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Carlos Lopes e a Matadeira. Foto Dani Dread |
E mais: é uma obra conceitual, dedicada à saga de Canudos e Antônio Conselheiro.
A banda é a Dorsal Atlântica, fundada pelo vocalista, guitarrista e agitador cultural Carlos Lopes no Rio de Janeiro, em 1981.
Jornalista por formação e ligado em história e política desde sempre, Lopes contou com a ajuda dos fãs para gravar Canudos, o álbum, via crowdfunding.
Com 13 faixas, Canudos é a obra mais política de sua banda e um manifesto furioso de Lopes contra o atraso imposto ao Brasil pelas elites que insistem em impor o capital acima do social.
“Canudos é o caso mais emblemático de como a sociedade brasileira não muda. O arraial fundado na Bahia por Antonio Conselheiro pode ser comparado hoje a uma favela, uma comunidade, um quilombo ou um acampamento do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto)”, afirma Lopes.
Ao longo do disco, o band leader faz paralelos muito claros entre o massacre de 1897 no sertão baiano e a forma brutal com que qualquer tentativa de insurgência dos mais pobres é tratada no Brasil: “Pedaladas fiscais, argumentação do baixo clero movida a cocaína, capitães do mato e coronéis / Aprenderam a degolar no Paraguai / Brasileiro cordial, conversa fiada”, vocifera, em Gravata Vermelha.
“Troque as panelas por armas, e o resto é tudo igual: o discurso de combate à corrupção, a hipocrisia, os jornais apocalípticos e a classe média urbana com nojo do Brasil profundo. Machado de Assis dizia que no Brasil existem dois países: o país real que é bom, que revela os melhores instintos, e o país oficial, caricato e burlesco”, reflete Lopes.
Místico (talvez como o próprio Conselheiro), ainda que intelectualizado, Lopes conta que a ideia do disco lhe surgiu em sonhos.
“Nunca estive em Canudos. Li Os Sertões (o homérico relato literário de Euclides da Cunha) e vários outros livros, assisti a documentários. Mas o que realmente me motivou, me deu força para seguir adiante, foi uma sucessão de sonhos recorrentes sobre essa ser a ‘missão’, por assim dizer”, conta.
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O cadáver de Antônio Conselheiro. Foto Flávio de Barros |
Sentimento agreste
Acompanhado do irmão Cláudio Lopes no baixo e de Américo Mortágua na bateria, Carlos logo de início entendeu que Canudos não poderia ser um disco de heavy metal comum.
Daí o detalhe saboroso da guitarra baiana, construída exclusivamente para ele pelo luthier baiano Fabio Batanj.
“Para falar do Brasil e mais especificamente da Bahia, pensei em gravar o disco com uma guitarra baiana que tivesse o som pesado da guitarrona. Desenhei o instrumento e o luthier baiano Fabio Batanj a construiu”, conta.
“Além da guitarra, precisava que os músicos se sentissem desafiados. Como falar sobre o sertão sem estar irmanado com o mesmo sentimento, vamos dizer, agreste? Decidi não ensaiar. Gravamos ao vivo em estúdio sem edições, da forma mais realista possível, inspirado no método Stanislávski de teatro”, acrescenta.
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“Artisticamente, sinto-me, e não é que isso seja ruim, um elo perdido entre o mundo atual, servil à cultura dominante e o universo artístico que admiro, que inclui os modernistas de 1922, Guimarães Rosa, Glauber Rocha, os tropicalistas e os Novos Baianos”, conclui o músico.
Canudos / Dorsal Atlântica / Independente (via crowdfunding) / R$ 30 / Vendas: www.dorsalatlantica.com.br
ENTREVISTA COMPLETA: CARLOS LOPES (DORSAL ATLÂNTICA)
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Carlos Lopes, foto Dani Dread |
Carlos Lopes: Porque Canudos é o caso mais emblemático de como a sociedade brasileira não muda. O arraial fundado na Bahia por Antonio Conselheiro pode ser comparado hoje a uma favela, uma comunidade, um quilombo ou um acampamento do MTST. Lembre de quando um canal de televisão divulgou ao vivo a “invasão” da Rocinha e do Complexo do Alemão no Rio por forças da “lei e da ordem”. A mesma transmissão ao vivo foi usada com objetivos políticos para incentivar patos e panelas. Troque as panelas por armas, mas de resto é tudo igual: o discurso de combate à corrupção, a hipocrisia, os jornais apocalípticos e a classe média urbana com nojo do Brasil profundo. Machado de Assis dizia que no Brasil existem dois países: o país real que é bom, que revela os melhores instintos e o país oficial caricato e burlesco.
Você sempre abordou temas políticos em suas letras no Dorsal. Já passou por um período político-social tão conturbado e retrógrado?
