terça-feira, fevereiro 17, 2015

ESTRADA PARA A RUÍNA

HQ: Autocracia, do inglês Woodrow Phoenix, é um forte  manifesto gráfico sobre o que há de errado em nossa relação com automóveis, propaganda, indústria e governo

Nos anos 1980, um velho rock da banda local 14ª Andar já dizia: “De papo sobre carro, eu nunca estive a fim”.

Demorou, mas finalmente surgiu um papo interessante sobre carros: o livro Autocracia, do quadrinista inglês Woodrow Phoenix.

Demolidora, a obra não é uma história em quadrinhos. Está mais para um manifesto gráfico em painéis sequenciais, nos quais o autor reflete sobre Velocidade, poder e morte no mundo motorizado, como anuncia o subtítulo na capa.

“O assunto está aí há muito tempo esperando para ser discutido e não havia razão para fazer uma ficção sobre isso quando há tanto material verídico para se abordar”, afirma Phoenix em entrevista exclusiva por email.

“Como todo mundo imagina as coisas ligeiramente diferentes eu não teria a garantia de que você veria exatamente o que eu queria que você visse. Além disso, as imagens são uma ligação visual entre as paisagens idealizadas da propaganda e o quanto é complicado o ato real de dirigir”, acrescenta.

Indústria, governo, anúncios

Em pouco menos de 200 páginas, Phoenix junta sua pesquisa e sua experiência pessoal e destrincha tudo o que está errado na nossa relação com os automóveis, esfregando na cara do leitor o quanto a indústria automobilística faz gato e sapato de nossas cidades e nossas vidas, com o apoio da propaganda, a cumplicidade criminosa do poder público e a bênção da justiça, que nunca pune adequadamente motoristas bêbados, irresponsáveis e / ou assassinos.

“As pessoas nunca são verdadeiramente responsabilizadas pelo seu comportamento em seus carros e, de alguma forma, a sociedade parece aceitar isso numa boa”, nota.

“O número de mortes é tão alto por que nunca é sua culpa quando você mata alguém. Motoristas tem o benefício da dúvida por que dirigir é algo tão desgastante e eles são apenas humanos. Por isso nós os denominamos ‘acidentes’ ao invés de ‘assassinatos’”, reflete.

Para Phoenix, uma regulação mais rigorosa da propaganda até poderia “ajustar alguns aspectos”, mas o mais importante seria “que todos entendessem como são manipulados”.

“Anúncios são criados com extrema precisão para parecerem inofensivos e divertidos enquanto tentam te deixar insatisfeito com o que tem”, vê.

“Uma vez que você consegue reconhecer o repertório de truques imbecis dos quais propaganda lança mão, menos poder eles tem sobre você. Esta é uma das mensagens-chave de Autocracia: precisamos sair  da passividade e nos tornarmos mais conscientes de todas as formas se não quisermos nos autodestruir – ou deixar que outros nos destruam”, avisa.

O pior de tudo é notar que Phoenix escreveu sobre a realidade da sua terra. Ou seja: se até no desenvolvido Reino Unido é assim, imagina no Brasil, aonde o trânsito mata mais do que os conflitos armados de alguns paises em guerra.

“Mas os motoristas são egoístas em todo o mundo e as leis são inclinadas em seu favor por que os políticos não andam de ônibus”, observa, certeiro.

“O simples ato de fechar ruas para o tráfego em festivais e feiras é tão transformador que faz as pessoas questionarem por que tanto espaço público é destinado aos carros. Investimento em transporte público de massa beneficia a todos, enquanto carros beneficiam apenas uns poucos e ainda penalizam o resto”, afirma.

No fim das contas, Autocracia mostra o quanto ainda precisamos mudar nossa relação com esses aparelhos de quatro rodas.

“Se não participarmos desse circo, podemos ajudar a concretizar isto. Cada vez menos pessoas querem possuir um carro ao redor do mundo nas grandes cidades. É um começo”, conclui Woodrow Phoenix.

Em tempo: para a edição brasileira, o autor desenhou mais vinte páginas extras exclusivas, com paisagens de capitais como Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília.

