PRÊMIO NOBEL, J.M. COETZEE REINVENTA ROBINSON CRUSOÉ E REFLETE SOBRE A LITERATURA

Cruso ou Crusoé?

O leitor incauto pega Foe, quarta obra do sul-africano Prêmio Nobel de Literatura (2003) John Maxwell Coetzee, pensando se tratar de uma intrigante reinvenção do clássico Robinson Crusoé (1719), do inglês Daniel Defoe – como aliás, o livro é definido em sua orelha.

Felizmente, há enganos que vem para o bem.

De fato, Foe reimagina o icônico conto do náufrago e seu fiel amigo Sexta-Feira na ilha deserta – mas também faz bem mais do que isso.

Escritor ambicioso, sofisticado e metódico, J. M. Coetzee, como é mais conhecido, faz em Foe um comentário pleno de subtextos sobre a literatura em si, a arte de contar histórias e a própria comunicação humana.

Para isso, ele introduz na história um terceiro elemento: uma certa mulher inglesa, de nome Susan Barton, que narra o livro em primeira pessoa.

Embarcada em um navio português que saiu de Salvador (sim, daqui mesmo) a caminho da Inglaterra, Susan é abandonada no meio do caminho pela tripulação amotinada.

Memorial de Daniel Defoe em Norfolk, Inglaterra

Deixada próxima a uma ilha deserta, Susan é socorrida pelos seus dois únicos habitantes: um idoso também inglês, de nome Cruso, e seu escravo, um negro que teve sua língua cortada, chamado Sexta-Feira.

Susan passa um tedioso ano na ilha, tendo como companhias um homem mudo e um idoso caladão e mal-humorado – até que são resgatados por um navio mercante e embarcam rumo a Londres.

Lá, ela entra em contato com o famoso escritor Daniel Foe para transformar sua incrível jornada em um livro de sucesso e, assim, ter dinheiro para poder enviar o pobre Sexta-Feira de volta à África.

Um turbilhão de dificuldades porém, atrapalham seu planos e Susan e Sexta-Feira passam o diabo na Inglaterra.

E como ela poderia saber o que Sexta-Feira quer, afinal? Alienado, ele não fala, nem escreve, sequer gesticula.

Como se não fosse o bastante, Daniel Defoe desaparece, perseguido por credores. Expulsos de estalagem onde estavam hospedados, Susan e Sexta-Feira "ocupam" a casa do escritor clandestinamente.

Para piorar, uma jovem procura Susan e se apresenta como sua filha raptada - a mesma que ela veio à Bahia procurar -, embora a moça não lembre em nada a desaparecida.

Outro atrativo do livro, para os leitores baianos e ou brasileiros, são suas contantes lembranças dos dois anos que Susan passou em Salvador capital da colônia nos anos 1700, em busca da filha.

Volta e meia, ela lembra de suas ruas cheias de escravos e até do desembarque de ciganos de pele morena, provenientes da Galícia.

Quantas histórias cabem em uma história?

Coetzee cria aqui um jogo de espelhos intrincado, onde cada imagem gera outras tantas.

Um livro complexo, porém acessível – e de prosa rica, inspirada.

Foe / J.M. Coetzee / 144 p. / Companhia das Letras