Os fãs brasileiros de quadrinhos já sabem: Reinhard Kleist é aquela fera alemã que fez Cash, Castro e Elvis (todos pela editora gaúcha 8Inverso), biografias em HQ que se leem como romances, de tão fluidas e sensíveis que são.
Agora, o homem volta com o que talvez seja seu melhor trabalho: O Boxeador: A História Real de Hertzko Haft.
Aqui, ele traz a tona mais um aspecto cruel da 2ª Guerra Mundial: as lutas clandestinas de boxe nos campos de concentração, na quais o vencedor continuava vivo e o perdedor era sumariamente executado.
Adaptado a partir do livro do filho de Hertzko, Alan Scott Haft, intitulado na Alemanha como "Um Dia Eu Vou Te Contar Tudo" (ainda inédito no Brasil), O Boxeador é, literalmente, um soco no estômago.
Em alguns momentos chega mesmo a lembrar, a obra-prima Maus (Cia das Letras), de Art Spiegelman, graças à própria temática de campo de concentração, à narrativa enxuta e à expressiva arte em preto & branco.
Entrevista exclusiva
Premiada com o Grand Prix 2013 do Festival de Quadrinhos de Lyon (França), a obra consolida a carreira e a fama de Kleist, que, aos 43 anos, desponta como um dos principais quadrinistas europeus contemporâneos. Nesta entrevista exclusiva para o Caderno 2+, o artista, nascido em Hürth, fala d’O Boxeador, suas escolhas de personagens, armadilhas narrativas, fatos versus ficção, carreira, influências artísticas, quadrinhos alemães e sua recente passagem pelo Rio de Janeiro.
Além de uma vida incrível, o que atraiu sua atenção para a história de Hertzko Haft? Confesso que nunca avia ouvido falar nessas lutas de boxe em campos de concentração....
Reinhard Kleist: Nem eu. Quando vi o livro de Alan Haft sobre seu pai em uma livraria de Berlim, me surpreendi com a capa e quis saer mais. Daí me vi nessa incrível história, que ficou na minha cabeça por um bom tempo, ainda que eu me recusasse a conta-la em graphic novel. Seria muito difícil. O personagem principal não é um cara legal, a história é dividida em duas partes e eu achei que a segunda não era muito forte. Depois de um tempo, percebi que esses pontos eram justamente os mais desafiadores. Como posso contar essa história de forma que simpatizemos com Hertzko, apesar dele matar pessoas? E será que a segunda parte não seria ainda mais emocionante, por que ficaríamos curiosos em saber se ele seria feliz no final? E é surpreendente o quanto desejamos que ele seja feliz, apesar de ser um personagem tão malvado.
Hertzko pós-guerra, boxeur profissional, lutou contra Rocky Marciano |
RK: Eu sempre tento deixar claro ao leitor por que o personagem faz o que faz. Quando ele atira no casal de idosos, eu escrevi ao Alan para perguntar o que ele achava que seu pai estava pensando naquele momento. A resposta foi: nada. Para Hertzko, eles eram apenas alemães. Você deve entender isso à luz do que ele estava passando naquele momento.
O Boxeador tem enorme potencial para render uma senhora adaptação cinematográfica? Será que ainda veremos essa história nas telas?
RK: Alan me contou que uma produtora americana quer fazer um grande filme d'O Boxeador. Mas não sei maiores detalhes.
Elvis, Cash, Castro, Haft. Que outro personagem da vida real você pretende abordar em seguida? Pode nos revelar ao menos um? E por que?
Berlinoir, um dos poucos projetos ficcionais de Kleist |
Suas biografias em quadrinhos já abordaram um polonês, um cubano e dois norte-americanos. Se você fosse escolher um personagem alemão, quem seria? Por que?
RK: É bem óbvio que não estou escolhendo personagens alemães. Temos uma grande história. O lance é que não costuma ser um processo intencional, as histórias chegam a mim meio que por acaso. Eu as encontro enquanto pesquiso outras histórias ou, no caso de Fidel Castro, surgiu a partir de um projeto da minha editora, a Carlsen, que queria um livro de viagem e eu escolhi ir a Cuba. Aproveitei a oportunidade para pesquisar sobre Castro.
Você esteve no Rio de Janeiro há pouco tempo (para a Bienal do Livro). Curtiu a experiência? Teve alguma inspiração para algum trabalho futuro?
RK: Gostei muito e a plateia brasileira é simplesmente incrível. Mas no momento estou com tantos projetos que não consigo focar em mais nada.
Sua opção em contar histórias de pessoas reais é por considerar a realidade muito mais interessante e surpreendente do que a ficção? Você ainda faz ficção?
Aqui no Brasil, fora seus trabalhos, conhecemos muito pouco dos quadrinhos alemães contemporâneos. Que autores você nos recomendaria buscar?
RK: A cena de HQ na Alemanha se desenvolveu bastante nos últimos anos. De fato, os quadrinhos alemães tem se tornado cada vez mais populares mundo afora. Aqui estão alguns artistas cujo trabalho eu realmente aprecio e que deveriam ser descobertos no Brasil. Isabel Kreitz, ótimo estilo em preto & branco (e tudo no lápis!). Barbara Yelin, de estilo muito expressivo, conta histórias muito sensíveis. Thomas von Kummant, grande trabalho de arte, com histórias de orientação mais para a ficção científica / fantasia. Uli Oesterle, faz histórias sombrias em um estilo bem na linha do Mike Mignola (Hellboy).
Muitos artistas europeus (e brasileiros também) trabalham para as grandes empresas corporativas norte-americanas, como a Marvel e a DC ou até mesmo em companhias médias, como Image, Dark Horse e Avatar Press. Alguma dessas já te convidou para desenhar algo para elas? Você o faria, se fosse convidado? Por que?
RK: Não, mas há alguns anos, estive em Nova York para conversar com a DC, mas eles se recusaram a trabalhar comigo. Agora eu também não o faria mais. Estou muito "mimado" sendo meu próprio autor e também por que não consigo trabalhar dentro daqueles prazos apertados lá deles. Eu me sentiria muito limitado. Me sinto mais como um artista e autor do que como provedor de arte para essas empresas. Mas, bem, eu definitivamente adoraria desenhar o Batman ao menos uma vez...
Quais foram os artistas que o influenciaram e o inspiraram?
RK: No início da minha carreira, eram os artistas mais visuais, como Dave McKean (capista de Sandman), Kent Williams (Blood: Uma História de Sangue) ou Bill Sienkiewicz (Elektra: Assassina). Mas as histórias sofriam muito com minhas tentativas de ser tão bom quanto eles. Agora eu me foco mais na narrativa e coloco a arte completamente a serviço da história. Não quero impressionar ninguém com uma imagem, eu quero criar algo como um filme na cabeça dos leitores. Então, hoje minha hoje vem mais de Will Eisner (Spirit), Baru (Hervé Barulea, quadrinista francês) ou Hugo Pratt (Corto Maltese).
O Boxeador: A História Real de Hertzko Haft / Reinhard Kleist / 8Inverso/ 200 p./ R$ 51/ www.8inverso.com.br