Blog (que, nos seus primórdios, entre 2004-05, foi de um programa de rádio) sobre rock e cultura pop. Hoje é o blog de Chico Castro Jr., jornalista formado pela Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia. Atualmente, é repórter do Caderno 2+ do jornal A Tarde, no qual algumas das matérias vistas aqui foram anteriormente publicadas. Assina a coluna Coletânea, dedicada à música independente baiana. Nossa base é Salvador, Bahia, a cidade do axé, a cidade do terror.
Gregg Allman, um iluminado. Photo Patricia O'Driscoll
Eles voltaram, os boêmios voltaram!
Nei Bahia e Osvaldo Braminha Silveira Jr. finalmente retomam os trabalhos no podcast Rocks Off - e retomam bonito: homenageando o recentemente falecido deus do southern rock, Gregg Allman!
Tenha a exata dimensão da obra, do legado, da importância deste monstruoso gênio do rock de raiz com nossos dois professores.
Onze anos depois de lançar seu primeiro CD – e dez depois de anunciar sua dissolução – a banda baiana, que retornou às atividades em 2012, lança finalmente seu segundo disco: Travessia.
Resultado de uma bem sucedida campanha de crowdfunding (financiamento coletivo) junto aos fãs, Travessia cumpre bem dois propósitos básicos – e quase opostos.
Travessia consegue manter a identidade roqueira da banda (muito graças à voz característica da cantora Andréa Martins) – ao mesmo tempo em que atualiza sua sonoridade, sintonizando-a com precisão ao zeitgeist do som jovem atual, mais afeito à MPB alternativa do que ao rock.
É um feito e tanto, e certamente, os méritos devem caber tanto à banda quanto à afiada dupla de produtores que trabalhou com o quinteto nas gravações: andré t. e Tadeu Mascarenhas.
“Tivemos essas duas figuras colocando (nesse trabalho) suas características, que são muito peculiares e diferentes”, comenta Andréa ao telefone.
Com dez composições – todas de Andréa, que dividiu a direção musical com o baterista Leonardo Bittencourt – Travessia consegue se equilibrar nesse fio de navalha entre o rock e a MPB contemporânea, uma decisão pensada em grupo: músicos e produtores.
“Teve a vantagem de os meninos (da banda) serem muito abertos, não ficaram com medo, tipo ‘tem de ser rock’, isso ou aquilo”, conta Andréa.
“Então o disco tem essa característica, uma vontade de ter uma liberdade e aproveitar a oportunidade de trabalhar com dois grandes produtores. Daí gravamos várias coisas que nem imaginaríamos gravar quando começamos”, diz.
Assim, Travessia poderá agradar tanto aos fãs mais antigos com faixas mais pesadas, à moda do primeiro álbum, como À Deriva e Não Há, quanto também poderá traze-los à bordo para navegar em mares ainda não explorados, como na balada Contra Maré e na valsa etérea Tanto Mar.
“(Ao compor as faixas) Pensei que som seria este depois de tanto tempo (depois do primeiro disco), eu já com projeto solo e tudo. Seria minha vibe de agora ou seriam músicas mais semelhantes ao que seria próximo disco se não tivéssemos parado a banda em 2006?”, pergunta-se Andréa.
CMTN, foto Rana Tosto
Na dúvida, a cantora deu uma de Moisés e abriu um caminho no meio da maré.
“Então peguei músicas compostas há dez anos, que já seriam para um segundo disco na época e outras que são as de agora mesmo”, conta.
“É que eu precisava dizer o que sinto agora, dez anos depois (de lançar um disco por uma gravadora major, Warner), tinha que ter uma relação com o presente”, acrescenta.
Trajetória sui generis
Formada em meados da década passada, a CMTN teve uma trajetória curiosa.
Chamou a atenção do público pela primeira vez ao ser classificada para a seletiva local do concurso nacional de bandas Claro Q é Rock!, abrindo o show da banda inglesa Placebo na Concha Acústica, em 2005.
Atenta ao potencial do grupo, a major Warner contratou a banda, então formada por adolescentes, e lançou seu primeiro disco já no ano seguinte, 2006.
