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Um desavisado que passa pela porta do Groove Bar e pare para observar os cartazes de shows na entrada pode achar que morreu e foi pro paraíso do rock. Entre os anunciados, estão apresentações dos Beatles, Nirvana, Led Zeppelin e Deep Purple, entre outras bandas clássicas.
O sonho molhado dos roqueiros vai ainda mais longe, já que, em certas noites, é possível assistir aos shows combinados de divas como Amy Winehouse e Madonna, ou de bandas populares como Guns ‘n‘ Roses e Bon Jovi, pagando só um ingresso.
Claro que tudo isso não passa de um bem executado artifício da casa para atrair o arredio público roqueiro local. Chegando mais perto, é possível ler a palavra “Cover“, grafada logo abaixo do nome das bandas.
Ponta mais visível de um iceberg que engloba outros bares da cidade como o Bebedouro e o 30 Segundos, entre outros menos cotados, o fenômeno das bandas cover teve seu grande momento nacional na década de 90, mas, na verdade, nunca arrefeceu de fato.
Há poucos meses, um disputado concurso no Domingão do Faustão consagrou o grupo paulista Destroyer Kiss Cover como a melhor banda do tipo do Brasil, concorrendo com centenas de outros candidatos.
Não à toa, já estão escalados para tocar no Groove (dias 7 e 8 de maio), com direito a chuva de papel picado, vômito de sangue e os efeitos que fizeram a fama do original (menos os fogos, por questão de segurança).
É sexta-feira, 27 de março. À noite, a orla do Rio Vermelho pulsa com a agitação dos bares e um público ávido por diversão. Na Boomerangue, cerca de 150 pessoas assistem aos shows das bandas Camarones Orquestra Guitarrística (do Rio Grande do Norte) e as locais Vendo 147 e TenTrio, todas elas autorais.
A poucos metros dali, no bar Bebedouro, um número equivalente – ou até maior – de espectadores se esbalda ao som de antigos clássicos do rock executados pelos grupos Banda de Rock e sua derivação mais recente, a Banda de Rock Triste.
Até aí nada demais, se na Boomerangue não coubessem até 400 pessoas e o Bebedouro, bem menor, não estivesse com sua lotação quase esgotada.
O fato é que as bandas covers, um fenômeno nacional nos primeiros anos da década de 90, voltaram com tudo à cena local, com o Groove Bar, casa estritamente roqueira da Barra, liderando o movimento com uma vasta programação de bandas do tipo, tanto nativas, quanto vindas de fora do estado.
Sinal de crise criativa? Entressafra da virada de década? O rock (local) errou?
“O lance daqui de Salvador é que todo mundo fala de rock, mas maioria das bandas simplesmente não se profissionaliza“, opina João Carlos, o João da Maniac, programador da grade de shows do Groove Bar e produtor com larga expêriencia no underground local.
“A cena é liderada por três bandas (Cascadura, Ronei Jorge & Os Ladrões de Bicicleta e Retrofoguetes), que vão se revezando (nas casas de show). Mas só elas é que investem em profissionalismo e conseguem chamar o público, pois, além de serem muito boas, mantém uma equipe técnica fixa, acreditam em assessoria de imprensa e estudam“, arrisca.
Ao assumir a programação do Groove, João conta que começou a sentir dificuldades em atrair o público contando apenas com bandas autorais locais de menor porte que as três citadas. “Comecei (a programação) com as bandas autorais, muitas delas. Mas logo eu vi que não conseguiria preencher de forma eficiente minha programação se não as fossem as bandas cover“, observa.
Para João, a cena local pode, na verdade, se beneficiar disso, já que o fenômeno dos grupos de cover fomenta o mercado de trabalho dos músicos e aproxima o público das bandas.
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“Posso estar criando um monstro, mas qual foi o intuito? Chamar bandas como Anacê fazendo Alanis, Lo Han fazendo AC/DC e por aí vai. Como essas bandas não ganham dinheiro com o autoral, eu pago cachê fixo para eles e essa grana reverte para a banda. A Starla está gravando CD novo com a grana que eles ganharam tocando Strokes, Foo Fighters e Coldplay. Esse dinheiro está voltando para o cenário“, garante João.
“Agora, o cenário não pode se resumir a isso, pois é uma coisa frágil. Que isso sirva de alerta às bandas autorais: se profissionalizem. Senão, vocês não duram“, aconselha o produtor.
