sexta-feira, outubro 04, 2019

EDI ROCK: “TUDO EM FAVOR DO POVO É MARGINALIZADO, É CERCADO DE HIPOCRISIA E PRECONCEITO”

Quarteto master do rap nacional traz à Salvador, hoje à noite, o super-show em que celebra suas três décadas de luta e arte que transcende rótulos e nichos

Mano Brown, KL Jay, Ice Blue e Edi Rock, foto Klaus M.
Engana-se quem pensa que a música dos Racionais MCs é apenas para a (já imensa) plateia fã de rap e hip hop.

A razão é simples: o grupo de Mano Brown, Edi Rock, Ice Blue e KL Jay há muito já transcendeu o nicho do gênero para imprimir uma marca indelével não apenas na (nata da) MPB, mas na cultura brasileira em si.

Para neófitos, uma única audição atenta da obra-prima Sobrevivendo no Inferno (1997) já constitui prova suficiente para esta afirmação.

Para estes e também para os manos e minas raiz, outra prova pode ser testemunhada hoje na Arena Fonte Nova, no show 3 Décadas, uma celebração dos 30 anos de estrada com tudo o que uma ocasião tão nobre pede: banda completa, cenário, projeções em led.

Donos de uma discografia enxuta – apenas quatro álbuns – porém essencial,  os Racionais são os maiores cronistas do povo preto, pobre e marginalizado deste país.

Suas rimas precisas e preciosas se beneficiam ainda de uma abordagem musical luxuosa, coisa de quem conhece  black music – brasileira e estrangeira – de ponta a ponta.

Enfim, uma turma difícil de ser superada, mesmo com a imensa qualidade da cena de rap brasileiro desde os anos 1980.

Nesta entrevista, o Racional Edi Rock saúda a Bahia – terra de seu pai –, fala dessa caminhada de 30 anos, da obra do grupo e do Brasil, entre outros tópicos.

Como é o show? Vem com banda completa, cenário, projeções etc?

Edi Rock: O show é aquele que ganhamos o APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte) em 2018. Com banda completa ao vivo e um led com projeções e tal. É chegar e conferir, esperamos todos na Arena Fonte Nova.

O repertório faz uma geral na carreira do grupo, correto?

ER: É um retrospecto da nossa discografia, uma linha do tempo passando por todos os discos.

Sobrevivendo no Inferno  é um álbum tão marcante e importante para a cultura brasileira que virou livro (Companhia das Letras, 2018) – e este se tornou leitura obrigatória no vestibular da Unicamp. Te surpreendeu essa sequência de acontecimentos ou hoje em dia isso nem  abala mais?

A rapeize cabulosa na foto de Klaus Mitteldorf
ER: Com certeza é muito importante. Não só importante, como também emocionante, aconteceu o que nós mesmos falávamos, isso faz parte da revolução que o grupo sempre cantou desde o começo, como por exemplo na música Voz Ativa. O rap salvou as nossas vidas e pelo que eu entendi, o livro tá representando essa missão. O melhor de tudo isso pra mim é tá vivo pra ver acontecimentos históricos como esse.

Ainda sobre o Sobrevivendo..., como vocês mesmos veem essa obra hoje, dada a forma como tempo muda a perspectiva das coisas? Certamente vocês tem orgulho, mas ele também pesa, tamanha sua importância, inclusive na obra dos Racionais? Ele ofusca, faz "sombra" sobre os outros discos, digamos assim?

ER: Cada integrante responderia de uma forma, na minha opinião o Sobrevivendo é um dos trabalhos mais importantes da banda. Existe o rap antes dele e depois, foi um divisor na história da música, do rap, dos negros, da periferia. Destaco também (o álbum) Raio X do Brasil (1993). Mas não vejo sombra, nem acho que ofusque, vejo a importância pra história. Foi necessário, porém, vida que segue, não podemos ficar no passado, mas sim usar esse disco como referência, olhando pra frente.

As letras dos Racionais são muito sofisticadas do ponto de vista literário. Alguns relatos são tão palpáveis que se pode "sentir" o cheiro, a tensão dos ambientes que vocês descrevem. São relatos incrivelmente ricos. Para escrever desta forma, é preciso ser bem educado, gostar de ler. Vocês eram bons alunos na escola, então? Ou são autodidatas? Como se prepararam para escrever tão bem, mesmo em condições tão adversas?

ER: Em média no grupo temos o ensino fundamental. O complemento foi por esforço próprio. Foi necessário o conhecimento, a leitura é fundamental para o poeta, somos poetas e o combustível disso são palavras. Gosto muito de filmes também. Todos os dias passo a madrugada vendo filme, desde quando ainda existiam locadoras. Gosto do cinema, das tramas, das histórias, dos romances, dos heróis, dos vilões, dos efeitos, da trilha, e tento passar isso nas músicas. Fazemos meio que cinematográfico mesmo, é intencional. Faço na música o que gostaria de ouvir, da forma que eu ficaria feliz ouvindo. Quando escrevo é como se estivesse escrevendo um roteiro. Nossa intenção é despertar e provocar a imaginação. Na escola eu era bom aluno. Do fundão, mas com boas notas em redação, estudos sociais, artes, sempre fui bem criativo. O (Mano) Brown, pelo que fala, sempre foi bom também em geografia, história, esse naipe.



