O livro A Jovem Guarda na Bahia, pesquisa de Zezão Castro, tem lançamento hoje, na Tropos, com show da banda Ivan Motosserra
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Raulzito & Os Panteras |
O rock baiano é quase tão antigo quanto o rock ‘n’ roll.
Irmã Dulce foi uma de suas principais incentivadoras.
Salvador teve uma febre de bandas de rock nos anos 1960.
Esses e outros fatos pouco lembrados estão no livro A Jovem Guarda na Bahia, do jornalista e mestre em Cultura e Sociedade pela Ufba, Zezão Castro.
Editado pela Assembleia Legislativa do Estado da Bahia, o livro tem noite de autógrafos hoje, na Tropos, com pocket-show da banda de surf music instrumental Ivan Motosserra.
Fã de Elvis Presley na infância, Zezão começou a pesquisar o assunto há cerca de vinte anos, quando descobriu que o padrasto de sua então esposa era pai do guitarrista Luciano Souza.
“Junto com o irmão Ricardo, mais os irmãos Pepeu e Jorginho Gomes, eles tinham um grupo em 1966, chamado Os Príncipes do Yé Yé Yé, depois Os Minos”, conta.
“Comecei a pesquisá-o enquanto era repórter de A TARDE, ocasião em que fiz matérias sobre o assunto e comecei a colher dados. Era um assunto praticamente virgem em termos literários. Antes que algum aventureiro chegasse, eu disse ‘A Jovem Guarda Baiana é minha’”, ri o pesquisador.
Fruto de sua dissertação de mestrado, o livro, em certos trechos, pode ficar meio duro para quem não está familiarizado com as pesquisas de identidade cultural de autores como Stuart Hall, por exemplo.
O autor diz que aliviou até demais: “Algo foi feito neste sentido de torná-lo menos acadêmico, mais suave. Acontece que não quis fazer concessões demais. O mundo já tá ralo demais”, afirma.
Mesmo assim, o livro pode ser lido sem grandes dificuldades para qualquer um que tenha interesse no assunto – e mais: redimensiona o fenômeno do rock na Bahia, que foi muito maior e mais abrangente do que se pode pensar.
“É uma pesquisa de fôlego, não para enclausurar, mas para abrir a discussão. Foi quase uma década de pesquisa. Pra quem disser que, na Bahia, só Raul, Big Ben & Cia faziam rock, tem aí uns 70 nomes de artistas locais. Tenho um indisfarçável orgulho de ter compilado esta singela lista”, diz.
Lançamento: hoje, 20 horas / Com Ivan Motosserra / Tropos (Rua Ilhéus, 214, Rio Vermelho) / gratuito
A Jovem Guarda na Bahia / Zezão Castro / Assembleia Legislativa do Estado da Bahia / 172 p. / Distribuição gratuita
ENTREVISTA COMPLETA: ZEZÃO CASTRO
Seu livro preenche uma lacuna importante na historiografia cultural da Bahia, especialmente para aqueles que renegam o rock enquanto expressão significativa da cultura baiana. O que te moveu na direção deste assunto e deste período em questão?
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José Carlos Castro Jr., o Zezão |
Zezão Castro: Quando eu era guri, com uns 12 anos, caiu em minha mão um disco de Raul chamado Raul Seixas – 20 Anos de rock, onde ela cantava clássicos do rock 50 (Blue Suede Shoes, Rock Around the Clock, Tutti Frutti) outros da pré-Jovem Guarda (Rua Augusta, Estúpido Cupido, Marcianita) e ainda algumas músicas da própria Jovem Guarda (O Bom, Vem Quente que Eu Estou Fervendo). Nesse ínterim, eu descubro que o cara é baiano. Um Elvis brasileiro! E, melhor, baiano!! Eu adorava este disco, que era do meu irmão mais velho e eu adorava o clima dos nos 50, topete, jaqueta preta, Elvis na Sessão da Tarde e também um disco com a trilha da novela Estúpido Cupido, com o filé do rock 50 nacional. Pouco tempo depois o carimbador maluco morre. A obra de Raul é relançada e muitas pessoas começam a falar que ele tinha uma banda chamada Raulzito e Seus Panteras (depois Raulzito e os Panteras) aqui em Salvador. A partir de sua morte, emerge então a ponta do iceberg de um mundo alagado pelo dendê e pela manemolência: a Jovem Guarda baiana, o rock baiano dos anos 60. Fiquei curioso sobre o assunto. Quando vim para Salvador, casei-me com uma moça e o padrasto dela era o pai de Luciano Souza, que, junto com o irmão Ricardo mais os irmãos Pepeu Gomes e Jorginho Gomes, tinham um grupo em 1966 chamado Os Príncipes do Yé Yé Yé (depois Os Minos). Ouvia o coria falar falar que o filho era um gênio e,quando o vi tocar em 1995 na Jam do Mam confirmei. Isto só pra você ver que o assunto foi meio que se achegando até mim. Comecei a pesquisá-o enquanto era repórter de A Tarde, ocasião em que fiz matérias sobre este assunto e comecei a colher dados. Era um assunto praticamente virgem em termos literários. Antes que algum aventureiro chegasse eu disse A Jovem Guarda Baiana é minha (rs). Nossa.
