quinta-feira, outubro 13, 2016

DESPACHOS DO FRONT VIA FAX

Premiada HQ de Joe Kubert, Fax de Sarajevo é o relato real da via-crúcis da família Rustemagić durante o cerco sérvio à ex-capital iugoslava nos anos 1990

O ódio pode ser silenciosamente cultivado por gerações. Até que, por uma razão qualquer, a ordem, que mantinha a aura de civilização, cai. Vizinhos até então amistosos se tornam inimigos mortais.

A Guerra da Bósnia (1992-1995) é exemplar disso – e um de seus relatos mais famosos, a HQ Fax de Sarajevo, de Joe Kubert (1926-2012), acaba de sair no país.

Conflito mais sangrento a conspurcar o solo europeu desde a 2ª Guerra Mundial, a Guerra da Bósnia foi uma das consequências da morte do ditador socialista iugoslavo Josip Tito em 1980.

No pós-2ª Guerra, Tito foi o unificador da Iugoslávia, uma federação de nações balcânicas, como Bósnia e Herzegovina, Sérvia, Eslovênia, Croácia, Macedônia e Montenegro. Com sua morte, afloraram sentimentos nacionalistas e muitas diferenças – políticas, étnicas e religiosas.

O caldeirão de tensões chegou ao auge no cerco sérvio à ex-capital iugoslava, Sarajevo, hoje capital da Bósnia. Foram três anos de bombardeios, massacres e tiroteios contra a população civil, que se viu sem acesso a alimentos, energia elétrica, remédios – civilização, enfim.

Neste cenário, Ervin Rustemagić e sua família (esposa e duas crianças) estavam entre os civis desarmados que se viram em meio ao fogo cruzado.

Ele é proprietário da SAF (Strip Art Features), editora de quadrinhos que representa na Europa grandes nomes das HQs, como o italiano Hugo Pratt (Corto Maltese), o belga Hermann (Caatinga) e o norte-americano Joe Kubert (Sgt. Rock).

E foi para esses amigos que Ervin começou a disparar faxes (o email ainda engatinhava), relatando o que estava acontecendo.

O tom de desespero tocou Kubert – que é judeu nascido na Polônia, portanto, conhece bem a opressão e o genocídio –, e ele começou a desenhar o que lia nos faxes de Ervin.

Lançada em 1997, Fax de Sarajevo reavivou a fama de Kubert, um grande nome nos anos 1950 até 70, mas que andava meio esquecido nos anos 1990, se dedicando mais à sua escola, a conceituada Joe Kubert School of Cartoon and Graphic Art.

Sua narrativa dinâmica e  desenhos expressivos lhe valeram as maiores premiações das HQs: Melhor Álbum Estrangeiro em Angoulême, mais os troféus Eisner e Harvey, entre outros.

O que fica evidente em Fax de Sarajevo são duas coisas: o extremo talento de Joe Kubert e o potencial humano, tanto para a crueldade, quanto para a resistência.

No ritmo alucinante que denuncia seu domínio da narrativa sequencial, Kubert conta a história da fuga da família Rustemagić de Sarajevo de forma cronológica, começando pela volta de Ervin à cidade após  viagem à Amsterdam.

Kubert reproduz em suas páginas os faxes de Ervin, e é interessante comparar o tom calmo do primeiro envio com os que ele passou a enviar depois do caos instalado.

Ao chegar em Sarajevo, o editor encontra mulher e filhos à salvo, porém inquietos. “Fora da cidade ainda há bombardeios. Os sérvios estão atacando vilas e chácaras. Mas aqui ainda não está ruim”, conta Edina. Eles não tinham a menor ideia do que estava por vir.


O mundo não acreditou na Guerra da Bósnia. E segue errando

Obras como  Fax de Sarajevo são um lembrete importante de que, em se tratando de natureza humana, a barbárie está sempre logo ali.

Em tempos onde a simplista divisão “nós contra eles” parece ter voltado a ser um argumento político aceito e reproduzido em larga escala mundo afora e no Brasil, é sempre bom lembrar que as consequências das polarizações – sejam elas naturais ou fabricadas – costumam ser sinistras e sangrentas.

Em Fax de Sarajevo, Ervin Rustemagić relata ao amigo Joe Kubert as intenções de limpeza étnica que líderes sérvios como o General Ratko Mladić impunham aos bósnios, praticando tanto o assassinato em massa dos homens, quanto o estupro sistemático das mulheres bósnias pelos mercenários sérvios, a fim de que estas gerassem crianças sérvias.

Não custa também recordar que, em plenos anos 1990, há meros vinte anos, o mundo se escandalizou com a imagem dos campos de concentração sérvios, um inacreditável – porém real – eco dos campos nazistas na 2ª Guerra.

E que, neste momento, aviões russos bombardeiam populações civis na Síria.

Fax de Sarajevo / Joe Kubert / Via Leitura - Levoir/ Trad.: Filipe Fari / 208 p./ R$ 79,90

Um comentário:

Adelvan disse...

"Cuidado com o que você deseja", já disse alguém. Como fã de quadrinhos, sempre sonhei ver a Vertigo sendo publicada decentemente e o mercado de quadrinhos em geral bombando de grandes obras por aqui. E é o que está acontecendo. Mas PORRA, É MUITA GRANA !!! E a crise tá brutal! Caralho, o que era pra ser comemorado, tá começando a virar motivo de depressão ...

Tito é um personagem histórico fascinante, quero ler mais sobre ele. Pelo que eu sei, era autoritário, ditador mesmo, como qq lider comunista da época da guerra fria, mas era também independente, uma pedra no sapato dos soviéticos, pois nunca se alinhava incondicionalmente à chamada "Cortina de ferro". Tipo Getulio, uma esfinge a ser decifrada. Ou não ...