Arte de João Pinheiro para Carolina |
E agora, ambos tiveram suas vidas e universos literários vertidos aos quadrinhos pelo mesmo artista, o paulista João Pinheiro.
Ambas as HQs, Carolina de Jesus – escrita pela professora Sirlene Barbosa – e Burroughs,
Carolina era uma brasileira preta, pobre e favelada. Escritora por pura teimosia, foi descoberta por um jornalista e, em 1960, lançou um clássico: Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada.
William S. Burroughs era um norte-americano branco, rico, homossexual, viciado em drogas, que matou a esposa brincando de Guilherme Tell e foi um dos principais nomes da Geração Beatnik.
Apesar dos perfis diversos, tanto Carolina quanto Burroughs documentaram em suas obras as vidas dos marginalizados. Carolina, a dos favelados, como ela. Burroughs, a dos adictos, como ele.
Sobre as HQs, ambas compartilham um forte ponto em comum – além da arte de João Pinheiro: elas evitam traçar um mero perfil biográfico.
Ao invés disso, Carolina e Burroughs mergulham nos universos dos seus personagens, apresentando-os ao leitor por meio de texto e imagem.
Ele já havia feito algo similar em outra HQ: Kerouac (Devir, 2011), sobre Jack Kerouac (1922-1969).
“Meu método nos dois casos foi exatamente o de um mergulho em suas obras (mais ainda no caso do Burroughs), e de outros autores que funcionam como subtexto de suas ideias”, conta João, por email.
“A partir dessa submersão, vou criando cenas e desenvolvendo o roteiro. Tem muito de intuição, mas também um processo constante de construção e desconstrução. Parece meio caótico, mas prefiro não trabalhar com um roteiro fechado”, acrescenta.
Carolina e a “meritocracia”
Sirlene Barbosa. Foto divulgação Veneta |
"A ideia veio da Sirlene que, em seu ambiente escolar, percebeu a importância da obra de Carolina Maria de Jesus na formação dos estudantes e também constatou o quanto sua obra é pouco conhecida e utilizada por meio de uma pesquisa realizada, em 2014, com os Professores Orientadores de Sala de Leitura da Diretoria Regional de Educação de Itaquera (PMSP): aferiu que de 39 docentes, apenas seis conhecem Carolina, superficialmente, e nenhum deles realizou leituras de sua obra nas salas de leitura que coordenavam", relata Sirlene, por email.
"Mais adiante, analisando o acervo digital das bibliotecas paulistanas, com o objetivo de averiguar se a obra de Carolina faz parte da coleção, os autores constataram que todas as unidades disponibilizam para empréstimo pelo menos um livro Quarto de despejo: diário de uma favelada (1960), a obra mais conhecida da escritora; já Diário de Bitita (1986), obra póstuma, está disponível em apenas uma unidade, na Biblioteca Milton Santos, localizada na Zona Leste da cidade. Com apenas uma unidade de Quarto de despejo em cada biblioteca e único volume de Diário de Bitita em toda rede, nos perguntamos: como a escritora será mais estudada e, portanto, conhecida, se as bibliotecas da metrópole de São Paulo não disponibilizam sua obra para os usuários? Soma-se a isso o fato de haver uma lacuna de representação negra nas HQs nacionais", prossegue Sirlene.
“A partir desses dados, propomos contar a vida e parte da obra de Carolina, por meio de uma HQ. E objetivamos que o livro chegue às bibliotecas e escolas de todo o país. Nosso intuito é alcançar todo o Brasil, ir além de São Paulo”, diz.
João Pinheiro. Foto Dvulgação Veneta |
Negra empoderada 50 anos antes do próprio termo “empoderada” virar moda, Carolina é vista pela autora também como um símbolo: “É um ícone importante para a luta das mulheres, as negras, principalmente. Para o movimento negro e para lembrar que todos temos o direito à literatura – desde à sua leitura, bem como à sua escrita. Carolina se empoderou porque dominava a arte da escrita, porque sempre soube o que era – escritora”, afirma.
A HQ chega em momento apropriado, quando muito se discute uma tal de “meritocracia”: "Sua trajetória nos faz pensar quão falha é a ideologia da meritocracia. Não é possível usar Carolina como exemplo do ‘quem quer, vence’. Não é verdade. Ela continuou trabalhando como recicladora, mesmo quando estava prestes a lançar seu livro. E para o bem ou mal, quem lhe abriu as portas da publicação, não da escrita, porque escritora ela já era, foi um homem branco, de classe média”, lembra.
“Quero dizer com isso que muitas oportunidades estão trancadas do lado de dentro e quem está dentro não são os negros, indígenas, povos oprimidos que muito fizeram e fazem pela nação e pouco tem de garantias. Tanto que Carolina morreu na pobreza. Ela foi esquecida, depois de perder a graça como objeto exótico dos ricos e de ‘metida à besta’, por parte dos pobres”, relata.
"Como já antecipado acima, porque ela deixou de ter graça e porque os ditadores não queriam ver estampado a verdadeira realidade brasileira; quiseram abafar a miséria pelo qual o povo passava, diferente do que os generais queriam mostrar, haja vista que Salazar (ditador português) não permitiu a entrada de Quarto de Despejo no seu país. Como já dizia Carolina: é típico de ditador querer calar a voz do povo", afirma Sirlene.