Sabemos que seu livro é fruto de uma tese de mestrado, daí seu perfil, em diversos trechos, de estudo social e identitário. Ao publica-lo para o grande público, você não considerou "suavizar" esta parte, para torna-lo mais palatável ao leitor médio sem nível universitário?
ZC: Algo foi feito neste sentido de torná-lo menos acadêmico, mais suave, como você sugere. Acontece que não quis fazer concessões demais. O mundo já tá ralo demais. Além disso, o google ta aí. Não conhece a palavra não? Joga no oráculo, descubra o significado e siga em frente. Foi um exercício enorme, entretanto, tratar do assunto sob este viés academicista. Quando me apropriei do conceito de “folclore mundial” ou “imaginário internacional-popular” (Renato Ortiz) comecei a desfiar “a coisa”, juntando com os conceitos de identidades de Stuart Hall, sugerindo novos conceitos de identidade, mais desarraigados do iluminismo e de outras correntes. Uma pessoa da Finlândia pode ser mais parecida com você (com o seu gosto, suas roupas, seus discos ou as suas atitudes) do que o seu vizinho soteropolitano, pitubano. Fiz uma pesquisa de fôlego nas colunas de cultura da época entre 65 e 68 em Salvador,( mesmo período em que o programa Jovem Guarda foi veiculado e foram descobertas interessantes sobre festivais , prêmios , a invasão da Jovem Guarda nos cadernos de cultura locais . Teve gente que matou a noiva porque a mesma usou minissaia, o rock como caso de polícia. Pire aí...
Uma das informações mais divertidas do seu livro (citada do livro Anjo Bom da Bahia) é que Irmã Dulce foi praticamente uma padroeira do rock local.
ZC: O rock chega, enquanto evento massivo, quando Ao Balanço das Horas, de Fred Sears, entra em cartaz em Salvador em fevereiro de 1957 nos cines Guarany e Tupi. Quando Waldir Serrão, depois Big Ben, e seus comparsas quiseram fazer os festivais de rock do Cinema Roma, na Cidade Baixa, já nos anos 60, precisavam do aval de Irmã Dulce, que era o coração, e do Frei Hidelbrando Kruthaup, mais cerebral. Ambos eram do Círculo Operário, uma espécie de associação que congregava os operários daquelas fábricas da Cidade Baixa. Então, Waldir, filho de Seo Edmundo, que era circulista pediu a irmã Dulce e ela liberou. O Frei, claro, sacando que rolava bilheteria, cobrava a ponta dele pois bestas não entram no céu e as Obras Sociais precisavam de fôlego. Os shows aconteciam, preferencialmente, em horários em que não havia filmes em cartaz, pra não atrapalhar a grana certa das bilheterias cinematográficas. Geralmente de manhã. Outros espaços também se consolidaram como o Ginásio Balbibinho, a Fonte Nova, onde as estrelas andavam num trio em constante movimento pelo espaço e, depois, na Concha e nos clubes sociais”. Uma febre.
Fatos como este e os muitos artistas da época parecem simplesmente desaparecer da historiografia oficial baiana - ironicamente, agora resgatados em um livro publicado por uma editora oficial. Por que você acha que isto acontece? O baiano não tem memória ou só a tem para o que interessa no momento?
