Debate: No Dia do Rock de 2016, os livros parecem ganhar mais importância do que a música, enquanto os ídolos vão morrendo
Da série “coisas que não fazem sentido”: hoje comemora-se no Brasil – e somente aqui, diga-se de passagem – o Dia Mundial do Rock, instituído por duas rádios paulistas em homenagem ao festival Live Aid, realizado nesta data, em 1985.
Consta que Phil Collins disse no show que gostaria que aquele dia fosse consagrado ao rock.
Maldito Phil Collins.
Antes o careca surdo tivesse ficado calado. Talvez o rock não estivesse relegado à irrelevância que hoje amarga, especialmente no Brasil.
Notícia velha: em seu relatório anual de 100 músicas mais tocadas nas rádios brasileiras, a empresa Crowley Broadcast Analysis, que monitora as transmissões, não listou uma faixa sequer do rock nacional em 2015.
E do rock internacional, apenas duas, das bandas Maroon 5 e Magic, que são pop de festa.
E não só no Brasil: no último dia 6, a revista musical norte-americana Spin noticiou em seu site que, segundo a empresa de monitoria Nielsen Music, o primeiro semestre de 2016 foi o pior em vendas de álbuns (CDs, LPs e downloads pagos) desde 1991.
Outro fator é o inevitável desaparecimento da geração de músicos sobreviventes de excessos que deu estatura artística ao rock, hoje na casa entre os 70 e 80 anos.
Recentemente, foram-se David Bowie, Lemmy Kilmister (Motörhead) e Prince, entre outros.
Conclusão: não há o que comemorar no “Dia do Rock”.
Ou há? Na verdade, o que há são muitas dúvidas e controvérsias.
Por que, ao mesmo tempo em que este cenário desolador está estabelecido, há uma curiosa (e bem-vinda) invasão de livros – biografias, na sua maioria – e camisas de bandas clássicas, vendidas às baciadas nas lojas de departamentos.
Livros versus discos
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Marcelo Viegas, da Edições Ideal. Foto do Linkedin |
A impressão que fica é que a estética e a mitologia do rock permanecem, enquanto a música parece ter cada vez menos relevância.
Enquanto a venda física de música cai – substituída pelo ainda duvidoso sistema de streaming – a oferta de livros, relatando a vida e a carreira de grandes roqueiros e bandas, parece subir.
É como se a história – e histórias – do rock fossem hoje mais importantes do que o rock em si.
Marcelo Viegas, editor da Edições Ideal, primeira editora especializada em rock do Brasil, concorda em parte: “Em alguns poucos casos isso acontece, sim. Por exemplo, no caso do Steven Adler, ex-baterista do Guns ‘n’ Roses. Lançamos no Brasil a autobiografia dele, Meu apetite por destruição: sexo, drogas e Guns N’ Roses. A música produzida pelo Steven pós-GnR é insignificante, comparada ao seu legado com a banda”, observa.
“Todavia, também lançamos livros de artistas que continuam produzindo em alto nível e arrastando multidões, como Dave Grohl, Slayer, Travis Barker (Blink 182) e Pitty. Nesses casos, não acho que dá pra dizer que as histórias são maiores que a música. Pelo contrário, a música continua ocupando papel central. Se os fãs buscam livros para saber mais sobre seus ídolos é porque a música segue inspirando, cativando e emocionando”, diz.
"Acho que sou mais otimista (risos). Acredito na capacidade de renovação do rock – mesmo que seja muitas vezes a partir da apropriação de elementos sonoros e estéticos de outros períodos – combinada com essa tendência que você citou de cultuar o passado, seja ele glorioso ou não. Valorizar e preservar as raízes para seguir construindo essa história de música alta e inspiradora", acrescenta Viegas.
"Usando como exemplo o trabalho aqui da editora, nós buscamos exatamente essa mistura de épocas e estilos: tentamos ir do clássico (Jerry Lee Lewis, Hendrix) ao alternativo (Fugazi, Bikini Kill e todas as bandas retratadas no livro “Dance of Days: duas décadas de punk na capital dos EUA”), do punk (Ramones, DK) ao metal (Slayer, Pantera), do indie (The Cure, Joy Division) ao rock nacional (Pitty, Supla), do pop punk (Travis Barker) ao grunge (Alice in Chains), e acho que isso revela também a riqueza, a diversidade e a atualidade do rock. Posso dar mais um exemplo: estou editando neste momento um livro de entrevistas com bandas de metal alternativo que estão criando, experimentando e construindo suas respectivas trajetórias agora. Nomes como Labirinto (Brasil), Marriages (EUA), Metz (Canadá), Mars Red Sky (França) e Boris (Japão), para citar apenas alguns dos entrevistados no livro. E só podemos lançar um livro como este (estou falando do volume 2 do “Nós somos a tempestade”, do jornalista Luiz Mazetto) porque existem pessoas produzindo essa música nova e outras tantas consumindo, indo aos shows, baixando os discos (ou ouvindo no Spotify), comprando as camisetas etc. E também buscando informações sobre esses artistas, seja em blogs, sites, zines, revistas ou... livros", relata o livreiro.
