Santíssima Trindade da HQ adulta brasileira tem sua arte resgatada do limbo em três bons lançamentos em bancas e livrarias
Dois nisseis, que, dizem, são descendentes diretos de samurais, e um legítimo brazuca formam, na visão do jornalista Gonçalo Júnior, o que seria uma espécie de Santíssima Trindade dos quadrinhos brasileiros. Após um bom tempo meio esquecidos, eles ressurgem agora em lançamentos de perfis e editoras diferentes.
Os três desenhistas resgatados são Flavio Colin (1930-2002), Cláudio Seto (1944-2008) e Júlio Shimamoto. O primeiro ganhou um livro assinado pelo próprio Gonçalo Júnior, intitulado Vida traçada: um perfil biográfico de Flávio Colin, onde ele conta um pouco sobre a vida (um tanto sofrida) e a carreira do artista.
Já o filho de japoneses Claudio Seto tem cinco de suas melhores HQs de samurais reunidas na coletânea Flores manchadas de sangue, um belo álbum em formatão da Devir.
Por fim, Júlio Shimamoto, outro brasileiro filho de imigrantes nipônicos, tem boa parte de suas próprias histórias de samurais relançadas em uma revista de 192 páginas, em formato de gibi, já nas bancas.
Reunidas, as obras destes três homens representam muito bem o que de melhor já se fez em termos de artes e narrativas gráficas no Brasil.
Apartados – Dono de um traço personalíssimo, único no mundo, Flavio Barbosa Mavgnier Colin nasceu em 1930, no Rio de Janeiro. Além de sua extraordinária capacidade artística e narrativa, pouco se sabia sobre sua vida e dos detalhes de sua extensa carreira, até que Gonçalo Júnior, imbuído da sua veia de repórter investigativo, resolveu saber um pouco mais sobre ele.
A triste história que Gonçalo desencavou dava um filme: aos oito anos, Flavio e seu irmão Renato foram sequestrados pelo próprio pai e isolados em um colégio interno no Paraná, proibidos de ter qualquer contato com a mãe. Esta ainda era ameaçada pelos padres (orientados pelo pai) que, a qualquer tentativa de aproximação, ela nunca mais veria as crianças.
Os dois meninos passaram quase dez anos longe da mãe. Flavio só a reencontraria aos 17 anos de idade.
O isolamento absurdo e a solidão, especialmente na época de férias – quando todas as crianças iam para casa, menos eles – fez com que Flavio se dedicasse exaustivamente ao estudo de sua paixão: o desenho.
O resultado foi um artista completo, dono de um estilo imediatamente reconhecível e muito autoral, além de dominar as técnicas narrativas como poucos. Ao longo de sua carreira, Flávio trabalhou nos mais diversos gêneros (terror, policial, erótico, regional) para muitas editoras, além de ter sido um batalhador incansável pelo reconhecimento e valorização dos quadrinhos brasileiros.
Entre suas obras mais destacadas estão Estórias Gerais (Conrad, publicada também na Espanha), Fawcett (Nona Arte), O curupira (Pixel) e Caraíba (Desiderata).
Em entrevista para o site Universo HQ, Gonçalo Júnior se refere a Flávio como “um dos maiores, mais completos, complexos, sofisticados e geniais autores de quadrinhos do Século 20 no mundo. Não dá para falar dele apenas em termos de Brasil. É muito pouco. Ele, Shimamoto e Claudio Seto formam a santíssima trindade do quadrinho nacional“.
Precursores do mangá – Em setembro de 1970, o Japão veio a conhecer uma obra que se tornou um marco não apenas para os japoneses, mas também para os leitores de HQ mundo afora: O Lobo Solitário, de Kazuo Koike e Goseki Kojima, até hoje um monumento do mangá e da arte sequencial em si.
O que poucos sabem, contudo, é que, dois anos antes, um brasileiro filho de japoneses já fazia um trabalho muito similar, tanto no estilo artístico, quanto na temática.
Seu nome era Claudio Seto e a revista, Histórias de Samurais, publicada há mais de 40 anos pela hoje extinta Editora Edrel, o qualifica como o Pai dos Mangás no Brasil.
É este material publicado pela Edrel que volta agora no álbum da Devir, lançado em parceria com a Jacarandá, de Toninho Mendes (ex-publisher da Chiclete com Banana).
Toninho esteve com Seto em Curitiba, onde este residia, pouco antes de sua morte por AVC em novembro último, e recebeu das mãos do próprio o material deste álbum.
Ousadíssimo para a época, Seto coalhava suas histórias com ação ininterrupta, cabeças cortadas, sangue espirrando, gueixas voluptuosas e até mesmo homossexualismo – suprema ousadia em pleno período da ditadura militar. Tudo isso com desenhos e diagramações dinâmicas e decupagem cinematográfica, tão ágil que parecia saltar da página.
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Em edição mais modesta, mas com mais páginas, Samurai, de Júlio Shimamoto, o único destes três artistas ainda vivo, traz boa parte de sua produção de histórias com os guerreiros japoneses. Nascido em 1939, em Borborema (SP), hoje mora em Jacarepaguá, no Rio de Janeiro, e ainda se encontra em atividade.
Sua primeira história de samurai foi publicada ainda antes das de Claudio Seto. Na verdade, atribui-se ao Mestre Shima, como os fãs e estudiosos costumam se referir a ele, a primeira história de samurais produzida e publicada fora do japão: O fantasma do rincão maldito, publicada em um gibi de terror da extinta Editora Outubro, ainda no início dos anos 60.
Com seus desenhos transbordando de energia a cada quadro, Shima apresenta neste volume seu fascínio pelas lendas de samurais do Japão feudal que ouvia sentado no colo do pai, especialmente de dois personagens famosos: Musashi, o ronin (samurai sem mestre) e Zatoichi, o monge cego que era um exímio lutador.
Samurai
J. Shimamoto
EM Editora
192 p. R$ 9,90
www.mythoseditora.com.br
Vida traçada
Gonçalo Júnior
Marca de Fantasia
92 p. R$ 13
www.marcadefantasia.com
Flores manchadas de sangue
Cláudio Seto
Devir / Jacarandá
130 p. R$ 28
www.devir.com.br