ZC: A maioria dos textos sobre a música produzida na Bahia paga pau pro dendê ou pro samba, a chamada música genuína ou de raízes. A Jovem Guarda baiana sempre foi refugo, nem apêndice da Tropicália ela foi. Se Raul fosse vivo ela, provavelmente, ainda estaria no baú. O mais interessante nesta pesquisa foi descobrir que aqui na Bahia, em 1966, tinha um guri de 9 anos que tocava com a guitarra nas costas, Luciano Souza, recentemente falecido, e que o mesmo também tocava também com os pés. Tudo isto antecede Jimi Hendrix que só emerge no Brasil a partir do Festival de Woodstock, em 1969. Além disso, artistas da música reconhecidos em todo o Brasil começaram no rock n roll sessentista da Bahia: Pepeu e Jorginho Gomes eram dOs Príncipes do Yé, Yé, Yé; Armandinho e Betinho Macêdo eram Hell´s Angels, Gereba e Vicente Barreto pertenciam aOs Deuses (de Serrinha) , Wadinho Marques, do Chiclete com Banana, integrava Os Eletrons, Wilson Aragão pertencia a Os Feios (de Piritiba). Havia também uma banda só de mulheres chamava-se As Gatinhas Manhosas, de Itapetinga. Tem também o José Roberto, que teve um relativo sucesso no time b da Jovem Guarda nacional. E ainda Lenici e Soninha, nossas wanderléas. Tentei achar estas duas para entrevistá-las (e ainda tento) mas não consegui contato. Tinha também um primo do Ronnie Von que morava em Salvador, o Peter Ron. A mãe do Ronnie Von era baiana, assim como o pai do Erasmo, que era delegado. A Bahia tá em (quase) todas. A memória do baiano, assim com a dos outros gentílicos, se não for alimentada, some. A historiografia oficial precisa sair da prateleira, precisa ser promovida. Acho que a Internet já fura um pouco esse lacre. Um passo dado para amortizar este débito foi a sensibilização, por parte da Assembléia Legislativa e da sua assessoria de cultura, sobre esta publicação, originalmente oriunda de mestrado em Comunicação e Sociedade.
É notório no rock local o desconhecimento que uma geração tem das anteriores. É assim desde os anos 80, cuja geração desprezava a dos anos 70. Já a dos 80 foi desprezada pelos dos 90, que por sua vez foi desprezada pela dos anos 2000. Seu livro, que resgata a gênese de todo esse movimento, poderia ajudar essa galera a entender que ninguém está sozinho nessa, que há um legado a honrar. Seria essa maior contribuição do seu livro ao rock local? Como você vê essa questão?
ZC: Todo movimento “novo” surge com a intenção de negar o anterior, de ser melhor ou mais revolucionário, de alguma forma. De fazer o seu e fuck off pro antecessor, até um certo ponto. O arcadismo nega o barroco, pregando a simplicidade bucólica em lugar de conflitos e por aí vai. Da mesma forma os novos modismos musicais surgem, às vezes incorporando o velho, às vezes se opondo radicalmente. Há também tem horas em que, se chega numa radicalização tão grande que a subversão volta ao simples, Nescau com bolacha. Sacou? A juventude não sabe do que rolou no rock 60 porque não dá Ibope mostrar e porque é dela, inicialmente, afastar tudo que “é do tempo do meu pai” ou “do btempo de minha vó” e porque as construçõea culturais a acerca da Bahia ou da “baianidade” privilegia no que nos diferenciamos e não no que nos iguala. Há tabém o velho choque de gerações até rolar um amadurecimento estético e as pessoas descobrem que Chiquinha Gonzaga ou Leadbelly ou Gordurinha tem algo a dizer, independente do período. Hoje em dia predomina a cultura do hype. Um filme aparece onde o personagem, um tipo Cult, adora, vamos dizer, Leonard Cohen ou, pra ficar por aqui, o Made in Brazil. No outro dia o camaradinha baixa 18 terabaites (sic) dessa galera e diz: “tenho tudo, de Leonard Cohen” ou posta no facebook que a melhor banda da vida é o Made in Brazil. Tudo bem, democracia e tal mas... me bata uma abacatada, please. Para quem quiser saber de onde viemos, no rock baiano taí uma pesquisa de fôlego, não para enclausurar mas para abrir a a discussão. Foi quase uma década de pesquisa. Pra quem disser disser que, na Bahia, só Raul, Big Bem & Cia faziam rock nos anos 60 tem aí uns 70 nomes de artistas locais. Tenho um indisfarçável orgulho de ter compilado esta singela lista.
