sexta-feira, abril 05, 2019

CAVALEIRO MODERNO

Envelopado em glorioso traje metálico, Ney Matogrosso estreia no TCA o show Bloco na Rua, com canções da memória afetiva – dele e do público

Nei envelopado, foto Marcos Hermes
Figura incontornável da música popular brasileira dos últimos 50 anos, Ney Matogrosso está de volta à Bahia com seu novíssimo show, Bloco na Rua. Acompanhado de sua banda, ele se apresenta hoje e amanhã, na Sala Principal do Teatro Castro Alves.

Como o título já deixa entrever, o clássico de Sérgio Sampaio Eu Quero É Botar Meu Bloco Na Rua, de 1973, abre a apresentação de forma catártica: “O show começa muito explosivo, o que já ganha a plateia de cara”, conta Ney, durante entrevista em seu hotel para membros da imprensa na tarde de anteontem.

“Quando eu canto Bloco na Rua eles já cantam comigo. Desde a primeira vez que apresentei esse show, quando eu vi todo mundo cantando, disse ‘é, tá acontecendo, né’”, nota, sem esconder a satisfação.

Além da canção-título do espetáculo, Ney selecionou um belíssimo punhado de canções de grandes nomes da MPB: A Maçã (Raul Seixas), O Beco (Herbert Vianna & Bi Ribeiro), Mulher Barriguda (Solano Trindade e João Ricardo, do primeiro LP dos Secos & Molhados), Como 2 e 2 (Caetano Veloso), Feira Moderna (Beto Guedes, Lô Borges e Fernando Brant),  Tua Cantiga (Chico Buarque), Iolanda (Pablo Milanés, Chico Buarque), Corista de Rock (Rita Lee,  Luis Carlini), Postal do Amor (Fagner, Fausto Nilo, Ricardo Bezerra) etc.

“Sim, o repertório  acaba sendo mesmo (pelo critério) afetivo. A Maçã do Raul, há muito tempo eu queria cantar. Mas não cabia nas coisas que fiz até então. A música do Chico, eu fui no show dele. Quando ele cantou essa música (Tua Cantiga, do CD Caravanas) eu decidi na hora, ‘vou cantar essa música’. Na primeira vez que eu ouvi”, conta Ney.

Ao seu lado, a mesma banda que o acompanhou em sua última turnê, a longeva Atento aos Sinais (que ele fez de 2013 a 2018: Sacha Amback (direção musical e teclado), Marcos Suzano e Felipe Roseno (percussão), Dunga (baixo), Mauricio Negão (guitarra), Aquiles Moraes (trompete) e Everson Moraes (trombone).

Nei fazendo pose na cadeira, foto Marcos Hermes
“(Depois do início explosivo) Tem uma parte mais calma, quando canto Tua Cantiga, A Maçã, Mais Feliz (Dé Palmeira, Bebel Gilberto e Cazuza), Iolanda, que são mais românticas. E eu fico sentado numa cadeira, mas claro que eu não fico só sentado, fico fazendo pose. É uma cadeira transparente, que é pra mim parte do cenário, um objeto de cena. Então eu fico curtindo, que eu não vou ficar ali sentadinho caretamente cantando, né?”, diverte-se o artista.

“Corista de Rock já é na reta final do show, que começa lá em cima e termina lá cima”, descreve Ney.

Um detalhe que, como sempre, chama muito atenção é o figurino de Ney na apresentação: um traje de corpo inteiro que lembra a malha de metal que cavaleiros medievais usavam sob a armadura, criado pelo estilista Lino Vilaventura.

“Não passei nenhuma orientação, ele nem me mostrou croqui. É a primeira vez que eu uso um figurino que não é feito junto comigo, no meu corpo”, conta Ney.

“Porque o Ocimar (Versolato, morto em 2017) fazia no meu corpo, né? O Ocimar vinha da França, ficava hospedado na minha casa e fazia o figurino no meu corpo e ia embora. Esse não. O Lino não quis que eu me aproximasse. Ele veio com tudo pronto. Gostei de primeira, mas achei que precisava ser mais justo, tava meio solto, eu não gostei de me sentir solto dentro de uma roupa”, relata.

No show, todas as canções são relidas por Ney e banda, de modo a oferecer uma outra versão: “Nenhuma está no arranjo original, dou liberdade para os músicos criarem. Temos um arranjador que é o Sacha, e quando a gente vai para o estúdio ensaiar, todo mundo opina e a gente vai mudando também. Se for preciso, eu também opino”, afirma o músico.

