Os recentes atos de violência gratuita em São Paulo, atribuídos a punks, difamam movimento pacifistaNos últimos meses, alguns episódios de violência gratuita ocorridos em São Paulo reacenderam na mídia um certo sensacionalismo contra o movimento punk. No dia 20 de outubro, um grupo de 20 auto-denominados "punks" espancou um jovem de 17 anos na saída de um show no Hangar 110, o templo do estilo na capital paulista. Uma semana antes, uma fatia de pizza custou a vida do atendente de um quiosque no Centro, morto a facadas. No total, só esse ano, já são seis mortes registradas em brigas e agressões envolvendo pessoas identificadas como "punks" em São Paulo.
Tudo isso é um prato cheio para que o sensacionalismo barato da grande mídia reduza um movimento sério, filosoficamente embasado e - por incrível que pareça - francamente pacifista como o punk à uma gangue de monstrinhos urbanos, prontos para agredir e matar a qualquer momento.Em reação à esta movimentação de demonização do punk, o
Movimento Anarco-Punk de São Paulo divulgou no fim de outubro, uma carta aberta, onde se posiciona frente aos últimos acontecimentos. Leia
aqui o conteúdo desta carta.
O fato é que, qualquer pessoa minimamente mais informada que tenha paciência para pesquisar - mesmo superficialmente - a base do movimento e do pensamento punk vai perceber que violência gratuita não faz parte do ideário de não-conformismo e autogestão que são suas marcas mais fortes. O punk é, por definição, um proletário e um rebelde contra as convenções impostas pela sociedade, seja ela capitalista ou socialista-totalitarista, tanto quanto foram os jovens da geração perdida dos anos 20, os beatniks dos anos 50 ou os hippies dos anos 60 e 70.
A diferença é que o punk é um movimento conceitualmente violento, que prega uma ruptura radical com sociedade em favor de um estilo de vida próprio, auto-gerido, que tem no lema "do it yourself" (faça você mesmo) e nas idéias anarquistas de autores como
Mikhail Bakunin e
Pierre-Joseph Proudhon, entre outros, sua base teórica.
Agora, como qualquer movimento não-conformista, o punk também foi cooptado pela indústria cultural, que o distorceu, diluiu, suavizou, empacotou e colocou na prateleira para vender, como mais um produto. E também como qualquer movimento, o punk caiu no imaginário popular como um estereótipo: o cara de cabelo moicano, roupas rasgadas e alfinetes, que se monta para desfilar pela ruas da cidade. Estereótipo muito bem caricaturado pelo cartunista
Angeli, com seu personagem
Bob Cuspe.
A partir do momento em que a indústria cultural se apropria dos signos e símbolos do punk e os colocam na prateleira, qualquer alienado pode se apropriar dessa estética para expressar seu vazio espiritual - o que inclui os recentes atos de violência gratuita.
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O ativista americano
Craig O'Hara, em seu ótimo livro
A Filosofia do punk: Mais do que barulho (
Radical Livros, R$ 34), foi direto na mosca desta questão: "É verdade que o desemprego e condições sociais escassas provocam sensações irritantes de alienação e frustração. Também é verdade que essas sensações podem ser expressas de várias maneiras. O crime tem sido a resposta mais popular de tempos recentes".
É interessante notar que na sua fala, O'Hara se refere à Inglaterra dos anos 70, e não à São Paulo da primeira década do século 21. Ainda assim, isso não justifica os assassinatos e agressões cometidos por jovens desorientados e mal-informados quanto ao movimento que eles próprios dizem pertencer.
"Esses caras não são punks. O sujeito veste uma roupa rasgada, sai batendo em gente na rua e se diz punk. Assim é fácil, né?", questiona o artista plástico e músico
Miguel Cordeiro. Testemunha ocular do movimento aqui em Salvador e em Nova Iorque, onde passou temporada no efervescente biênio 1982/83, Miguel era chapa de
Marcelo Nova desde os anos 70, tendo acompanhado o início e o estouro do
Camisa de Vênus, originalmente, uma banda punk.
"A violência que se atribui ao punk é na verdade, muito mais conceitual, de quebra de comportamentos do que violência física, literal. Mas a gente vive num país com muita falta de informação. Nem todo mundo é esclarecido o bastante para compreender a proposta libertária do punk. É muito mais fácil vestir uma roupa rasgada e posar de punk do que realmente se comprometer com as idéias do movimento", resume Miguel.
Até porque, desde o seu momento de definição e subsequente estouro, na Londres de 1976, o punk morreu, ressuscitou - em 1981, com o movimento
Punk's Not Dead, título de um álbum histórico da banda escocesa
Exploited - e se fragmentou em inúmeras vertentes e variações.