Uma questão muito presente no seu livro é a patrulha ideológica da época, que taxava roqueiros de "alienados" e "entreguistas". Agora vivemos novamente uma polarização política que remete muito àquele tempo. Essa tensão da época TVV vs. Cine Roma chegou às vias de fato em algum momento? O que ela nos diz sobre o que acontece hoje?
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Raulzito & Panteras com Roberto Carlos |
ZC: Não encontrei nenhuma notícia que desse conta de que bossanovistas e roqueiros tivessem saído no pau. Se Raul era fã de Elvis, Carleba o baterista de seu grupo era fã de Edson Machado, para muitos o melhor baterista da chamada afro-bossa. Não creio que houvesse espancamento como nos encontros entre punks e os carecas na Salvador dos anos 80 ou entre os carecas e os metaleiros. Os colunistas de cultura sim, num primeiro momento, antes de Roberto Carlos ser coroado, batiam, sem pena. Para se ter uma ideia, Sylvio Lamenha da coluna Hi So, do Diário de Notícias em 27/10/66 dizia “É mais um vigarista a nos atormentar musicalmente o tal de Ronnie Jan, ou Ronnie Von ou Ronnie Jan, ou que diabo for”. O baiano Waldick Soriano, em matéria entitulada “Cantor popular condena iê-iê- iê” no Jornal da Bahia em 1967 dizia ”Na maioria das vezes ocorre que os compositores de iêíê´`e nunca botam uma letra que preste. Ficam assim composições sem poema e sem valor artístico”. Havia um bombardeio, principalmente 65,66 nos jornais. Nas ruas, nem preciso falar. Se até hoje cabeludo é chamado de viado, imagine naquele tempo.
Que artistas da época pesquisada você diria que merecem ser definitivamente resgatados do limbo a que foram relegados pela indústria cultural local? Você tem planos de resgatar a produção fonográfica do período, ou mesmo homenageá-los de alguma forma?
ZC: Resgate por resgate eu acho que todos deveriam ser resgatados. O assunto desperta curiosidade e prazer em muitas pessoas que estudam a cultura pop e suas representações em nosso solo ou que estavam lá tomando seu crush, sua fratelli. O problema é que quase ninguém gravou rock na Bahia nos anos 60. Só havia um selo aqui, o lendário JS Discos. E não há arquivo. Pelo menos até agora.. Pode ser que alguém nos leia e algo aconteça. Só quem gravou foram Raulzito e Seus Panteras, Os Minos, Thildo Gama e Seus Bossas, todos no eixo Sudeste, e os Trogloditas, de Feira de Santana pelo JS já em 1969. Cheguei a iniciar uma pesquisa sobre direitos autorais para montar algo mas tive que parar e estou retomando agora.
Como você vê o fenômeno do rock local - como um todo? Sua resiliência e vigor artístico, que até hoje não entregou os pontos, não importa a moda do momento?
ZC: Penso que, desde Dodô e Osmar, eletricidade por aqui nunca assustou ninguém. Ao contrário. O rock local, em parte, copia as tendências mundiais, nacionais, em seus vários subestilos e, em parte faz uma fusão com algo daqui, nativo. A fórmula é velha, os resultados geram produtos novos, muitos desagradáveis, alguns muito bons. Gosto de rock com pegada rockabilly, psicobilly, ou anos 60, 70, o chamado rock clássico. O mercado de rock é hoje consolidado. Tem 60 anos. Não desaparecerá, penso eu. O Camisa de Vênus, pra mim, foi o maior soco no estômago da pasmaceira musical. Escatológicos. Pitty esta aí em uma carreira exitosa, representando a Bahia. O rock representa um estilo de vida, mesmo sendo cooptado pelas propagandas ou pelas marcas de surfwear. Tem axezeiro por aí com farda de roqueiro, eu tô ligado. Pagando pra tocar suas lenga-lengas nas rádios. Mas é assim mesmo. De olho neles tem os ´orêa seca’ que sabem que rock é rock. E vice-versa.