebidos por eles? E em Santo Amaro, como a família e amigos os recebeu?

Os outros Doces Bárbaros (Gil, Gal e Bethânia) foram muito generosos e nos concederam detalhadas entrevistas. O clima foi tão bom, tão pessoal e ao mesmo tempo profissional, que em determinados momentos eles nos diziam algo como “eu nunca falei isso para ninguém, mas estou me sentindo à vontade com vocês e vou dizer”. A percepção desse sentimento nos deu a força que necessitávamos para realizar um trabalho único e pujante. À exceção de Gal Costa (que foi por telefone), todas as outras foram ao vivo. Do mesmo modo, amigos e parentes nos receberam muito bem e nos apoiaram desde o início. Estivemos em Santo Amaro pelo menos três vezes, e em Salvador, outras tantas. A família nos abraçou desde a primeira hora, tanto que tivemos acesso ao acervo pessoal de Caetano, inclusive tendo ajuda fundamental da fotógrafa Maria Sampaio, responsável pela guarda de vasto material e a quem merecidamente dedicamos o livro (ela faleceu em 2010). Lamentamos que o livro tenha demorado tanto para ficar pronto. Alguns entrevistados não viveram para assistir a esse momento, como Dona Canô, Nicinha, Guiherme Araújo, Rogério Duarte.

O grande medo dos artistas em relação às biografias não autorizadas seria o sensacionalismo - muito comum nos Estados Unidos e Europa - em relação à questões como drogas e sexo. Como vocês lidam com essas questões?

É uma preocupação legítima, quando sabemos da existência de trabalhos com esse enfoque puramente sensacionalista. No nosso caso, essas questões mais íntimas também foram abordadas, estão lá, no decorrer do livro, nos momentos em que elas aconteceram. Mas não estão lá de forma gratuita, especulativa ou mesmo ofensiva. O critério de contar ou não foi bem claro. Perguntávamos: essa informação privada é essencial para o entendimento do personagem e sua obra? Sempre que a resposta foi sim, incluímos no livro. Assim pautamos nossas decisões de abordar ou não abordar temas mais delicados. Lógico que o artista pode ter receio em ter intimidades reveladas, mas como pessoa pública, deve entender também que isso é algo a que ele está sujeito o tempo todo. Se o temor em relação às biografias não autorizadas for mesmo o tom sensacionalista ou falacioso, esse não se aplica no nosso caso.

Um artista tão popular e importante para o Brasil como Caetano tem poucas biografias no mercado. A que fatores acham que se deve isto?

É uma pergunta que já fizemos muitas vezes a nós mesmos. Um artista da importância do Caetano (com toda sua complexidade) já deveria ter umas 5 biografias lançadas, no Brasil e no exterior. Se personagens como Lance Armstrong tem mais de trinta livros publicados a seu respeito lá fora, por que não podemos conhecer um pouco mais sobre esse espetacular filho da Bahia? Será que só ele mesmo ou alguém que seja de sua inteira confiança está apto a se debruçar nesse caldeirão? Acreditamos que a quase inexistência de obras nesse estilo seja por uma soma de fatores: a falta de tradição no Brasil de biografar personagens vivos, as leis que estavam em vigor até recentemente, e até mesmo a dificuldade de construir especialmente a “biografia do Caetano”, que é um artista ímpar, multifacetado, e que se mantém em plena atividade (com muitos projetos simultâneos) desde os anos 1960. A construção da biografia dele foi um quebra-cabeças enlouquecedor.

Caetano já escreveu um livro semibiográfico, o Verdade Tropical (1997). Ele também serviu de fonte? Há versões conflitantes para algum episódio entre o livro dele e o seu?

Mosaico com todas as fotos publicadas no livro
Sim, o Verdade Tropical serviu de fonte. É um livro de grande importância, na medida em que apresenta a perspectiva dele acerca dos acontecimentos ligados ao Tropicalismo. Não há versões conflitantes. Por outro lado, nosso livro apresenta informações complementares sobre o período abordado no Verdade Tropical. Na fase da prisão, por exemplo, Caetano apresenta a versão dos fatos da perspectiva dele, uma visão interna, de dentro da prisão, por assim dizer. Nosso livro apresenta fatos que ocorreram do lado de fora. Entrevistamos um militar da época e parentes que tiveram ação direta na movimentação externa. Ainda que a movimentação interna tenha sido contada por Caetano, também foi narrada por nós no nosso livro, de modo que essa passagem ganhou uma abordagem mais completa. E, claro, todos os outros períodos, anteriores e posteriores ao Tropicalismo, também estão lá registrados ao longo da obra, de forma igualmente detalhada. Em resumo, Verdade Tropical é um trabalho fundamental, é a visão do Caetano por ele mesmo e, naturalmente, traz seu tom particularmente peculiar. O nosso traz a visão de quem testemunhou tudo.

