O assunto é vastíssimo (e urgente) e o espaço, mínimo. Tudo o que você precisa saber é que o premiado jornalista Laurentino Gomes, autor dos livros 1808, 1822 e 1889
estará amanhã (sorry, foi ontem, domingo, 20) em Salvador para lançar e autografar seu novo livro: Escravidão Vol. 1. Mais dois volumes virão em 2020 e 2021. A seguir, uma esclarecedora entrevista com o homem.
O que levou o senhor a embarcar neste projeto específico neste momento específico? Foi um passo lógico depois da trilogia oitocentista ou foi a conjuntura do Brasil neste momento pós-golpe de 2016, pós-reforma trabalhista?
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No Cais do Valongo (RJ), maior entreposto de comércio escravo das Américas |
Laurentino Gomes: Escrever sobre a história da escravidão no Brasil foi uma decorrência natural da minha primeira trilogia de livros. Nos três livros anteriores, 1808, 1822 e 1889, eu procurei explicar as três datas fundamentais para a construção do Brasil como nação independente no século 19. Essas datas ajudam a explicar a maneira como nos constituímos do ponto de vista legal, institucional e burocrático. Mas não são suficientes para entender os aspectos mais profundos da nossa identidade nacional. Para isso é preciso ir além da superfície, observar o que fizemos os nossos índios e negros, quem teve acesso às oportunidades e privilégios ao longo da nossa história e como a sociedade e a cultura brasileiras foram se moldando desde a chegada de Pedro Álvares Cabral à Bahia até os dias de hoje. Ao fazer isso, eu me dei conta de que o assunto mais importante da nossa história não são os ciclos econômicos, as revoluções, o império ou a monarquia. É a escravidão. O trabalho cativo deu o alicerce para a colonização portuguesa na América e a ocupação do imenso território. Também moldou a maneira como nos relacionamos uns com os outros ainda hoje. Neste início de século 21, temos uma sociedade rica do ponto de vista cultural, diversificada e multifacetada, mas também marcada por grande desigualdade social e manifestação quase diárias de preconceito racial. Isso, no meu entender, é ainda herança da exploração desumana, cruel e indigna do trabalho de milhões de pessoas forçadas a cruzar o Oceano Atlântico a bordo dos navios negreiros para viver como cativas no Brasil colônia. No final do século 17, o padre jesuíta Antônio Vieira cunhou uma frase famosa. “O Brasil tem seu corpo na América e sua alma na África”, afirmava ele. No meu entender, é uma frase profética, que se torna cada vez mais verdadeira com o passar do tempo. E continua atual ainda hoje. O Brasil foi o maior território escravagista do hemisfério ocidental. Recebeu quase cinco milhões de cativos africanos, cerca de 40% do total de doze milhões embarcados para as Américas. Como resultado, tem hoje a maior população negra do mundo, com exceção apenas da Nigéria. Foi também o país que mais tempo resistiu a acabar com o tráfico negreiro e o último a abolir o cativeiro, pela Lei Áurea de 1888 - quatro anos depois de Porto Rico e dois depois de Cuba. A escravidão foi a experiência mais determinante na história brasileira, com impacto profundo na cultura e no sistema político que deu origem ao país depois da independência. Nenhum outro assunto é tão importante e tão definidor para a construção da nossa identidade.
Entre as várias viagens de pesquisa de campo que o senhor fez, cinco delas foram à África. O que mais o impressionou nestas incursões em relação ao seu objeto de estudo? Que marcas a escravidão deixou visíveis no solo e no povo africano nativo de hoje?
LG - Brasil e África já estiveram mais próximos. Como bem demonstrou Pierre Verger, até o final do século 19, havia rotas regulares de navios entre Salvador, na Bahia, e a Nigéria, por exemplo. Angola tentou aderir à independência do Brasil, em 1822. O intercâmbio econômico e cultural era bastante intenso nessa época, muito em consequência do próprio tráfico negreiro. Hoje, essas relações estão mais frias, mas marcas brasileiras são hoje bem visíveis no continente africano. Em Gana e no Benim encontrei uma numerosa comunidade descendentes de ex-escravos retornados durante o século 19. Ocupam posições importantes na hierarquia social. Alguns foram presidentes, ministros, governadores. Esses ex-escravos deixaram também contribuições importantes na arquitetura, nas artes e nos costumes em diversos países. Na cidade Porto Novo, no Benim, por exemplo, há uma mesquita muçulmana com traços arquitetônicos de igreja católica brasileira. Foi construída por escravos libertos da Bahia, que tinham por ofício erguer templos católicos no Brasil e levaram sua técnica de construção para a África. Essa influência continua muito forte ainda hoje. As novelas da Rede Globo têm uma audiência enorme nos países de línguas portuguesa. Ao ponto de alterar o sotaque o modo de fala o idioma nesses locais.