Autocracia / Woodrow Phoenix / Editora Veneta/ 192 páginas/ R$44,90/ www.veneta.com.br

Entrevista completa: Woodrow Phoenix

Por que o formato de um manifesto em quadrinhos, ao invés de uma ficção?

Woodrow Phoenix: O assunto está aí há muito tempo esperando para ser discutido e não havia razão para fazer uma ficção sobre isso quando há tanto material verídico para se abordar. Uma narrativa sequencial era absolutamente a única forma de fazer este livro porque nos movemos através de espaços e locais, assim posso mostrar sobre o que estou falando. Uma narrativa baseada em texto não teria o mesmo impacto por que você teria que imaginar as coisas ao invés de vivencia-las, Como todo mundo imagina as coisas ligeiramente diferentes eu não teria a garantia de que você veria exatamente o que eu queria que você visse. Além disso, as imagens são uma ligação visual entre as paisagens idealizadas da propaganda e a direção manual e o quanto é complicada o ato real de dirigir. Aprendemos a dirigir com a ajuda de diagramas e imagens idealizadas as quais então mapeamos na estrada a nossa frente. Então os desenhos de Autocracia tanto descreve quanto comenta o que vemos ao dirigir.

Ao longo do livro, você cita inúmeras formas de uso equivocado dos carros. Serão eles o veículo definitivo da estupidez humana?

WP: Há uma coisa muito próxima entre carros e armas. Ambos são completamente mortais. Mas sim, carros são piores por que a única função de uma arma é matar, não outra razão para sua existência. Enquanto carros tem muitas funções e a morte humana é (ou deveria ser) um subproduto de uma sua existência. Mas a forma como dirigimos torna as mortes inevitáveis por que testamos a habilidade mecânica de uma pessoa em operar uma máquina enquanto sua atitude mental é desimportante. Batidas de carros acontecem ao longo do eixo entre impaciência e distração. As pessoas nunca são verdadeiramente responsabilizadas pelo seu comportamento em seus carros e de alguma forma a sociedade parece aceitar isso numa boa. O número de mortes é tão alto por que nunca é sua culpa quando você mata alguém. Motoristas tem de ter o benefício da dúvida por que dirigir é algo tão desgastante e eles são apenas humanos. Por isso nós os denominamos "acidentes" ao invés de "assassinatos".

A propaganda tem um enorme papel nesse cenário ao transformar os carros em objetos de desejo, estilo de vida e símbolos de status. No livro você mesmo conta que foi o comercial de um SUV ('utilitário' no Brasil) que fez seu sangue ferver e finalmente escrever este livro. Você acha que a propaganda de carros deveria ser regulada de alguma forma?

WP: A regulação poderia ajustar alguns aspectos mas seria mais importante que todos entendessem como são manipulados. Anúncios são criados com extrema precisão para parecerem inofensivos e divertidos enquanto tentam te deixar insatisfeitos com o que tem, que faze-lo gastar mais dinheiro seria a melhor resposta para tudo. Uma vez que você consegue reconhecer o repertório de truques imbecis dos quais propaganda lança mão, menos poder eles tem sobre você. Esta é uma das mensagens chave de Autocracia: precisamos parar de sermos passivos e nos tornarmos mais conscientes de todas as formas se não quisermos nos autodestruir - ou deixar que outros nos destruam.

Não sei se você está a par, mas aqui no chamado Terceiro Mundo é pior do que na Europa. É uma série de situações que se alimentam mutuamente, formando um cenário quase insolúvel. Boa parte de nossa economia é baseada na indústria automobilística, o governo mantém os impostos baixos para o comprador final (assim quase todo mundo pode comprar um carro), o tráfego de nossas cidades é um caos completo, o sistema de transporte público é intencionalmente (e criminosamente) deficiente, nossos motoristas são extremamente agressivos e as penas para quem dirige bêbado e mata no trânsito são ridiculamente suaves. O resultado são os altíssimos números de mortes no trânsito a cada ano. Em resumo: o Brasil é refém da sua indústria automobilística. Você vê alguma luz ao fim deste longo e escuro túnel? Alguma iniciativa que as pessoas possam ter para começar a modificar tudo isto?