Sobre os livros, há também uma questão óbvia: “As pessoas compram livros e camisetas porque música é de graça (e isso é um conceito definitivo). No caso dos livros que falam de rock, havia uma demanda reprimida enorme, pois esse tipo de literatura não chegava no Brasil, com raríssimas exceções”, lembra o químico e roqueiro Nei Bahia, do podcast local Rocks Off e ex-parceiro de Fábio Cascadura em algumas composições.
“Acho também que o rock passou a entender a importância de ter memória, registro. Pois, se não for assim, o futuro será de Safadão, Los Hermanos e bateristas tocando em aplicativos de celular, acrescenta Nei.
Baterista da veterana banda punk local Pastel de Miolos e à frente do selo underground Brechó Discos, Wilson Santana também percebeu a predominância da procura por camisetas sobre os discos: “Camisas e adesivos vendem mais que os discos. Produzo merchans de bandas e percebo isso”.
Outro fator é o evidente desinteresse dos jovens no Brasil pelo rock. A juventude “esclarecida”, que não segue a tríade sertanejo-arrocha-pagode, virou as costas para o gênero, identificando-se mais com o hip hop e a MPB hipster de artistas como Tulipa, Marcelo Jeneci e Céu, entre outros.
“A última banda brasileira a causar burburinho foi Chico Science & Nação Zumbi – que, aliás, deu direcionamento para essa galera que hoje renega o rock. Depois dele ouvimos algo de novo?”, diz Wilson.
Líder da antológica banda local Maria Bacana, André LR Mendes também vai nessa linha de raciocínio: “Todos nós matamos a industria fonográfica, que era o grande vilão, mas também o grande mecenas. Que banda hoje chegará aos 30, 40 anos de carreira? Que grande banda pareceu depois disso? Cada download que fizemos ajudou nesse cenário. Foi o talento que acabou? com certeza não”, diz.
Roqueiros reaça
Um fenômeno recente e curiosíssimo que vem emergindo das profundezas nos últimos anos é também o "roqueiro de direita", ou "roqueiro reaça". Na verdade, isso não é tão novo assim: Ted Nugent é militante do NRA e até Neil Young já apoiou Ronald Reagan.
Aqui no Brasil, a campanha anti-PT encampada pela grande mídia foi apoiada por nomes bem conhecidos (Lobão, Roger) e ilustres desconhecidos a buscar holofotes e surfar na onda da polêmica.
Sem fazer patrulha ideológica - cada um é que sabe de sua consciência - mas não chega a ser um contrasenso ser "do rock" e da direita conservadora ao mesmo tempo? Afinal, o rock não surgiu como um grito de liberdade - dos quadris, das mentes, dos espíritos? Será esta guinada à direita mais um sinal da decadência da cultura roqueira?
(Só para deixar claro, não sugiro aqui que o rock tenha a obrigação de assumir posição ideológica alguma, afinal, sabemos que tanto a direita quanto a esquerda, em seus espectros mais extremos, rejeitam a liberdade inerente à manifestação artística).
"Tenho que admitir que também acho estranho essa coisa do “roqueiro conservador”. Mas sei que não é um fenômeno recente, temos casos notórios no passado. Você citou Neil Young e Ted Nugent, e posso acrescentar também o Johnny Ramone nesse rol. Ainda mais estranho por ser no universo do punk rock. É bizarro, mas acontece... Entretanto, não sei se enxergo isso como um sinal da decadência da cultura roqueira, como você sugeriu. Creio que essa onda neoconservadora é um fenômeno muito mais amplo e que acaba respingando no universo do rock. Esse espectro neoconservador está em todos os lugares, saindo da escuridão e mostrando as garras, antes sorrateiramente, agora de modo mais descarado. Mas enxergo o rock mais como foco de resistência do que propriamente como um exemplo vigoroso desse processo. Noutras palavras, acho que esse avanço neoconservador está mais evidente em outros setores da sociedade do que entre as pessoas ligadas ao rock. É claro que existem certas tendências históricas (o metal tem uma conexão maior com a direita, o punk/hardcore tem mais conexão com a esquerda e uma tradição até mesmo anarquista), mas no geral acho que os roqueiros são menos conservadores do que a maioria da população", reflete Marcelo Viegas.
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Quem? Roger? Diga que não estou. Ft Rafael Flores |
"Roqueiro reaça é bom, no sentido de mostrar a cara e saber exatamente quem é quem, isso é ótimo. Você ouve hoje Ultraje a Rigor e entende o por que de Inútil. Agora entendo sua música, não era protesto: era você (Roger) de verdade. Ele era o rebelde sem causa mesmo, por que seus pais o tratavam muito bem, deram carro, deram tudo e hoje ele acha que todo mundo tem que aprender a pescar. Acho ótimo que mostrem a cara e tomem partido. Pô, salvo exceções, o metal em geral é reaça pra caralho, de Bolsonaro pra baixo, todo mundo sabe disso", dispara Big Brother.