Política, cinema, biografia

"Vamo lá, galera", foto Marcos Hermes
Só não diga pra ele que o show é “político”, no sentido do protesto generalizado contra o atual governo: “Quero deixar claro que quando fiz esse roteiro e quando comecei a ensaiar, nem existia Bolsonaro no panorama, tá?  Agora querem dizer que é um show político. Se é um show político, poderia ser político em qualquer momento. Bolsonaro (candidato ou presidente) não existia. Ele era um deputado, apenas. Não era nem candidato, tá? Então, não gosto que façam essa ligação”, afirma.

“Nunca pertenci a nenhum partido político, não tenho nem time de futebol nem escola de samba preferida. Sou um ser... solto, sabe?”, diz.

Isso não quer dizer que Ney não tenha lá suas críticas ao atual momento: “Tá conservadora demais (a sociedade). Agora, acho interessante porque o presidente diz que não está governando para partidos mas a gente observa  muito claramente que o ministério dele é partidário, sim. E muito, muito, muito, muito, muito... de mentalidade muito... pra trás, né? Não vamos nem começar a citar aqui os ministérios que a gente fica em choque né? Só o da Educação, só. Para não falar dos outros”, alfineta.

Originalmente ator, Ney volta e meia faz alguma participação em filmes. Agora, ele grava vozes em uma animação para os cinemas de Joel Pizzini, diretor do documentário Olho Nu (2014), sobre o próprio Ney: “É um desenho animado que é vagamente inspirado na  minha imagem do Secos & Molhados. Eu tô fazendo todas as vozes, das crianças, dos bichos.  É baseado na obra do poeta matogrossense Manoel de Barros. O filme é em cima do universo dele, e a minha figura do Secos & Molhados é o personagem principal”, conta.

Além disso, o ano que vem deve ver o lançamento de sua biografia, escrita pelo jornalista Julio Maria, autor de Nada Será Como Antes (2015), sobre Elis Regina.

“E ele não quer que eu leia, mas agora ele está fazendo uma coisa inteligente. Depois que ele faz entrevistas com algumas pessoas, as questões que ele fica com dúvida, ele me liga”, conta Ney.

“Eu não tenho esse problema (de ter um biógrafo investigando minha vida). Quer procurar coisas, procure. Agora, não minta. Só. Não aceite uma mentira, não escreva uma mentira. Eu não tô dizendo que ele (Julio Maria) vai mentir. Agora, ele vai ouvir mentiras. Porque as pessoas  mentem. Inventam, inventam coisas. Quantas coisas eu já li ao meu respeito que não são verdade, sabe?”, conclui.

Ney Matogrosso: Bloco na Rua / Hoje e amanhã, 21 horas / Sala Principal do Teatro Castro Alves / filas A a P: R$ 220 e R$ 110 / filas Q a Z8: R$ 150 e R$ 75 / filas Z9 a Z11: R$ 100 e R$ 50 / Classificação indicativa: 14 anos



BÔNUS: MAIS ALGUMAS FALAS DE NEY QUE NÃO ENTRARAM NA MATÉRIA

Shows no TCA: "Sim, desde os anos 1970 (eu me apresento na Sala Principal do Teatro Castro Alves), mas eu gosto muito da Concha (Acústica) também. Adoro fazer show na Concha. Tenho uma relação sim, até por que só me apresento aqui (no complexo do TCA). Já fiz em Peri Peri também, não tem um lugar chamado Peri Peri aqui? Já fiz lá, mas foi um show assim aberto, para o povo na rua, mesmo. Gostei muito. Ah, lembrei que também fiz com a Márcia Castro em um lugar que eu adorei, mas não lembro o nome, um lugar que antigamente era um cinema, talvez, que ela (Márcia) fazia shows durante o verão, um lugar muito interessante, um quadrado assim... isso, Clube Fantoches. Gostei muito também".

..."E lá no fundo azuuuuul", foto Marcos Hermes
Livro de memórias: "(O livro Vira-Lata de Raça, lançado em 2018) Não é uma autobiografia, é um livro de memórias, é diferente. Partimos de entrevistas (já publicadas) e eu dei mais três entrevistas para complementar. Mas sim, o Julio Maria está fazendo, essa sim, será uma biografia. Ele conseguiu falar com meu irmão, que eu não vejo há anos, eu não sabia nem onde ele estava, por que ele não atende o telefone, ele vive n'outra. Só anda de bicicleta, sabe? É meu irmão mais velho. Julio viajou para o Mato Grosso com minha mãe, quer dizer, é uma biografia mesmo. Deve sair ano que vem. E ele não quer que eu leia, mas agora ele está fazendo uma coisa inteligente. Depois que ele faz entrevistas com algumas pessoas, as questões que ele fica com dúvida, ele me liga. Porque eu disse 'olha, não tenho segredo nem nada escondido, mas as pessoas não podem mentir ao meu respeito. E aí sair uma mentira no livro como se fosse verdade, né?"