A escravidão, como o senhor e tantos outros autores nos lembram, sempre existiu na humanidade, em todos os continentes. Ainda assim, nunca conheceu um período tão "próspero", com o perdão da má palavra, quanto quando os europeus entraram no negócio, entre os séculos 15 e 19. E ainda hoje ela persiste em várias partes do mundo. A escravidão, portanto, é um problema da humanidade como um todo, correto?
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Castelo de São Jorge da Mina, litoral de Gana, construção portuguesa, século 15 |
LG - Infelizmente, sim, a escravidão parece fazer parte do código genérico do ser humano. Existiu em todas as grandes civilizações, incluindo a Babilônia, o Egito, a Grécia, Roma, os territórios dominados pelo islã e a própria África antes da chegada dos europeus. Ainda hoje, o regime escravista persiste no mundo sob formas de trabalho desumanas, indignas e inaceitáveis para os padrões éticos que julgávamos ter atingido neste início de século 21. Uma organização britânica a Anti-Slavery International (mais antiga entidade de defesa dos direitos humanos, fundada em 1823 para combater o tráfico negreiro), afirma que existem atualmente mais escravos no mundo do que em qualquer período nos 350 anos escravidão africana nas Américas. Seriam 40 milhões de pessoas vivendo hoje em condições de vida e trabalho análogas às da escravidão – ou seja, quatro vezes o total de cativos traficados no Atlântico até meados do século 19. Ainda segundo a Anti-Slavery Internacional, a cada ano cerca de 800.000 pessoas são traficadas internacionalmente ou mantidas sob alguma forma de cativeiro, impossibilitadas de retornar livremente e por seus próprios meios aos locais de origem. E lamentavelmente, o nosso Brasil aparece sempre com destaque nesta lista suja.
Muita gente não entende - ou finge não entender - a relação entre o passado de escravidão dos negros, o racismo e a clara posição de desvantagem social que estes amargam ainda hoje. O senhor poderia nos esclarecer isto, por favor?
LG - Ao contrário do que se imagina, a escravidão não é um assunto acabado, bem resolvido e congelado no passado. Ainda está vivo entre nós, como se pode ver nos discursos de campanhas eleitorais e nas discussões diárias que aparecem nas redes sociais. O preconceito é uma das marcas das nossas relações sociais no Brasil, embora sempre procuremos disfarça-lo construindo mitos a respeito de nós mesmos. Um desses mitos dizem que somos uma ‘democracia racial’ e que a escravidão entre nós foi mais benévola, patriarcal e tolerante do que eu outros territórios da América. Tudo isso é ilusório e desmentido pelas estatísticas, que mostram um fosso enorme de desigualdade entre negros e brancos no país em todos os itens analisados. Os descendentes de africanos ganham menos, moram em lugares mais insalubres, estão mais expostos aos efeitos da violência e da criminalidade e tem oportunidades em todas as áreas, incluindo emprego, saúde, educação, segurança, saneamento, moradia e acesso aos postos da administração pública. Um homem negro no Brasil tem oito vezes mais chances de morrer vítima de homicídio do que um homem branco. Esse é um legado da escravidão, mal resolvido no passado e que ainda hoje tentamos negar. Portanto, tudo o que fomos no passado, o que somos hoje e o que seremos no futuro tem a ver com as nossas raízes africanas e a forma como nos relacionamos com elas.
Entre os vários enfoques e detalhes da história da escravidão que o senhor explora no livro, a questão dos eunucos é especialmente impressionante, até porque a imagem que temos dessa classe de escravos é aquela que nos foi dada pela indústria cultural – portanto, edulcorada. Como sopesar aquela versão dos desenhos animados com a realidade brutal de tamanho genocídio?
