Retrospectiva: Em 2017 Anitta reinou, o transgênero virou gênero (musical), os medalhões medalharam, os baianos comandaram e o rock continuou indesejado
No ano em que Anitta reinou de cabo a rabo (sem trocadilhos), a música – popular, erudita ou alienígena – teve que dar um duro danado para se manter íntegra.
Afinal, em um mundo que se debate contra um levante fanático religioso / conservador / fascista temporão, até a mulher do biquíni de fita isolante precisou dar lá suas cotoveladas nos ditadores de regras sobre vidas e úteros alheios.
Não que 2018 vá ser mais suave. Com eleição e Copa do Mundo despontando no horizonte, certamente não será.
Mas aqui e agora falamos sobre o que já foi: o ano de 2017, aquele em “trânsgenero” praticamente se tornou... gênero. Musical, bem entendido.
Na onda do empoderamento das minorias – onda mais que necessária, bom frisar – artistas trans como Pablo Vittar, Liniker e a banda As Bahias & A Cozinha Mineira levaram o ancestral imaginário “transformer” loureediano às casas da tradicional família brasileira com músicas de fazer RuPaul corar debaixo do pancake.
Mas isso é bom, é ruim ou nem um nem outro? Em termos estritamente musicais, há controvérsias. Já em termos políticos, isso é, com o perdão da apropriação cultural indevida, simplesmente “mara”.
Baianos no comando
Fechando o foco na Bahia-iá-iá, é preciso dizer que os artistas locais continuam sendo os mais apreciados – prova inconteste de duas coisas.
Uma: o público baiano é o mais fiel deste lado do mundo invertido. Duas: a produção musical local segue vigorosa.
Do feminejo de Simone & Simaria ao pagodão eletrônico do ÀTTØØXXÁ, à consolidação da Baiana System como um fenômeno, pela aclamação crítica de Giovani Cidreira, o delírio febril do rapper Baco Exú do Blues, a sofisticação harmônica da Pirombeira e a suavidade afirmativa de Luedji Luna, a verdade é esta: aqui, a lenha pra queimar é infinita.
Há, obviamente, muito mais, em todos – todos mesmo! – os gêneros e estilos musicais, desde o experimental avant garde do Laia Gaiatta ao black metal internacionalmente cultuado da Headhunter DC, o bluegrass geograficamente deslocado de Gigito e da banda Muddy Town, a inovação do Duo B.A.V.I., a bela estreia tardia de Antonio Carlos Tatau, os retornos ao disco de Edy Star e do Canto dos Malditos na Terra do Nunca, o formidável segundo CD do Sertanília, a reedição com pompa d’Os Tincoãs.
E ainda teve Saravá Jazz Bahia, Maviael Melo, OQuadro, Filipe Lorenzo, JosyAra, Ian Lasserre, Matita Perê, Irmão Carlos, Pastel de Miolos, Maglore, Lívia Mattos, Malefactor, The Cross, Achiles, Márcia Castro, Daganja, Rosa Idiota, Game Over Riverside.
Poderia ficar aqui até 2018 citando artistas baianos que lançaram obras consistentes em 2017.
Sem esquecer do bem-vindo reerguimento (ainda em processo) da Orquestra Sinfônica da Bahia, uma proeza absolutamente notável em tempos tão bicudos.
Neste cenário, a realização de festivais independentes são as peças essenciais que permitiram a muitos desses artistas terem acesso às fatias de um público qualificado, interessado em novidades e músicos de renome, porém pouco badalados.
Além do Radioca (com a edição 2018 já garantida pelo Natura Musical), ganham cada vez mais peso os festivais realizados no interior, como Feira Noise e Suíça Baiana (Vitória da Conquista).
O que falta são festivais mais consolidados de jazz e blues, música regional (de raiz), rock (o Big Bands do bravo Rogério BigBross e o Palco do Rock no Carnaval penam muito para acontecer) e, claro, música erudita, algo necessário para uma cidade com a tradição de Salvador – sem contar o tal título de Cidade Criativa da Música, outorgado pela Unesco.
Medalhões
Chico Buarque – tinha que ser ele – foi alvo de polêmica entre facções feministas por causa de uma letra sobre... adultério.
Não, não estamos em 1960. Tua Cantiga, a canção em questão, está no álbum Caravanas, primeiro desde Chico (2011).
Caetano Veloso também teve pouco sossego em 2017. Viu uma biografia não-autorizada (A vida de Caetano Veloso, o mais Doce Bárbaro dos Trópicos) chegar às livrarias, foi perseguido e processou membros da famigerada bancada evangélica, milícias fascistas e outras criaturas das profundezas.
Fechou o ano em turnê com os filhos Moreno, Zeca e Tom, cujo show chega à Concha Acústica do TCA no dia 13.
Gal Costa e Gilberto Gil juntaram forças com Nando Reis na turnê Trinca de Ases. Milton Nascimento saiu de braço dado com Tiago "Amei Te Ver" Iorc, com quem compôs e gravou a canção Mais Bonito Não Há.
Sem um milésimo da fama de todos esses citados, vale conferir Tatanaguê, belíssimo álbum lançado em 2017 por Theo de Barros, violonista do lendário Quarteto Novo.
E outros dois membros do seminal grupo voltaram em 2017: o percussionista Aírto Moreira (com o álbum Aluê) e o indefectível Hermeto Pascoal (o CD duplo No Mundo dos Sons), ambos pelo selo Sesc.
Rock persona non grata
Impossível não citar a apresentação de Paul McCartney em Salvador em outubro último, tranquilamente o mais importante, impactante e emocionante show internacional já ocorrido nesta província.
Em termos gerais, enquanto o rock continua praticamente persona non grata na grande mídia (excetuando-se medalhões, claro), é preciso dizer que no underground ele segue firme e forte – no Brasil menos, mundo afora bem mais.
Entre os grandes lançamentos do ano, Chuck, o testamento do pioneiro Chuck Berry, lançado três meses depois de sua morte em março, é presença certa entre os melhores.
Outros grandes lançamentos foram Is This the Life We Really Want?, de Roger Waters (em outubro na Arena Fonte Nova), Villains, do Queens of the Stone Age, Machine Messiah, do Sepultura, Colors, do Beck, Rough Times, dos alemães do Kadavar, Gargoyle, do Mark Lanegan Band, Emperor Of Sand, do Mastodon, Every Country's Sun, do Mogwai, Orc, do Oh Sees, In Spades, do The Afghan Whigs, Sky is Mine, do The Duke Spirit, V, do The Horrors, Spitting Image, do The Strypes e A Deeper Understanding, do The War on Drugs.
Voltas importantes fizeram as bandas inglesas The Jesus And Mary Chain (com Damage And Joy) e Ride (com Weather Diaries).
O ex-Smiths Morrissey marcou presença com Low in High School e o U2 fechou o ano, com Songs of Experience.
Mas se você está com raiva mesmo, Pussycat, de Juliana Hatfield, é O Disco de 2017.
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