"De 76 para cá, já houve todo tipo de distorção e variação. Na Europa, os punks são quase hippies, vivem em squats (casas abadonadas que são ocupadas e transformadas em centros culturais), protestam contra o capitalismo, a guerra do Iraque, a crueldade contra os animais, o McDonald's. Você vê aquela dança violenta nos shows, mas ninguém se machuca, e depois tá todo mundo se abraçando", conta Marcos Rodrigues, arquiteto e baixista que milita no rock baiano desde os anos 80 e atualmente, toca na Theatro de Seraphin.
Essa dança violenta a qual Marcos se refere, chamada "pogo", também é abordada por Miguel, que a compara com uma conhecida dança folclórica baiana: "Você já viu o maculelê, certo? É uma coreografia agressiva, que é melhor não chegar perto, para não tomar uma paulada. É a mesma coisa com os punks. O pogo é como uma coreografia", afirma.
“Punk é uma forma de luta“Os episódios de violência em São Paulo servem apenas para cobrir com uma cortina de fumaça o maior legado do punk, que é o seu avançado ideal de liberdade individual e auto-gestão. Acima de tudo, o que o punk propõe é todo um modo de pensar que implica em um rompimento radical com o status quo.
Bandas de rock, jovens de moicano, tudo isso é apenas uma faceta - a mais visível e emblemática - de uma idéia que é um movimento e um estilo de vida, ao mesmo tempo. Fragmentado, o movimento punk tem diversas vertentes, como os vegans, os straight edges, os queer punks, os crust punks, os gutter punks, os nerd punks, as riot grrrls, os quincy punks e mesmo os populares e odiados / amados emos."
Ao meu ver, os punks são atores sociais que expressam seus sentimentos em relação ao mundo e à forma como vivem", define
Willyams Martins, artista plástico e vocalista da banda de punk rock
Dever de Classe, com 20 anos de fundada.
"Infelizmente, não há uma hegemonia em relação ao pacifismo típico do punk. Muita gente se infiltra no movimento de forma inconsequente, sem compromisso com seus ideais libertários, apenas para extravasar. Mas o punk é uma forma de luta, uma forma de interpretar o mundo em que vivemos e de exigir uma reparação da nossa contemporaneidade", afirma.
Lili, como é conhecido, aponta os signos da indumentária punk como sinais de protesto e não de moda meramente estética. "O moicano era um protesto contra o extermínio dos índios tomahawk (tribo nativa norte-americana). As roupas pretas indicam preocupação com o mundo, que não é tão colorido quanto imaginavam os hippies. E por aí vai", explica.
"Já o anarquismo que o movimento prega tem um significado diferente daquele que está no Dicionário Aurélio, no sentido da baderna. O anarquismo punk persegue os ideais de autogestão e desobediência civil caros à intelectuais como
Enrico Malatesta, Bakunin e Proudhon. Um mundo sem pátria, sem religião, sem propriedade e sem patrão: um mundo auto-gestionário", conclui.
PUNK ROCK - No sentido musical, a coisa é ainda mais ampla, pois na verdade, o punk rock, no seu sentido mais puro, já existia muito antes do estouro da denominação punk na Londres de 1976.
Salvo engano, pode-se dizer que o marco zero da estética punk no rock é o álbum
Velvet Underground and Nico, de 1967. Com seu som totalmente na contramão da psicodelia colorida da época, o grupo liderado por Lou Reed causou estranhamento e hojeriza na época do seu lançamento.
Contudo, os poucos gatos pingados que não se identificavam com a estética hippie ouviram o disco e montaram suas próprias bandas, gerando anos depois, a cena do clube CBGB‘s de Nova Iorque, fartamente documentada no livro
Mate-me por favor, de
Legs McNeil e Gillian McCain.
Paralelo à isso, ainda na primeira metade da década de 70, grupos como o
MC-5 e os
Stooges, ambos de Detroit, radicalizaram no som distorcido e na atitude contestadora. O primeiro, se aliando aos ativistas radicais dos Panteras Negras e pichando "fuck you" nas janelas da gravadora. Já o segundo, além de escancarar todo o tédio e a descrença no futuro adotados depois pela geração "no future" inglesa, ainda revelou o fantástico frontman
Iggy Pop, modelo básico do vocalista de punk rock: seco como um vara-pau, totalmente alucinado e potencialmente perigoso - especialmente para si mesmo.
Os anos 80 trouxeram o hardcore, que se espalhou pelo mundo, e o estilo gótico de bandas como
Bauhaus e
Sisters of Mercy.
Em 1991, o
Nirvana estourou na América, abrindo as portas das gravadoras majors para todo o rock alternativo americano, que até então, vivia relegado aos porões.