LG - A escravidão é um tema doloroso, repleto de sofrimento e crueldade. Por isso, precisamos estudar e refletir sobre o que aconteceu. Os eunucos eram homens privados da virilidade mediante a castração dos órgãos genitais ainda na adolescência. Há registros dessa forma radical de escravização desde a mais remota antiguidade. Eram também muito valiosos no mercado de cativos. No Egito, uma jovem negra valia cerca de 40 dinares, e um eunuco, mais de 65. O motivo era a alta taxa de mortalidade nas cirurgias de amputação dos órgãos genitais. Cerca de 90% dos adolescentes morriam em decorrência da operação. Os que sobrevivessem ocupavam funções importantes na hierarquia escravista, encarregados de fazer a guarda dos haréns, cujas mulheres em geral eram também escravas, e desempenhar funções-chave na estrutura dos impérios, como tesoureiros, ministros, conselheiros e até comandantes militares. Havia mais de cem mil deles nos palácios chineses da dinastia Ming.
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Roda de conversa no Quilombo Caiana dos Crioulos (Agreste da Paraíba) |
Muita gente parece acreditar que a história da África começa com a chegada dos exploradores europeus, mas no seu livro aprendemos que há um vasto arcabouço histórico antes disso, com muitos reinos, guerras e civilizações. Porque não temos acesso a isso ainda na escola, nas aulas de História Geral?
LG - A África sempre foi um continente muito diverso, culturalmente rico, com uma história milenar que remonta às próprias origens do ser humano na Terra. Infelizmente, a visão que se tem ainda hoje do continente reflete o preconceito e a ignorância dos próprios europeus que, na época do início do tráfico negreiro, viam todos os africanos como bárbaros, selvagens e infiéis, estranhos à fé católica e distantes da supostamente avançada civilização europeia. Isso também se reflete na maneira como nós estudamos a África no Brasil. Até muito recentemente, a história africana e da escravidão negra no Atlântico era tratada como tema secundário, quase casual, nos livros didáticos e a historiografia oficial. Isso não aconteceu por acaso. É resultado de um propósito de esquecimento. Alguns dos grandes abolicionistas do século 19, como Joaquim Nabuco e André Rebouças, diziam que não bastava acabar com a escravidão. Era preciso também enfrentar o seu legado, dando terra, trabalho, educação e oportunidades aos ex-cativos e seus descendentes. Isso o Brasil jamais fez. Nossa população afrodescendente foi abandonada à própria sorte, como mostram hoje todas as estatísticas e indicadores sociais. O projeto de abandono e esquecimento incluiu também a nossa história negra e africana, relegada a um segundo plano nos livros didáticos. Felizmente, isso está mudando. Hoje, já existe até uma lei que obriga o ensino desse tema em sala de aula.
Muita gente (branca) se ofende quando se fala em reparação histórica pela escravidão, como se isso dissesse respeito a estas pessoas - o que denota certa egolatria, diga-se de passagem - mas diz respeito à sociedade como um todo. Na opinião do senhor - ou dos especialistas com quem o senhor conversou - o que seria uma reparação realmente justa para todos - mas para com os negros, principalmente?
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Senzala no Engenho Uruaé (PE): argola de ferro para imobilizar escravos |
LG - Eu sou a favor dos programas de cotas preferenciais para afrodescendentes por duas razões. A primeira é que essa política vem dando resultados concretos. As estatísticas mostram um aumento no número de negros ou pardos (categoria do IBGE que inclui uma ampla gama de mestiços) mestres e doutores nas universidades e também em cargos mais qualificados da administração pública e da iniciativa privada. Ainda que lentamente, estamos abrindo espaços para essa parcela da população que, no passado, sempre esteve sub-representada. A segunda razão é que, mesmo sendo polêmica, a política de cotas demonstra que o Brasil da democracia, pela primeira vez, topa o desafio de enfrentar o legado da escravidão e corrigi-lo. Isso nunca aconteceu antes. Claro que ainda há muita reação. Um dos argumentos contrários à política de cotas, presente até em discursos de altas autoridades da república, tenta culpar os escravos pela própria escravidão. Muita gente afirma que, se os africanos participaram e lucraram com a escravidão, não haveria razão para manter no Brasil, por exemplo, um sistema de cotas de inclusão dos afrodescendentes em escolas ou postos da administração pública. A chamada “dívida social” brasileira em relação em relação aos descendentes de escravos estaria anulada pelo fato de os africanos serem corresponsáveis pelo regime escravista. Desse modo, não haveria porque indenizá-los ou compensá-los pelos prejuízos sociais e históricos decorrentes disso. Tudo isso é muito injusto porque, obviamente, não se pode culpar os escravos pela própria escravidão. O fato de chefes africanos terem participado do tráfico nada tem a ver com a enorme dívida social e real que o Brasil tem com os seus afrodescendentes. Basta ver as estatísticas, onde a nossa população negra aparece como a parcela da sociedade com menos oportunidades e a que mais sofre com a desigualdade social crônica brasileira. Precisamos corrigir isso urgentemente. E não podemos nos esconder atrás de falsas e incorretas discussões a respeito de fatos históricos.