Carolina foi a primeira HQ de Sirlene, que pretende escrever outras, tendo como tema a representação negra: "Sim, foi (minha primeira HQ)! E pretendo escrever outras, sim, com temas voltados para a população negra e pobre brasileira ou apresentar outro grande nome da literatura e da luta contra a escravidão, como Luís Gama – o grande abolicionista que não teve tempo de ver o processo de escravização “abolido”, pois faleceu seis anos antes (1882), bem como outros nomes geniais da literatura como Lima Barreto e Maria Firmina dos Reis (autora de Úrsula – talvez a obra que introduz a literatura negra brasileira)", conta.
"Acredito que a literatura negra ainda não alcançou o espaço que deveria ocupar, mas está crescendo muito. Trabalhos de décadas atrás, como a coleção Cadernos negros, ainda se encontram em evidência. Nomes como Solano Trindade, Abdias do Nascimento, Conceição Evaristo, Oswaldo de Camargo, Cuti, Esmeralda Ribeiro, Márcio Barbosa, Ana Maria Gonçalves (tenho certeza que deixei de citar tantos muitos outros – perdão pela memória fraca) e um que me dá força, me empodera e precisa aparecer mais: o grandioso Lima Barreto", afirma Sirlene.
Arte de João Pinheiro para Burroughs |
Fã da geração beat, João Pinheiro já lançou duas HQs dedicadas aos agitadores culturais norte-americanos: Kerouac e Burroughs. "Conheci a Geração Beat através de um artigo que o Cláudio Willer publicou na revista Chiclete com Banana lá pelos idos de 1996. Eu tinha uns 15 anos. Pirei com aquilo, com a imagem daqueles caras viajando de carona de uma ponta a outra da América, procurando um sentido para as suas vidas e escrevendo sobre tudo isso de modo intensamente existencial. A crítica ao consumismo e a louvação da vida acima de tudo. O deboche à caretice e consumismo americano do pós-guerra, tudo me fascinou", conta João.
"Mas eu não consegui encontrar nenhum livro beat em nenhuma biblioteca e na periferia não existem livrarias, então não encontrei nada por um bom tempo. Anotei os nomes dos livros e dos escritores, que o Willer citava na matéria, e guardei na carteira. Aos 16 anos comecei a trabalhar como office boy no centro de São Paulo. Andava por todo centro de São Paulo, em todos os cartórios e bancos e logo comecei a vasculhar os sebos em busca do On the road. Depois de muito procurar, finalmente encontrei. Me custou o olho da cara, porque, naquela época, estava fora de catálogo, mas meti um foda-se e comprei. Foi provavelmente o melhor investimento que fiz na minha vida. Fiquei duro, mas o livro mudou o meu modo de ver o mundo. Desde então leio tudo o que me cai nas mãos sobre essa turma: Kerouac, Ginsberg, Burroughs, Corso, Ferlingheti etc", conclui.
Em Burroughs, João dialogou não apenas com a vida e obra do autor, mas também com outras obras sobre ele, como o filme Mistérios e Paixões (Naked Lunch, 1991), de David Cronenberg: "Foi uma das referências. Assisti esse filme várias vezes durante o trabalho além de outras películas que lembrassem o universo Burroughiano", conclui.
Carolina de Jesus / Sirlene Barbosa e João Pinheiro/ Editora Veneta/ 128 páginas/ R$ 39,90
Burroughs / João Pinheiro/ Editora Veneta/ 128 páginas/ R$ 39,90/ www.lojaveneta.com.br
5 comentários:
Racismo no Brasil? Mentira, isso não existe, é mimimi, coitadismo - blá blá blá blá....
http://www.pragmatismopolitico.com.br/2016/07/gerente-publica-foto-de-funcionaria-trabalhando-e-debocha-escrava-isaura.html
http://www.brasilpost.com.br/2016/07/22/pagina-facebook-empregada_n_11145512.html?utm_hp_ref=brazil
Mais uma prova - se é que isso ainda é necessário - de que a elite econômica brasileira é ESCRAVOCRATA, GENOCIDA E (claro) GOLPISTA.
http://screamyell.com.br/site/2016/07/10/cinema-menino-23/
Se me dissessem que a história desse doc era fictícia, eu acreditaria de boa, de tão escrota e desumana que ela é. Mas não, a história é real.
Lindo o teaser de Trainspotting 2:
https://omelete.uol.com.br/filmes/noticia/trainspotting-2-protagonistas-se-reunem-no-primeiro-teaser-trailer-da-sequencia/
louco pra ver esse transpotting 2...
sobre o racismo...terrível...não sei até quando isso vai existir...e se vai acabar...esse doc eu tinha ouvido falar...bom que já saiu...quero ver...mas num sei se tenho estômago...
agora que me dei conta q eu atrapalhei esquadrão suicida com esquadrão atari...até achei estranho...as personagens diferentes...e acho que o atari era mais underground...mas lembro do suicida sim...
O Esquadrão Suicida não é o Esquadrão Atari, Sputter. O ES é de meados para o fim da década de 80, surgiu um pouco depois do EA, que é do início daquela década. O EA era parte de um acordo da DC com a Atari, então no auge da popularidade com seu inesquecível console 2600, e apresentava um grupo de aventureiros espaciais - que até lembram um pouco a versão atual dos Guardiões da Galáxia, da Marvel. Quando o acordo acabou, a HQ do EA, que era excelente, aliás, foi cancelada e até hj essas HQs não puderam ser republicadas, por que as empresas nunca mais conseguiram entrar em um acordo. Quem tem aquelas HQs dos anos 80, então, que as guarde bem bonitinhas....
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