A admiração e o amor de vocês pelo artista e sua obra é evidente no texto do livro, mas nada que os descredenciem como biógrafos respeitáveis. Assim como Paulo César de Araújo fez no livro do Roberto Carlos, expondo o artista em sua integralidade humana, portanto passível de acertos e erros. Como foi caminhar no fio dessa navalha, entre a admiração pelo artista e o dever de contar sua vida sem censuras?

Quando iniciamos a pesquisa, não éramos tietes ou fãs declarados do Caetano. Nesse sentido, podemos apontar uma diferença entre nós e o biógrafo do Roberto, que revela ser fã assumido do Rei desde muito jovem. Gostávamos do Caetano, sabíamos da importância dele para a música e para a cultura do nosso país, e da inexistência de um livro abrangente sobre sua vida e carreira. Então nos lançamos nessa longa aventura que durou 20 anos. Naturalmente depois de mergulhar na obra e na vida do artista, a admiração por ele aumentou. Hoje, podemos nos dizer fãs (e até Tropicalizados rs), mas jamais escorregamos para um endeusamento do artista. O cara já tocou no Oscar, cantou com Pavarotti, abriu uma Olimpíada. Ele é um ícone internacional independentemente do que pudéssemos vir a minimizar. Assim, por esse histórico, é importante ressaltar que o trabalho foi conduzido com isenção, de forma distanciada, exatamente para mostrar o lado humano do artista, com seus acertos e erros. Portanto, o caminho no fio de navalha foi como a filosofia de fluidez de Bruce Lee. Nos adaptamos a isso e escolhemos o caminho do meio. O que pautou a questão de avançar na privacidade e nos erros e acertos do Caetano foi o quanto a informação seria importante e necessária para o entendimento da pessoa, do artista e sua obra. Nada pessoal contado no livro está ali de forma gratuita, ou com viés sensacionalista. Teve e tem sua importância para o entendimento do artista e sua obra. Faz parte do seu ser e não faz mal nenhum em se procurar saber.

Os artistas populares no Brasil parecem ter uma tendência a querer controlar, de certa forma, suas biografias, evitando versões conflitantes com as suas próprias e estabelecendo suas verdades como absolutas – está aí o caso do Roberto Carlos versus Paulo César e o grupo Procure Saber, que não me deixam mentir. A que vocês acham que se deve isto, este medo todo?

Essa é uma pergunta difícil de responder. São muitos fatores e só eles poderiam falar por si. O que podemos dizer é que a ideia de haver uma única versão da vida de alguém é simplificar (empobrecer) demais a história dessa pessoa. Uma vida tem várias versões, que se completam (às vezes até se chocam), mas que permitem ao leitor entender de modo mais amplo o todo complexo que é a vida de um personagem importante e rico, como é o caso do Caetano ou mesmo Roberto Carlos. Além disso, o modo como nos enxergamos a nós próprios, em boa parte das vezes não condiz com o que o outro pensa. Invariavelmente, o espelho, assim como o universo, tem uma série de outras dimensões com as quais não temos controle algum.

Aos 4 anos, em 1946, cedida por Mabel Velloso
Percebo que vocês optaram por uma narrativa sem aspas, não se atribui esta ou aquela informação a fulano ou beltrano. Por que, ainda mais quando vocês fizeram dezenas de entrevistas e consultaram vasta bibliografia?

Essa decisão se deve ao estilo adotado por nós. Uma história bem contada é como um sonho. Se, enquanto sonhamos, alguém nos interrompe, somos retirados daquela “fantasia” vivenciada inconscientemente. O mesmo se aplica à literatura, especialmente na forma adotada para escrever essa biografia. A narrativa não é interrompida com “aspas” (com raras exceções), “falas” ou notas de rodapé extensas para não quebrar a magia do leitor. O leitor precisa embarcar na história, como num filme, como num sonho, sem que seja interrompido. E, se você ler esse livro com olhos bem atentos, verá que essa história é um filme, ou até mesmo um seriado, uma novela.