Foi muito para os jovens músicos digerirem na época. Resultado: em 2007, a CMTN anunciou sua dissolução, antes mesmo de fazer uma turnê pelo Brasil.
“Voltamos em 2012 e nos animamos, por que tinha a sensação de morte precoce da banda. Rodamos alguns estados tocando e as pessoas pediam muito para continuarmos. Mas não faria muito sentido tocar mais do mesmo, tinha que trazer algo novo aos fãs. Este disco cumpre esta função”, conclui Andréa.
Travessia / Canto dos Malditos na Terra do Nunca / Independente / Disponível nas plataformas digitais
Gigante da arte popular nordestina, Bule Bule comemora 50 anos de carreira e 70 de vida com crowdfunding e muita interação on line
O grande Bule Bule não merece fotos tão ruins quanto esta do blogueiro...
Bule Bule não se cansa de se admirar com as facilidades século 21. “Antes eu mandava um recado e só sabia a resposta quando o menino voltava”, lembra.
“Agora eu converso com uma menina de Piritiba que fala comigo lá da Rússia! Então a internet é uma mudernage do bem”, percebe.
Não só, Bule, mas isso não vem ao caso. O importante é o bem que se faz com ela.
Como a campanha de crowdfunding (ou financiamento coletivo) que este mestre baiano da cultura popular está fazendo, para bancar o show de comemoração dos seus 50 anos de carreira e 70 anos de vida.
Intitulado Antonio 70, Bule Bule 50, sendo Antonio Ribeiro seu nome de batismo, o show está previsto para ser realizado no dia em que ele completa 70 primaveras, em 22 de outubro, no Teatro Cidade do Saber, lá mesmo em Camaçari.
Filho de Bule, o publicitário Paulo Azevedo e seus sócios, Saulo Sancio e Tom Silva, são os responsáveis pela campanha, que pretende arrecadar o bastante para gravar o show e transforma-lo em CD e DVD ao vivo. “A proposta (da campanha) é inserir Bule Bule nesta nova realidade”, diz Tom.
“Fora que aniversário pede presente, né?”, acrescenta Bule, que está cheio de planos para a ocasião. “Quero trazer alguns convidados, como Xangai, Maciel Mello, Adiel Luna (cantadores pernambucanos) e outros. Mas para abrir essa porta tem que ter o dinheiro”.
Opção muito buscada por artistas e empreendedores para financiar seus projetos, o crowdfunding já deu certo para muita gente (não para todos) – e tem sido uma alternativa para aqueles que preferem se manter longe da política pública dos editais, como Bule Bule.
“Quem decide sobre projetos culturais geralmente é quem menos entende de cultura. Não entendem nada de cultura de raiz”, afirma.
Live no Face e no Insta
Bule Bule está animado, embalado pela boa receptividade de seu último livro, Rodolfo Coelho Cavalcante, Castro Alves e Outros Temas de Cordel (Independente, 100 páginas, R$ 25), lançado na Flipelô há poucos dias.
“Tudo o que acontece este ano tem relevância pra mim, como este livro, que aliás está nos pacotes de recompensa da campanha”, lembra.
O baiano Rodolfo Coelho (1919 - 1987), homenageado no livro, foi um dos principais cordelistas brasileiros, incentivador de Bule Bule em início de carreira e o tema principal deste, que é apenas o seu quinto livro.
Em compensação, já publicou mais de 100 cordeis (e escreveu o dobro disso) e tem oito álbuns gravados.
“Nesses 50 anos, apesar de ter produzido tanto, eu produzi muito pouco”, afirma.
“Mas ainda me sinto começando. A empolgação é a mesma desde o início. Só a força física diminui um pouco”, diz.
Em outubro de 2016, Bule superou o momento mais difícil de sua vida, ao passar por um transplante de rim.
“Fiquei sete anos e meio na hemodiálise. Não conseguia fazer xixi, meu rim murchou. Quem nunca passou por isso, peça a Deus para não passar”, conta, sem conseguir esconder a emoção. Tom corre ao banheiro e lhe traz um papel toalha para enxugar os olhos.
