Pioneiro do blues na Bahia, Álvaro Assmar partiu repentinamente na manhã de ontem. Seu legado sobrevive em sua obra e no filho e seguidor Eric
|
Foto de divulgação de The Old Road, o último CD. Foto Laryne Nascimento |
“Alô, Chico Castro? Aqui é o Álvaro Assmar!”.
A voz entusiasmada e aveludada de radialista e a dicção perfeita não deixavam dúvidas: era mesmo Álvaro Assmar ligando para divulgar algum show, um disco novo, ou mesmo para trocar uma ideia.
O guitarrista, cantor, compositor, produtor, radialista e engenheiro civil (por formação, mas que não chegou a exercer) deixou a comunidade musical baiana em choque ao morrer repentinamente na madrugada desta segunda-feira, vítima de enfarte.
Ao partir aos 59 anos, Álvaro deixa órfãos não apenas seus filhos Eric e Vítor e sua esposa Adalgisa, mas também todos os fãs e amigos que fez durante décadas de intensa atividade no cenário musical baiano.
Revelado nos anos 1980 na banda de hard rock Cabo de Guerra, que formou com seu irmão Adelmo, Álvaro partiu para tocar blues ao formar, ainda em 1989, a banda Blues Anônimos, reputada como a primeira banda do gênero nascida na Bahia.
Com o fim da Cabo de Guerra em 1992, Álvaro resolveu seguir solo e se dedicar integralmente ao blues.
O resto é história. Ou várias histórias.
Lançou seis álbuns e dois DVDs, produziu inúmeros shows de blues nos quais trouxe a cidade todos os principais nomes do gênero no Brasil, produziu o programa de rádio dedicado ao blues mais longevo do país (Educadora Blues, no ar desde 2003), concorreu ao Grammy Latino em quatro categorias (pelo seu último e excelente álbum, The Old Road), produziu ótimos discos para seu filho Eric Assmar e a banda local Lo Han, se apresentou em teatros e casas de show no eixo Rio-SP (com destaque para uma apresentação no histórico Canecão) e por aí vai.
|
Com Eric no DVD 25 Anos Ao Vivo (2011): Pride and joy |
Uma vida plena.
“Estou destroçado”, afirmou o filho e seguidor Eric, ainda sob o choque da notícia. “Era meu grande amigo, minha grande referência. Um pai e uma pessoa que soube dar carinho e amor para as pessoas. Não sei como vai ser daqui pra frente. Tá difícil de acreditar”, lamentou.
Adalgisa, a parceira de trabalho e eterna musa que inspirou algumas de suas melhores músicas, lembrou que “Ele era um profissional competente e reconhecido no Brasil”.
“Era um homem inteligente, amado, me amava muito, sempre me fazia declarações. O grande amor da minha vida. Perdi um homem muito especial”, afirmou.
Sem ressentimentos
Ao saberem do ocorrido, músicos, amigos e instâncias governamentais imediatamente manifestaram seu pesar, uma prova do quanto Álvaro era querido e admirado.
“Músico irretocável e um ser humano de primeira grandeza. Grande perda para a nossa cultura”, afirmou Fernando Guerreiro, diretor da Fundação Gregório de Mattos.
“A Secretaria de Cultura do Estado da Bahia registra profundo pesar pelo falecimento do guitarrista baiano Álvaro Assmar”, lamentou a SecultBA, em nota oficial.
“Álvaro era um superartista. Gentil, generoso, que partilhava todo conhecimento que tinha. Colocava muito amor nos programas. Era uma entrega de quem faz pensando no outro. Tinha um carinho imenso pelo público e pela rádio”, disse Daniela Souza, coordenadora da Rádio Educadora.
Do Rio de Janeiro, o gaitista Flávio Guimarães, da pioneira banda Blues Etílicos, também enviou seus pêsames: “Álvaro foi um pioneiro, teve um papel importante na história musical, principalmente no Nordeste. Era um grande músico, um compositor especial, um idealista, tinha paixão verdadeira pelo blues”, afirma.
Já o guitarrista e produtor Luisão Pereira, contemporâneo de Álvaro no rock baiano dos anos 80 (com a banda Cravo Negro) classifica Álvaro como “O maior guitarrista de blues que a Bahia já teve. O encontrei há três meses, cheio de projetos, sempre sorridente, sempre positivo. Apesar de fazer blues na Bahia, não era ressentido. Nunca foi”, diz.
|
1987, com a banda Cabo de Guerra. Foto Facebook Cabo de Guerra |
Em seus planos para 2018, Álvaro tinha o lançamento de uma biografia (escrita pelo
jornalista João Paulo Barreto) e um disco novo, intitulado Family & Friends.
O livro está pronto e ainda vai sair, devidamente atualizado.
É chover no molhado afirmar que, fosse com uma Fender Stratocaster ou uma Gibson Les Paul em punho, Álvaro sabia faze-las chorar como poucos.
Mas tocar com maestria foi o de menos. Álvaro era a soma de tudo o que foi posto aqui e mais.
Em entrevista concedida em 2011 para o Caderno 2+, Álvaro resumiu sua carreira: “O caminho é tortuoso, mas quando eu vejo o que produzi nesse período, o gosto é bom, cara. Posso chegar e dizer que cumpri o meu papel”.
Colaboraram nesta matéria Eduarda Uzeda e Márcia Moreira.