Na pesquisa, que detalhe desconhecido (ou não revelado) mais os surpreendeu?

Não conhecíamos o Caetano tão profundamente. Esses detalhes desconhecidos surgiam a todo momento, à medida que avançávamos nas pesquisas e nas entrevistas. São inúmeros. Mergulhar no período anterior ao nascimento do artista (a história de seus antepassados), em sua infância e juventude, foi uma experiência bastante agradável. Conhecer e contar a respeito de personagens não tão falados, mas que ajudaram a formar a pessoa Caetano foi um privilégio que dividimos com o leitor. Uma das missões do livro é essa:  poder contar também a história daqueles que de alguma forma compuseram o caráter do artista, mas que também foi ou é estudante, amigo, pai, filho, baiano, brasileiro, companheiro, pessoa comum, enfim, todas essas facetas possíveis. Também a origem de muitas de suas canções nos encantou. Terminado o livro, muitas músicas do Caetano passaram a ter uma nova dimensão. Depois de conhecer a origem de tantas delas, passamos a ouví-las de outra forma, e a entendê-las melhor. Vale lembrar que o livro apresenta os grandes marcos iniciais da vida e da carreira do artista (1ª professora, 1º colégio, 1º emprego, 1ª namorada, 1º beijo,  etc). Muitos detalhes surpreendentes vem daí. O artista não nasce pronto. Tem toda a bagagem de vida que vem com o passar do tempo e que pudemos contar de uma forma que ainda não tinha sido.

Em um país que dizem ser de memória curta,  biografias de vultos históricos é um negócio ainda pouco explorado. Que personalidades vocês apontariam como urgentes?

Sim, há personagens que merecem uma biografia. Somos um país riquíssimo culturalmente e muito pouco explorado. Existe uma gama enorme de nomes que merecem ter suas vidas mais detalhadas e com certeza não apenas com “a biografia definitiva”, mas com quantas forem necessárias para abranger diversos aspectos de suas personalidades. Assim é que se faz lá fora. Esperamos que possamos ter panorama parecido aqui também. Mas não queremos correr o risco de chamar a atenção de outros biógrafos. (risos) Descontada a brincadeira, o Brasil precisa avançar nesse terreno. Tomara que saiamos da era da ditadura cultural para viver novos ares de fato. Claro, o outro lado também precisa de atenção. É preciso intensificar as políticas de incentivo à leitura, e de educação de um modo geral. Para termos livros, temos que ter leitores. Desde que escutamos falar de Paulo Freire que vemos pouca coisa de mudança efetiva em termos de educação. Mas até  que ponto nossos líderes desejam uma sociedade pensante no Brasil? Nesse mar de desilusão político-social que vivemos hoje, até que ponto aqueles que gerem a nação desejam que seus cidadãos tenham condição de ter acesso à educação e ao saber?


Vocês tem planos de escrever a bio de mais algum artista?

Ainda não. Terminamos um trabalho de 20 anos. Precisamos de um tempo para descanso e outro para aproveitar o momento e fazer a divulgação do livro. No entanto, vale dizer que, até pelo resultado que apresentamos, já recebemos sondagens de personagens importantes da cultura nacional e que participaram dessa bonita história que ousamos contar. Isso só reforça a qualidade e profissionalismo que imprimimos com nosso trabalho.

Caetano, uma biografia: a vida de Caetano Veloso, o mais Doce Bárbaro dos Trópicos / Carlos Eduardo Drummond e Marcio Nolasco / Seoman / 544 páginas / R$ 59,90

2 comentários:

Rodrigo Sputter disse...

http://www.elcabong.com.br/hit-de-pablo-ganha-versao-indie-pop-ouca-como-ficou/#comment-36086

completei ainda...fico impressionado...meu deus...por isso que a galera acha que o rock morreu e que igor kanário é a coisa mais rock da bahia...é a burrificação e a pretensão se juntando...deus meu! (vou colocar isso lá tb chico).

Rodrigo Sputter disse...

e aí chico??
agora quero sua opinião...ehheeheheh