Tendo em perspectiva o momento atual da Igreja Católica sob o pontificado do Papa Francisco, como o senhor avalia a posição da Igreja ao longo de todos aqueles séculos em relação à escravidão? Não que impressione muito, dado o comportamento da instituição durante a Inquisição (ou durante a 2ª Guerra e os escândalos de pedofilia), mas enfim.
LG - Foram escassas as vozes dentro da hierarquia católica que se ergueram contra o cativeiro dos africanos. Havia exceções, mas eram relativamente raras. Como apontou o historiador americano David Brion Davis, a escravidão sempre foi um problema insolúvel para a sociedade ocidental. Havia enorme contradição nas leis civis e eclesiásticas que tratavam da condição dos cativos. O estado sancionava a privação da liberdade e considerava os escravos como propriedade de seus senhores, passíveis de compra e venda, como qualquer animal ou bem imóvel. Seus filhos nasciam e permaneciam no cativeiro. Mas, ao mesmo tempo, essas mesmas leis reconheciam que os escravos tinham alguns direitos mínimos, como à própria vida, que não poderia ser tirada pelo seu senhor sob pena de crime. Os códigos canônicos determinavam que os escravos deveriam ser batizados e acolhidos no rebanho cristão, participavam de confrarias, como a de Nossa Senhora do Rosário, e se faziam representadas em festas, procissões e outros rituais religiosos, mas até o final do século 19, com raras opiniões isoladas, a igreja nunca se pronunciou oficialmente e de forma inequívoca contra a escravidão. A igreja reconhecia que os cativos tinham uma alma imortal, que deveria ser salva mediante a administração dos sacramentos, mas bispos, padres e ordens religiosas eram donos de escravos e participavam ativamente do comércio negreiro. A igreja também reconhecia o casamento de cativos e defendia a proteção da família, mas isso nunca impediu que maridos e mulheres, pais e filhos fossem separados nas transações de venda de escravos.
Outro dia, uma reportagem da BBC mostrou que guias de fazendas históricas do sul dos Estados Unidos volta e meia são xingados por turistas (brancos) que se ofendem ao se deparar com a verdade na forma como os escravos eram explorados, torturados, estuprados e mortos. Dizem que os guias tem "viés esquerdista". Ser contra a escravidão virou coisa de esquerdista? Não deveria ser uma luta de todo ser humano?
LG - A escravidão não é assunto exclusivo de direita ou de esquerda, de brancos ou negros. É um tema com o qual todos nós, brasileiros, deveríamos nos preocupar. Todos nós que estamos vivos hoje somos descendentes de escravos ou de senhores de escravos. O legado da escravidão, que se traduz em desigualdade social no Brasil, é um desafio urgente, que exige nossas atenções e esforços como cidadãos, independente da nossa cor da pele e das nossas preferências político-partidárias. Esse clima de polarização e ódio me preocupa muito. Acho que em nada contribui para o estudo da escravidão nem para a construção do Brasil dos nossos sonhos. Mais preocupante é ver que a discórdia muitas vezes é semeada por quem deveria dar exemplos de serenidade, discernimento e sabedoria. Infelizmente, isso inclui o próprio presidente da República. Durante a campanha eleitoral de 2018, fiquei assustado com a crueza e a falta de sensibilidade que o candidato Jair Bolsonaro demonstrou ao tratar de temas como a escravidão, o papel das mulheres, os direitos dos homossexuais, dos emigrantes e das pessoas mais pobres na sociedade brasileira. Esse discurso de enfrentamento rendeu votos e muita gente se valeu dele para ser eleita em 2018, mas esperava que, passada a campanha eleitoral, a retórica, o comportamento e as decisões dos eleitos fossem diferentes. Não é o que está acontecendo. É preciso que o presidente deixe para trás o discurso de palanque e governe para todos os brasileiros, levando em conta principalmente os mais fracos, os mais necessitados, os mais desprotegidos. Precisamos urgente cicatrizar as feridas, superar as divisões e encontrar pontos de união, que nos ajudem a caminhar em direção ao futuro e enfrentar os desafios mais urgentes.
Escravidão Vol. I: do primeiro leilão de cativos em Portugal até a morte de Zumbi dos Palmares / Laurentino Gomes / Globo Livros/ 480 p. / R$ 49,90