Marighella, para nossa geração, sempre foi um símbolo de luta e resistência à ditadura militar, mas parte da juventude millenial comprou a versão de que ele era só um terrorista que queria instaurar uma "ditadura comunista" no Brasil. Como veem esse gap entre gerações? Falhamos em ensinar a História aos mais jovens? A música Mil Faces de um Homem Leal (Marighella) (2012) é tipo um esforço da parte de vocês?

ER: Acho que tudo que é em favor do povo é marginalizado, sempre cercado de preceitos mentirosos, hipocrisias e preconceitos. A hierarquia do poder na história do Brasil tem medo do que não pode entre aspas controlar, haja vista a prisão do ex-presidente Lula. No Brasil de hoje vemos o passado voltar à tona: coronelismo, repressão, extermínio, intolerância religiosa e de gêneros. Os gestores desse país nos dias de hoje enaltecem a ditadura com uma Bíblia em baixo do braço. Acho isso no mínimo engraçado, parece que voltamos ao século 16. Marighella nos dias hoje seria morto da mesma forma, ou talvez pior, exposto como fizeram com o Che, Escobar, ou até da forma como expuseram e mataram “Jesus” (aspas do entrevistado), longe de comparações, é lógico. Mas governos como o nosso não aceitam heróis do povo, heróis populares representam ameaça à ordem entre aspas. E falando sobre a música, ela foi feita para o filme (de Wagner Moura), se eu não me engano. Lembro quando fizeram o convite para o Brown, a música acabou saindo bem antes, inclusive o Brown ia interpretar o Marighella no filme, mas por conta da agenda de shows e compromissos, não foi possível. Brown tinha acabado de lançar seu álbum solo Boogie Naipe (2016), e para o filme era necessário dedicação de laboratório integral. No fim, quem fez o Marighella no filme foi ninguém mais nem menos que Seu Jorge, e adivinha o que aconteceu? Ele teve a data de estreia cancelada. Século 21, de volta ao Século 16.

Como vocês avaliam a evolução da sonoridade dos Racionais ao longo do tempo? As referências de som ainda são as mesmas? Tenho impressão que, com o tempo, os arranjos ficaram mais secos e diretos, sem os samplers de arranjos de cordas, por exemplo.

Edi Rock olha para trás: "Envelhecendo igual vinho". Ft Klaus Mitteldorf
ER: Na minha visão, e repito, cada um de nós tem uma opinião, na minha visão de produtor, eu dirijo minhas músicas a vida inteira, parei de produzir apenas para escrever agora, mas na minha opinião, fazemos experiências em cada álbum, além de tentar fazer o que não fizemos, tentamos fazer principalmente o que estamos ouvindo naquele momento de criação. No meu caso, sempre tento passar qual a brisa do meu momento na época de composição e criação. Hoje tá bem mais diferente do que antes, e te falo que está melhor, muitos produtores bons, jovens e criativos, não precisamos mais nos preocupar com essa parte. Eu gosto da forma que eu venho fazendo, estou feliz e vem dando bons resultados, me preocupo apenas com a parte autoral de letra, a parte de produção musical apenas direciono. Tem muita coisa boa e surpresas pela frente, digo para os fãs de Racionais que é aguardar e ver. Muito sample, participações de músicos monstros da nossa MPB e lógico, muito peso, que sempre foi a nossa característica. A banda tá passando por um momento muito bom na vida e na carreira, profissional e pessoal. Não gosto de pegar carona em clichê, mas estamos envelhecendo igual vinho e isso é inspirador, é fundamental estar bem.

Como é a relação dos Racionais com Salvador? Vocês tocam aqui há bastante tempo. Tem alguma história da banda em Salvador que vocês possam nos contar?

ER: Minhas origens são nordestinas, minha e do Brown, ele por parte de mãe e eu por parte de pai, então só por aí já existe uma sintonia natural, sem contar que a todo momento tem alguma citação na nossa rima envolvendo a região. A Bahia tá no sangue né, então imagina, é como se voltasse no tempo, é como ir à “África” (aspas do entrevistado). Tem o lado ancestral pra mim, lembro de visitar o bairro onde a mãe do Brown cresceu, parou (a rua), multidão, emocionante. Recentemente, gravei um videoclipe aqui também, chama-se De Onde Eu Venho, justamente com essa finalidade de resgatar a ancestralidade. Bahia pra mim é isso, cultura, política, vida, luta, referência, música, arte, estética, raiz, pura inspiração. Tenho alguns amigos muito queridos em Salvador, do (grupo) Rap Nova Era, por exemplo, do reggae, do samba, todos meus irmãos. Bahia é mil trutas e mil tretas.

RACIONAIS MCs: 3 Décadas Tour 2019 / Abertura: Afrocidade / Hoje, 22 horas (abertura portões) / Arena Fonte Nova /R$ 120 / Vendas: eventim. com.br, lojas South e balcões Pida!

Nenhum comentário: