Caetano & Gil, foto Marcos Hermes |
Resta aos soteropolitanos conferir os recém-lançados DVD e CD duplo com a íntegra do espetáculo que rodou o planeta e foi gravado em São Paulo, com transmissão pelo canal Multishow na noite de Natal.
Muito a vontade no palco, o duo desfia repertório que une sucessos marcantes das carreiras de ambos e releituras para Tonada de Luna Llena (do venezuelano Simón Díaz), Come Prima (sucesso italiano na voz de Tony Dallara), É Luxo Só (Ary Barroso) e Nossa Gente (mais conhecida como Avisa Lá, o hit do Olodum de autoria de Roque Carvalho).
Há ainda uma bela canção inédita, composta poucos dias antes da gravação do show: As Camélias do Quilombo do Leblon, bem atual.
Nesta entrevista por email, Caetano reflete um pouco sobre o processo do espetáculo, da seleção de repertório à mecânica entre sua voz e a de Gil.
Ele ainda escreve longamente sobre a polêmica do show em Tel-Aviv (Israel), objeto de protesto por escrito de personalidades mundiais como o ex-Pink Floyd Roger Waters e o Bispo Desmond Tutu.
Otimista, Caetano espera cantar com Gil em Salvador ainda no mês de janeiro. Quem sabe o Senhor do Bonfim não dá uma ajuda?
ENTREVISTA: CAETANO VELOSO
Ao celebrar 50 anos de carreira, vocês optam por fazer um show intimista, de voz e violão. A intenção era fazer algo mais próximo ao público, um encontro informal para lembrar as canções que pavimentaram essa trajetória?
Foto Felipe Costa |
O repertório repassa parte bastante significativa dos repertórios de vocês dois, com um cantando canções do outro em um intercâmbio bem interessante. Como vocês selecionaram o repertório? Qual foi o critério – ou critérios?
CV: Fizemos tudo muito rápido, sem pensar muito. Muitas músicas são óbvios marcos na lembrança das plateias. Eu sugeri que as de Gil, sempre naturalmente mais animadas, se concentrassem na segunda parte, preparando o final. Escolhi as minhas, sugeri algumas a ele. Nada foi muito formalizado. Sabíamos, no entanto, como seria prazeroso para cada um de nós que às vezes um começasse a cantar uma canção do outro, para depois unir as vozes. Ficou curiosamente bonito o roteiro. A gente só ficou certo disso depois das primeiras apresentações na Europa.
Boa parte do repertório é cantado por apenas um de vocês, mas quando cantam em duo, você parece ser a voz aguda e Gil, a voz grave. É uma mecânica já instintiva, depois de tantas parcerias? Pode falar um pouco sobre como trabalham suas vozes juntos?
CV: Sei não. Gil faz uns falsetes rápidos e penetrantes que eu não alcanço. Aquela oitava agudíssima de Nossa Gente quem faz é ele. Além dos riffs vocais para serem repetidos pelo público em Toda Menina Baiana. Mas é fato que os gravíssimos que ele dá em Não Tenho Medo da Morte eu também não alcanço. Gil sempre teve muito mais extensão vocal do que eu. Hoje em dia, as notas mais altas são mais fáceis de cantar para mim. Mas acho que a impressão fica por causa da Tonada de Lua Llena, que canto quase toda em falsete. Isso, contrastando com os graves dele em Não Tenho Medo da Morte, faz parecer que eu fico com os agudos e ele, com os graves.
Como foi a parte europeia da turnê? Sabemos que vocês são suficientemente reconhecidos no cenário internacional para não depender só do público brasileiro exilado, mas como vocês sentiram o público em geral? Mais de brasileiros ou de locais?
CV: No todo, mais brasileiros, acho. Mas em Paris, em Montecarlo, em Vienne e em quase todas as cidades da Itália os brasileiros eram minoria.
Na inédita As Camélias do Quilombo do Leblon, vocês cantam: “Será sem fim o sofrer do povo do Brasil”? É um questionamento antigo – mas sempre atual –, em uma bela canção nova. 50 anos depois do início, vocês diriam que ainda estariam cantando contra a desigualdade?
CV: Sim, cantamos contra a desigualdade que fende o povo brasileiro.
Foto Felipe Costa |
CV: O cenário de Hélio faz o show ficar mais elegante e mais eloquente. Sente-se a sugestão da unidade do país e também de sua diversidade, vistas de uma perspectiva atual. Hélio é um grande artista e um grande pensador da arte.
Sobre aquela polêmica do show em Tel Aviv – e o seu subsequente artigo para a Folha de S. Paulo (Visitar Israel para não mais voltar a Israel, publicado em 8 de novembro) –, que lição fica do episódio? Foi uma questão de ir lá conferir o clima de opressão in loco? Pode dizer por que?
CV: Sempre quis voltar a Israel. Os apelos de Roger Waters e Desmond Tutu levaram ao encontro que tivemos, no Rio, com dois jovens representantes do BDS (Boicote, Desinvestimento e Sanções, campanha global contra as ocupações na Palestina pelo estado de Israel). Quisemos ouvir o que os membros do movimento queriam nos dizer, mas a decisão interna era de ir. Respondi a Waters que ir poderia significar estar mais perto dos israelenses que não aprovam a ocupação. Mas não planejamos nada. Davi Windholz, um israelense-brasileiro que luta pela paz entre Israel e a Palestina, me escreveu convidando para um encontro. Em Madri, estive com Jorge Drexler, que me deu os contatos do Breaking the Silence, um grupo de ex-soldados do exército israelense que protesta contra a ocupação. Eles marcaram uma ida à Cisjordânia e contaram como nasceu sua revolta. Gil quis logo ir comigo. De volta, quis contar os movimentos da minha cabeça e do meu coração durante a visita a essa parte do Oriente Médio. A Conib (Confederação Israelita do Brasil) me chamou de antissemita e um médico palestino saudou minha suposta adesão ao BDS. Mas muitos judeus brasileiros e não-brasileiros gostaram do meu texto. Houve quem o considerasse infantil. Mas ninguém notou que, no que conto sobre o momento de entrar no palco em Tel Aviv, pensei em dedicar o show a Franklin Dario, o músico judeu pernambucano que nos anos 1960 deixou de lado uma possível carreira no Brasil dizendo que ia para Israel lutar pelo seu povo.
Para quando podemos esperar esse show em Salvador? Já há uma data e um local definidos? Sabemos que tem havido muitas dificuldades nesse agendamento. Em que medida isso incomoda vocês?
CV: É impensável a existência desse show sem Salvador. Não sei direito, mas acho que toda a dificuldade nasceu dos atrasos na obra de reforma da Concha Acústica. Espero que, em janeiro, a gente esteja cantando na Bahia.
Vi que, durante um show no Rio, a plateia encaixou o nome de Eduardo Cunha no refrão de Odeio. Apesar de todo o abismo político que parece dividir o Brasil, além de toda essa horrenda onda neoconservadora, parece que “o povão” nunca se ocupou tanto da política. Será que ao menos sairemos de toda essa bagunça um pouco mais conscientes? Como vocês veem essa coisa toda?
CV: Espero que essas dores do crescimento sejam mesmo sinais de futura grandeza.
Caetano e Gil - Dois Amigos, Um Século de Música / Sony Music/ Kit CD duplo + DVD: R$ 55,90