DEPOIMENTOS
|
No Canecão. Foto André Machado |
Mauro Ybarros: Descobri o blues em 1985, 86, aproximadamente, com uma coletânea chamada ATLANTIC BLUES - CHICAGO, com músicos da cidade contratados pelo selo. Andava com esse LP debaixo de braço, pra onde quer que fosse. e me sinto responsável por passar a bola do blues pra muita gente na época, pois gravava fitas cassete pra todos os meus amigos e quem chegasse perto de mim. Nesse disco havia uma música chamada Dust My Broom, que foi gravada pelo guitarrista Johnny Shines, que eu adorava, com seu slide e seu riff classico que nunca mais saíram de minha cabeça. algum tempo depois, eu conheci Álvaro, que fazia uma temporada com a banda Blues Anônimos, com Otávio Américo no contrabaixo e Raul Carlos Gomes na bateria. Assim como o 14º Andar, de Jerry Marlon, Hélio Rocha e João, o Blues Anônimos era um power trio que amava o blues e o rock'n'nroll (além de beatles e rolling stones), e que tocava os clássicos que garotos como eu só podiam ouvir em velhos discos arrumados em sebos, pois não era comum as gravadoras lançarem discos do estilo naquele tempo. e vocês podem imaginar o que foi pra mim ouvi-los tocar, pela primeira vez em minha frente, um dos clássicos do "meu" primeiro disco de blues... E assim, passei a acompanhar a sua carreira, indo ver os shows que ele fazia no Zouk Santana ou Paris Latino, no Rio Vermelho, além do Atelier, que ficava no jardim baiano, onde tive a honra de acompanhá-lo no contrabaixo, ainda iniciante, mas cheio de vontade de fazer um som parecido com o que ele fazia. de lá pra cá, foi com muito orgulho que vi o seu incansável trabalho de divulgar, promover e incentivar o blues na cidade, seja em seu programa de radio na educadora fm, seja em suas conversas divertidas e cheias de bom humor, onde ao mesmo tempo que reclamava de tudo e de todos, tinha o maior prazer em dar dicas de novos lançamentos, de velhas gravações, ou de nomes que ainda não conhecíamos...
podia pensar que a sua passagem é algo injusto, que ainda não era a hora dele nos deixar... mas vou pensar que ele está um pouco no meio de todos nós que descobrimos um caminho pra fazer blues em salvador e entre todas as pessoas que hoje têm o blues como um dos seus estilos preferidos; e, com certeza, prefiro pensar nele com sua guitarra à tiracolo, andando por uma estrada qualquer por aí, cantando um velho blues que diz "hoje eu tou triste / mas não vou mais me sentir assim / porque o sol vai brilhar / em minha porta de novo" fica em paz, meu caro. e "let's roll"
Rodrigo Sputter Chagas (The Honkers): É uma perda muito grande. Ele divulgou muito o blues. Trouxe blueseiros de fora. Era uma pessoa querida, do bem. Fica um vazio muito grande na cena. Nossa, para mim está sendo um choque, uma surpresa. Como isso aconteceu? Conheço ele há muito tempo, nunca fomos amigos, mas acompanhava sua trajetória. E nossa relação sempre foi muito calorosa quando nos encontrávamos. A última vez que o encontrei foi em um jogo do Bahia, ele era torcedor do Bahia. Gente boa, generoso. Estou em choque...
|
No filme do Sabbath, último encontro com biógrafo. Foto João Paulo Barreto |
João Paulo Barreto, jornalista, crítico de cinema e biógrafo de Álvaro: Álvaro, ainda estou sem acreditar, meu velho. O choque é grande. A tristeza, maior ainda. Durante o último ano, meu contato com você foi constante. Escrever sua biografia tem sido um desafio gigantesco. Mais do que isso, um aprendizado que não consigo mensurar em palavras. As horas e mais horas que passei em sua companhia, ouvindo suas risadas, ouvindo suas expressões de "porra, bicho! Socorro!", passando por Beatles, Led Zeppelin, Black Sabbath, seu amado Allman Brothers, as raízes do Blues em Johnson, BB, enfim, a lista é grande. Cada momento foi único, meu querido. Apesar de acompanhar sua carreira já há muito tempo, troquei as primeiras palavras com você somente ano passado. O papo, claro, foi sobre os rapazes de Liverpool, nosso ponto em comum além do tricolor de aço. Após um tempo, e um papo sensacional que tive com Eric, sua continuidade musical genética, como você definia de forma perfeita, criei coragem para lhe propor um desafio que me deixava com frio na barriga. "Álvaro, o que você acha de comemorarmos seu aniversário de 60 anos com um livro biográfico contando essa história?" Por telefone, você me disse "Campeão, acho excelente e fico honrado por isso." A honra, obviamente, era minha. Mas sua humildade era tamanha. Você era assim, cara. Cada papo, por telefone ou pessoalmente na sala de sua casa, era encerrado com um "Muito obrigado, campeão", quando era eu quem tinha que agradecer por aquela oportunidade. Sentirei falta de abrir o whatsapp e ler um "Bom tarde, campeão. Yeaahh!" E eu respondia só com um "Bom dia, grande Álvaro" Sim, sua grandiosidade era tamanha que eu, de começo, me senti intimidado para propor a ideia de escrever sua bio. Bastaram algumas horas de conversa em 2016 para esse receio cair por terra. Como todo gênio deve ser, você tinha em seu carisma, humildade, gentileza e bom humor razão para deixar qualquer um confortável diante de sua estatura. Na última vez que nos vimos pessoalmente, pude presenciar suas lágrimas diante dos créditos finais do filme que abordava a trajetória de uma de suas bandas favoritas, o Sabbath velho de guerra. Ao acabar o documentário, mesmo na sala de cinema, você, emocionado e sorrindo, levantou e bateu palmas para a tela. Captei esse sorriso em foto. Um gigante aplaudindo outros gigantes, pensei comigo mesmo, feliz por estar ali e ansiando por ouvir mais e mais histórias. Não houve tempo, meu querido. Não houve tempo. Sentirei sua falta, meu amigo. Sentirei muito sua falta.