CL: Sou apaixonado por história brasileira e mesmo tendo estudado os vários golpes, eu nunca imaginaria vivenciar um deles nessa altura do campeonato. O desinteresse da massa e a falta de reação popular me recordaram do golpe de 1964 e do de 1889 sobre o qual o jurista Aristides Lobo havia dito que “o povo assistira a tudo bestializado.” Se levarmos em conta a história pregressa vivemos entre ciclos “democráticos” e golpes. Não é novidade... Com o golpe de 2016 esses jovens de direita, talvez semelhantes aos yuppies dos anos 80, perderam a vergonha e sentiram-se fortalecidos ainda mais nas redes sociais. A solução para quem pede o extermínio de Canudos e golpe militar é a educação, mas analfabeto funcional cresce até em cobertura!
Como surgiu a ideia de usar uma guitarra baiana para gravar o álbum? Ele foi todo gravado com ela? Quem foi seu luthier? Como você ficou conhecendo a guitarra baiana?
CL: A guitarra faz parte do processo de criação do álbum. Para falar sobre o Brasil e mais especificamente sobre a Bahia pensei em gravar o disco com uma guitarra baiana que tivesse o som pesado de uma guitarrona. Desenhei o instrumento e o luthier baiano Fabio Batanj a construiu. Além da guitarra, precisava que os músicos se sentissem desafiados. Como falar sobre o sertão sem estar irmanado com o mesmo sentimento, vamos dizer, agreste? Decidi não ensaiar e gravar o disco ao vivo em estúdio sem edições, da forma mais realista possível inspirado no método Stanislávski de teatro.
Aqui e ali no disco podemos ouvir ritmos brasileiros, contextualizando uma história ambientada quase toda no Nordeste. Pode contar quais ritmos você trabalhou e como?
CL: Canudos propõe um novo estilo de rock pesado com melodias brasileiras e cantado como brasileiro. O som não se afasta das origens da Dorsal, ainda é muito pesado, mas rompe com o padrão de mercado globalizado. O processo de criação do álbum inclui o desenvolvimento de novas batidas de bateria que mesclam maracatu, frevo, baião e a metranca do metal. Alterei a minha forma de cantar para que se parecesse ao canto dos repentistas e não só isso, mas agi como repentista em Canudos ao criar várias melodias no improviso, como o refrão da musica dedicada ao golpista do Planalto. Artisticamente, sinto-se, e não é que isso seja ruim, um elo perdido entre o mundo atual, servil à cultura dominante e o universo artístico que admiro que inclui os modernistas de 1922, Guimarães Rosa, Glauber Rocha, os tropicalistas, e os Novos Baianos.
Já visitou a própria região de Canudos? Como foi sua preparação / imersão no assunto?
CL: Na verdade nunca estive em Canudos. Li os Sertões e vários outros livros sobre o tema, assisti a documentários, mas o que realmente me motivou, me deu força para seguir adiante foi uma sucessão de sonhos recorrentes sobre essa ser a “missão”, por assim dizer. Tanto para homenagear meus antepassados nordestinos, como para colocar em prática um antigo sonho de repensar a história do Brasil seja através de música, histórias em quadrinhos e animação. Canudos não se encerra nesse disco, se expande e vai além. Posso ser indiscreto...? Projeto regravar Canudos... em Canudos com guitarra baiana e pífanos. Quem sabe... Talvez só Antonio Conselheiro tenha a resposta...
Vai correr pelo país com este show? Alguma chance de show na Bahia?
CL: Vivo quase recluso há dez anos, o mesmo período em que não toco ao vivo. Os convites para apresentações são vários desde quando voltamos a gravar em 2012, mas ainda não me sinto à vontade, ainda mais nesse momento com tantos fãs de heavy metal fascistas. Eu nunca tocaria para essa gente. Seria como um negro contando para uma plateia branca piadas sobre negros... Se o país mudar, se as pessoas tornaram-se mais humanas, talvez eu me interesse em sair da toca.
Qual sua expectativa para o Brasil para este ano, observador arguto que você é?
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Matadeira by Fabio Batanj. Foto Dani Dread |
Meu velho, me fala o que você realmente gostaria de dizer em uma entrevista para este centenário jornal baiano mas eu não perguntei.
CL: Certa vez me disseram que eu era um sonhador e me senti honrado. Porque transformei sonhos em realidade. Ou talvez porque a juventude me fortalecesse. Mas o tempo passa e para manter esse pique de independência, - que assemelha-se à vida do trabalhador que pega o trem lotado para o seu ganha-pão, - é preciso superar desafios pessoais e profissionais quase intransponíveis. Hoje, ainda tenho sonhos. E me orgulho disso.
2 comentários:
excelente entrevista, parabéns. Vou ver se compro esse disco, parece muito bom.
instigou!!! vou ouvir pra logo!
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