Do outro lado da questão está outro veterano produtor do rock local, Rogério Big Brother, sócio da Quina Cultural e um dos responsáveis pelo show na Boomerangue, citado no início do texto. “Tem dois contrapontos aí“, começa Big.
“Acho excelente que o pessoal daqui, que pretende viver de música, possa tirar uma grana por que a banda autoral não vai pra frente. Tem uma galera de Recife que se sustenta em São Paulo com cover de Roberto Carlos, como (o cantor) China“, concede. “Por outro lado, ao fechar uma programação totalmente nisso, você acaba de uma vez com as chances das bandas autorais, por que aí os espaços ficam cada vez mais limitados“, reflete. “Fico feliz por um lado e puto por outro, sacou?“, ri.
”A pergunta é a seguinte: há quanto tempo você não vai a um show autoral? Cadê a Pessoas Invisíveis, Starla, Matiz? Cadê esse povo? Quem vai pagar para ve-los?”, desafia Big.
Rogério Big Brother vê poucas brechas na cena independente da forma como se encontra hoje em dia.
“A galera hoje está tão sem esperanças que passa para as alternativas menos comerciais possíveis, tipo rock instrumental, rock húngaro. A TenTrio deixou todo mundo de cara, são três carinhas que eu nunca vi na minha vida. E olha, das 150 pessoas que estavam lá (no dia 27), eu mesmo eu só conhecia umas dez“, lembra, sinalizando que, apesar de tudo, o público do rock autoral vai se renovando aos poucos.
Mas voltando às bandas cover, é impossível se falar delas em Salvador sem citar o baixista Jerry Marlon. Remanescente da cena punk dos anos 80 com a banda 14º Andar, ele hoje milita em pelo menos cinco grupos do gênero: Elvis in Concert, Arapuka (Raul Seixas), Coveiros do Cover (pós-punk), Beatles Concert e Água Suja, que ele prefere definir como “banda de standards de blues“.
“Somos músicos profissionais, então, eu preciso disso para sobreviver e curtir, sabe? Pra mim é combustível, e a noite de Salvador tem necessidade de ter atrações, acho que é necessário. Só não se pode é colocar como se fosse a grande história da música“, observa.
“Com o trabalho autoral é muito difícil formar público. A verdade é que, neste momento, não estou vendo ninguém formando público com banda autoral. Eu confesso que desisti. Minha última banda, a Persona S.A., acabou por que o vocal (André Lissonger) desistiu. Agora tô aí com a banda do Elvis, com a qual eu espero poder trabalhar bastante“.
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O ex-Cascadura Cândido Sotto Júnior, guitarrista da Banda de Rock, especializada em repertório de clássicos dos anos 60 e 70, também vê com pragmatismo a questão: “Em São Paulo existem bandas inteiras com músicos que sobrevivem só disso. Tudo bem que tem aquele velho chavão de ‘gozar com o membro alheio‘, mas ao mesmo tempo, nas bandas covers, o estímulo para se aprimorar como músico é imenso. Você aprende com os mestres“, diz.
Para Nariga, como é conhecido, “uma coisa (a cena cover) não anula a outra (autoral). Até demorou para pegar isso em Salvador. Agora, se for pra fazer, que façam bem feito, né?“, exorta.
Já seu companheiro de palco, o cantor René Nobre, lança outra questão: ”Há um sentimento de que, como a indústria fonográfica acabou, ninguém vai te descobrir. Hoje é tudo um grande produtão, e tudo muito igual. As bandas que você vê na TV são muito parecidas. Isso vicia o público e deixa as pessoas meio sem paciência de conhecer as bandas autorais”, arrisca.
Aí entra uma questão crucial para o rock baiano. Qual é o público do rock local? Ele existe em número tão grande mesmo, ao ponto colocar em suspeita as bandas cover de roubá-lo das bandas autorais? Ou, como diz o velho ditado, ”na casa em que não há pão, todos brigam e ninguém tem razão”?
O vocalista da Banda de Rock Triste (pós-punk e indie rock), Sérgio Cebola Martinez, parece tocar justamente nesse ponto: ”Acho bobagem dizer que a onda de bandas cover é sinal de crise criativa e uma bobagem maior ainda dizer que elas roubam o suposto ‘grande público‘ das autorais. Que público, cara pálida? Se há muitas bandas cover, é sinal de que existe uma grande demanda. (Show de banda cover) É como uma festa de DJ, só que com uma banda ao vivo”, conclui.