WP: É o óbvio de sempre, na verdade. Motoristas são egoístas em todo o mundo e as leis são inclinadas em seu favor por que os políticos não andam de ônibus. Precisamos de corpos públicos que pensem e ajam coletivamente. O simples ato de fechar ruas para o tráfego em festivais, feiras e outros eventos é tão transformador que faz as pessoas questionarem por que tanto espaço público é rotineiramente destinado aos carros. Investimento em transporte público de massa beneficia a todos, enquanto carros beneficiam apenas a uns poucos e ainda penalizam o resto. Nossos governos estão presos à indústria e a única maneira disso mudar é quando não for mais rentável. Se não participarmos desse circo podemos ajudar a concretizar isto. Cada vez menos pessoas querem possuir um carro ao redor do mundo nas grandes cidades. É um começo. Ninguém precisa de um carro novo a cada dois anos.

Uma coisa é clara: a humanidade precisa mudar sua relação com os veículos automotores. O que você acha desses carros experimentais da Apple sem motoristas? O lado irônico é que as estradas poderiam ser humanizadas quando as entregarmos às máquinas?

WP: Talvez esses carros sem motorista da Apple possam nos salvar das pessoas que não ligam para nada e vivem muito distraídas para dirigir de forma apropriada. Por que para as outras pessoas que dirigem de forma ameaçadora como um 'meio de expressão do eu', esse carro jamais terá apelo. É interessante pensar na imensa mudança mental que seria necessária para as pessoas passarem a encarar carros de algo que elas controlam para uma espécie de "quarto móvel" que elas temporariamente habitam. Me pergunto se estamos prontos isto. Resolveria alguns problemas, mas a questão principal da dominação do espaço público por uma pequena parcela da população permaneceria. Continuo esperando pelos jetpacks.

Você continuará trabalhando com este tema em outros livros?

WP: Pensei neste livro por uns dois anos antes de faze-lo. Este tipo de material requer um tempo de maturação antes de você imaginar como trabalha-lo, por que é como um trabalho de detetive, fazendo ligações entre assuntos e eventos. É mais difícil do que escrever ficção, onde você controla cada parte da narrativa. Tenho ideias para outros livros como este e sim, farei mais deste tipo de ensaio / documentário gráfico. Acho que é importante que examinemos como vivemos, que questionemos a sociedade ao invés de aceitar suas falhas. As pessoas fizeram este mundo em que vivemos e outras pessoas estão constantemente refazendo-o, geralmente em benefício próprio, então precisamos nos manter acordados, desafiar o que parece óbvio e perguntar por que é desta ou daquela forma.

Sou um grande fã de autores britânicos de quadrinhos como Alan Moore (e quem não é?), Grant Morrison, Warren Ellis, Garth Ennis e Gordon Rennie, entre outros. Vejo que você já trabalhou com alguns deles. Qual o mais difícil de se trabalhar em parceria? E o mais fácil?

WP: Isto é muito brega e eu peço desculpas antecipadamente, mas qualquer um que está aberto as sugestões do seu colaborador é bom para trabalhar. Eu não estou interessado em simplesmente ilustrar as palavras de outra pessoa. Você tem que se adaptar a diferentes estilos de trabalhar com diferentes escritores. Grant Morrison escreve muito poeticamente e deixa um monte de espaço para a sua interpretação. Alan Moore escreve as descrições do painel mais longas no mundo, então você realmente tem que ler muito antes que você possa começar a desenhar! Eu estou trabalhando com Gordon Rennie novamente depois de um tempo muito longo e é incrível como você pode entrar no ritmo muito rapidamente quando há confiança um no outro e respeito às habilidades de cada um.

2 comentários:

Franchico disse...

RIP Brett Ewins.

http://www.bleedingcool.com/2015/02/17/brett-ewins-co-creator-deadline-legendary-2000-ad-artist-dies-aged-59/

Artista inglês, mais conhecido por aqui pela incrível minissérie Skreemer.

Franchico disse...

Lembram do clássico aviso "Não usem o ácido marrom?"

http://www.brasilpost.com.br/2015/02/16/nbome-carnaval_n_6693604.html?utm_hp_ref=brazil

Agora é o NBOMe...