"Você vê uma banda como Garotos Podres, que se dividiu ao meio por que metade se assumiu de direita e agora briga com a esquerda. Tenho amigos de bandas punk que viraram de direita total, e eu 'como assim, cara'? Os caras que tavam na rua no 26 de maio de 2000, protestando contra ACM e levando bomba de gás da polícia na Ufba e agora é de direita, virou carlista. Um dia ele apanha da policia e no outro é carlista. Não entendo o que acontece, é o caos. E quem se mantém de esquerda na postura voltou ser visto como 'comedor de criancinha', que vive nas tetas do governo. Um cara veio me acusar disso, que por isso eu defendia o PT. Eu, que não voto há vinte anos. Mas agora vou voltar a votar", avisa Irmão Carlos.
Sem tempo para ícones
Produtores na linha de frente do rock local, Rogério Big Bross Brito e Irmão Carlos seguem acreditando, apesar de tudo.
"Eu vejo que essa geração, que hoje está entre os 30 e os 60 viveu entre a fita cassete que a gente rebobinava com caneta e o MP3 muito rápido, o que foi meio assustador. A gente tinha poster dos ídolos no quarto e hoje não dá mais tempo. Num clique você ouve um disco inteiro sem nem sentir o cheiro da capa. O velho mainstream parecia ser mais real, de verdade, hoje tudo parece ainda mais descartável. É uma mudança de comportamento do mundo do mesmo. A gente faz (música) por amor, mas a juventude, os novos consumidores que ainda saem para ver show não estão interessados nisso", observa Irmão Carlos.
“Essa coisa do ícone do rock já foi, é da época em que entrar numa gravadora era quem nem passar num concurso público. Hoje você grava com muita facilidade e tem muita banda acontecendo, não dá mais tempo de reconhecer alguém como ícone, toda hora aparece algum artista mais ‘retado’ que o outro”, vê Carlos.
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Irmão Carlos rebobinava fita cassete com caneta. Ft Denisse Salazar |
“Veja Liniker: um sucesso instantâneo. O disco dele só tem três músicas e o ingresso do show no Pelô foi 60 paus. Aí você vê bandas com vinte anos que não atraem mais ninguém. Como funciona isso? É caos, transição”, percebe.
Para Wilson, o rock perdeu a rebeldia de vez, virou produto e bem barato. Qualquer pessoa usa camisa dos Ramones por quem tem um desenho fodão. Perdeu a essência, a aura. Não é que tem que ser marginalizado. Mas é que hoje você grava um disco em uma hora, vira sucesso no dia seguinte e depois de amanhã já era. Essa necessidade de descobrir, de encontrar não existe mais. É culpa da internet? Também, mas não só, as pessoas não sabem fazer uma triagem por si mesmas, absorver o que é interessante, até por que o que é certo pra você pode não ser pra mim".
O excesso de informação não ajuda nem um pouco, percebe Big: “O cara passa tanto tempo baixando tanta coisa que não tem tempo de virar fã. Por isso o fã mesmo ainda é o cara que ouve Bowie, Ramones, Motörhead, o cara que veste a camisa”, afirma.
Para Wilson, a própria estética da guitarra distorcida - essencial para o rock - foi banalizada também: "A gente é de uma época que quem usava distorção na guitarra era, de uma forma geral, o rock. Michael Jackson talvez tenha sido o primeiro no pop a utilizar, com Beat It".
"Hoje, a MPB, axé e pagode usam, banalizou. A própria juventude - e os mais velhos também vão muito de acordo com o que mídia divulga como sendo da hora. Quando Bowie morreu, Nélson Mottta vai no Jornal da Globo, faz uma matéria bonita e bem diluída pra mídia, pras pessoas entenderem. Mas (ouvir) a discografia mesmo de Bowie é só pra quem gosta mesmo. Só vai curtir quem conhece. Aí quando ele morre, todo mundo, gato e cachorro publica foto do cara só para estar no meio daquele movimento de milhões. Por que o pessoal não fala do Iggy Pop? Por que só vão falar quando morrer", afirma Wilson.
“Fora que você não vê mais qual é a banda de rock popular no Brasil. Ainda é Barão, Titãs, Legião. Se banda de rock hoje é o Malta, puta que pariu, me deixe com os véios de 70 anos mesmo”, dispara Big Bross.
E aí voltamos ao início: o que comemoramos no Dia do Rock? “O passado, o presente e o futuro. Você pode celebrar o Dia do Rock ouvindo um disco dos Stooges e na sequência o novo álbum do DIIV. Não concordo com o discurso caduco de ‘na minha época era melhor’. Temos que viver o presente e valorizar bandas novas. Tem muita gente fazendo muita música boa por aí. Basta manter os ouvidos e a mente aberta”, conclui Viegas.
Tim-tim.