“Agora tá tudo funcionando perfeito, minha creatinina (substância que indica saúde dos rins) é de criança. Corro o Brasil fazendo shows, outro dia voltei do Festival de Inverno de Garanhuns (PE)”, conta.
“Inclusive, se você deixar, queria citar a equipe do Hospital Português que me tratou, os doutores Ernane Gusmão, Margarida Dutra, Rogério Passos, os enfermeiros, os técnicos, todo mundo”, louva.
Focado na campanha de financiamento e no show dos 50 anos de carreira, Bule está, como foi dito ali no começo, encantado com a internet.
“Cultura popular? O que tem de mais popular fazendo cultura hoje é a internet”, afirma.
“Ontem mesmo eu tava fazendo um live (transmissão ao vivo) pelo Facebook e Instagram, com gente do mundo todo. E que as pessoas aprendam a botar seus poemas on line, que o papel tá muito caro”, conclui, aquela alegria nos olhos. www.benfeitoria.com/showantonio70bulebule50
É um negócio impressionante como tem gente talentosa nessa cidade.
Neila Khadi, por exemplo. Já ouviu falar?
Nem eu, até outro dia!
Vai lá no Soundcloud da moça e se encante com a voz belíssima e os arranjos bacanas que ela cria para suas canções, como o trip hop Rainha da Noite, o dance estiloso Não Vá Embora ou o eletro-afoxé Kirimurê.
Foi lá? Pois é, e quer saber mais? Ela não nasceu ontem. Já faz uns bons dez anos que Neila milita na cena local.
Entre suas credenciais estão o grupo de samba Chita Fina e o coletivo feminino Som das Binha, os quais ajudou a fundar.
Até Nelson Motta - sim, aquele Nelson Motta - já teceu elogios à senhorita Khadi em seu programa na rádio on line Território Eldorado.
E como é que a gente nem sabia disso?
“Acredito que, nesse período, eu vim amadurecendo minhas escolhas e profissionalizando minha postura enquanto artista criadora, e hoje me sinto, mais do que nunca, preparada para fazer o que desejo”, afirma Neila.
L.A., Oriente Médio, SSa
Neila. Foto Denise Salazar
Após sair da Chita Fina em 2012, Neila foi estudar e cuidar da carreira solo. Passou por um curso de Electronic Music Producer em Los Angeles e rodou pelo Oriente Médio.
"Em Los Angeles fiz uma especialização em Electronic Music Producer foi uma experiência que potencializou demais minha criação, me deu know-how para somar às minhas performances o uso dessas ferramentas eletrônicas que, naturalmente, amparam fortemente a pré-produção das minhas canções. Hoje também tenho atuado como educadora e tive a alegria de ministrar há um mês uma oficina de produção musical só para mulheres, no evento Pitchgirl. Foi uma experiência incrível e quero continuar ampliando essa troca. Os EUA mudou bastante minha visão sobre o mercado da música, sobre minha maneira de atuar nele, sou muito grata a essa experiência", relata.
O resultado de suas andanças está nas diversas faixas que podem ser ouvidas em seu Soundcloud.
Agora, ela está gravando seu primeiro álbum no Estúdios WR, dentro do programa WR de Portas Abertas.
“Estou num momento muito produtivo e feliz da carreira, finalizando um EP que vou lançar até outubro junto com o clipe de uma música autoral muito especial para mim, Jorgina. Uma canção feminista, empoderada e positiva, que nos incentiva a sermos o que somos, sermos felizes como somos. Lanço este clipe pelo selo Skol Music”, conta.
“Tenho a alegria de contar com músicos parceiros maravilhosos, como Jelber Oliveira, Alexandre Lins, Du Txai, Fred Aquino e Sebastian Notini. Eles fazem esse processo produtivo e criativo ser ainda mais rico. Com a WR participei de um edital chamado WR de Portas Abertas. Uma oportunidade muito legal de gravar um single nesse estúdio que é um marco na historia da música da Bahia. Gravei com eles uma canção minha em parceria com Daniel Mã, chamada Sou daqui. Ela fala sobre minha relação com o mar que sempre me inspira muito, principalmente a compor”, acrescenta Neila.