Longevidade e vigor versus redes sociais: "Eu acho que tem uma coisa genética também. Eu conheci o avô da minha mãe com 105 anos. E não quero perder meu tempo, queimar os neurônios com bobagem. Acho que Internet rouba nosso tempo, suga nossa energia. O pouco que faço - eu tenho Instagram - eu acho que já suga demais. E tá acontecendo uma coisa comigo, eu tô começando a ficar muito enjoado disso. De celular mesmo. Ando com ele desligado. Ou nem ando, sabe? Tô enjoado, mesmo. Desse universo paralelo. E olha que levei dez anos para ter um celular. Só tive porque as pessoas começaram a reclamar que queriam falar comigo e não me encontravam, acabei tendo, mas tô ficando cansado disso. Mas eu também faço ginástica diariamente. Lá no sítio eu ando, ando,ando, ando, ando, subo morro, desço o morro, é que pra ir na cachoeira tem que subir quase 600 metros e vou lá três, quatro vezes por dia. Tem uma coisa de exercício mesmo. Moro no Rio, mas São Paulo é o lugar que eu mais trabalho. Lá eu fico mais no meu apartamento".

Bloco na Rua, o título: "Estou há dois anos fazendo esse roteiro já foram vários até chegar nesse. E eu não achava um nome, eu gosto que tenha nome. A música  já estava escolhida, é uma das poucas que já estavam no repertório, desde o começo eu já sabia que ia abrir com ela, que se chama Eu Quero é Botar Meu Bloco na Rua. E eu não achava o nome, não achava. De repente eu disse, Bloco na Rua. É uma ideia de uma ação e menor. Gosto de títulos que indiquem alguma coisa. Eu não parto do título mas gosto que esteja em alguma música que estou cantando e eu sempre quis cantar essa música, mas em outro arranjo, porque marcha rancho (ritmo da gravação original) é muito datado, tinha que ser mais pop. E eu tinha intenção de fazer um repertório com muitas músicas conhecidas. Não tinha intenção de fazer nada inédito. Tem uma só, que entrou por acaso, que entrou para porque foi para uma peça de teatro que eu gostei muito quando vi, do Dan Nakagawa  de quem já gravei outras músicas, que chama Inominável. Até pensei ser o nome do show, mas pensei vão confundir com Inclassificável, sabe?"

Iluminado Ney, foto Marcos Hermes
Nei de férias: "Eu pretendi parar mais. Mas eu não tenho muito controle, sabe, imagina dois anos fazendo roteiros e quando cheguei nesse eu já tava ansioso para ver se ia funcionar. Eu parei em abril de 2018 o show (da turnê Atento aos Sinais) e estreei o novo em janeiro agora. Teve uma pausa, mas não foi ano inteiro. Em pausa eu não faço nada. Quer dizer, faço uma participação no disco de um, e tal, mas eu não viajo de  férias. Porque eu já viajo tanto trabalhando que, quando estou de férias, quero ficar quieto. E eu tenho sítio que eu adoro ficar lá que fica dentro da mata atlântica, só tomando banho de cachoeira, no Rio".

Tem Gente Com Fome: "Já gravei Solano Trindade. Tem Gente Com Fome, Mulher Barriguda e uma outra que não lembro agora, mas gravamos três dele. Tem Gente Com Fome era pra ter sido gravada pelo Secos & Molhados, mas foi proibida na época. E todo ano eu mandava (o repertório das músicas a serem gravadas) e eles (a Censura da ditadura militar) vetavam. Mandava de novo no ano seguinte, por que era obrigado pela gravadora a fazer um disco por ano, né? Então todo ano eu mandava. As gravadoras absurdamente exigiam, algo que nenhum compositor é capaz de fazer, um repertório (digno) para gravar um disco por ano. Muito menos eu, que nem sou compositor. Mas como era obrigado, todo ano eu enviava essa música para a censura e eles vetavam. Em 1985 eu mandei, eles liberaram. Aí eu gravei. Botei nesse show porque vi uma notícia no jornal de que havia neste momento no Brasil 55 milhões de brasileiros abaixo da linha da pobreza, então achei que valia a pena".

Assuntos não-resolvidos: "Dois assuntos que já deveriam estar resolvidos em nosso país é o negro é o índio. Nenhum dos dois está resolvido. Nenhum dos dois é olhado de frente, todo mundo finge que não existe o problema, mas existe, sim. Há até quem negue que exista o problema. Estão exterminando, assassinando os índios. E os negros, há quem diga que não existe preconceito, é ridículo dizer uma coisa dessa. Quando não deveria mesmo (existir preconceito), né? Porque se formos olhar para nossos antepassados, a maioria de nós tem um calcanharzinho na África. E é maravilhoso ter esse sangue. Eu pelo menos acho. É o que nos torna tão atraentes e diferentes para o mundo".

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