Inquieta, de difícil rotulação, a artista se reconhece desta forma: “Sempre fui muito inquieta, não sou a favor dos rótulos e me reconheço como um apanhado de referencias que perpassa a música baiana, nordestina, árabe, africana, francesa e etc. Gosto de experimentar e misturar tudo isso, faço bastante uso das texturas, dos processamentos vocais para traduzir o que me faz pulsar, o que comunica com a minha verdade neste momento, afinal, estamos em constante transformação. Tive a felicidade de visitar o oriente médio a pouco tempo e essa experiencia me mobilizou muito tanto como pessoa, tanto como artista. De lá pra cá sempre levo esse parte oriente na minha sonoridade e é muito legal perceber como esta sonoridade tem haver com a gente, com o nosso sertão, por exemplo”, conclui.
O Quanto Vale o Show? de hoje apresenta mais uma Noite Instinto Coletivo, com as bandas Espinhos & Rosas e Lírio. Dubliner’s, 19 horas, pague quanto quiser.
Soterorock 2017 começa sábado
Neste sábado começa o Festival Soterorock 2017: uma session para cada um dos cinco sábados de setembro – cada uma em um local diferente de Salvador e região metropolitana. Para começar, tem Pastel de Miolos, Kalmia, Aborigines e Modus Operandi no Buk Porão. Mais detalhes em breve, se liga.
Podia tá roubando...
Falando na Pastel de Miolos, a banda está em campanha de crowdfunding para gravar seu novo álbum, Reação. Vai lá: www.catarse.me/pasteldemiolos.
Aos 61 anos, juazeirense Antonio Carlos Tatau surpreende ao estrear com A Lida dos Anos, elogiado disco via selo Joia Moderna. O show de lançamento é HOJE, com o pernambucano Zé Manoel
Antonio Carlos Tatau, foto Flávia Almeida
Se é verdade que nunca é tarde para começar, a estreia do cantor e compositor Antonio Carlos Tatau parece apenas confirmar o dito popular.
Baiano de Juazeiro, Tatau estreia aos 61 anos em grande estilo: seu álbum A Lida dos Anos foi lançado nacionalmente via Joia Moderna, selo do DJ e produtor gaúcho Zé Pedro.
O faro certeiro do homem dos chapéus engraçados se confirma nas várias resenhas já publicadas em jornais e sites especializados de todo o Brasil, que não tem economizado elogios à obra.
“Foi uma grata surpresa (a calorosa recepção da crítica). Sinceramente não esperava. Me sinto feliz com isso e motivado para ir em frente”, afirma Tatau.
E como esta parece ser uma época de muitas primeiras vezes para Tatau, amanhã ele emplaca mais uma, estreando nos palcos de Salvador com o show de lançamento do CD.
No palco do Teatro do Sesi Rio Vermelho ele se apresenta acompanhado pelo irmão mais novo e produtor, o experiente Luisão Pereira (Dois Em Um) no baixo e teclado e Fábio Rocha (bateria).
O trio é completado por um convidado ilustre: o pernambucano (de Petrolina) Zé Manoel, que faz o show de abertura e segue no palco acompanhando Tatau ao longo de toda a sua apresentação.
Colega do selo Joia Moderna, Zé vem ainda quente da consagração no Prêmio da Música Brasileira 2017 (em julho), com seu terceiro álbum, Delírio de um Romance a Céu Aberto, premiado na categoria Álbum Projeto Especial.
Zé Manoel, parceiro no estúdio e no palco
O encontro de Zé e Tatau no palco não é por acaso. Foi Zé que mostrou o trabalho do baiano ao dono do Joia Moderna.
“Zé Manoel estava lançando o Delírio de um Romance a Céu Aberto pelo Joia Moderna e apresentou A Lida dos Anos ao Zé Pedro. Aí rolou o convite”, conta Tatau.
Melodias enluaradas
Cantor de voz suave, Tatau parece conseguir revirar o baú da bossa nova, gênero que se acreditava estagnado, e de lá voltar com pérolas autorais noturnas, encharcadas de luar.
Suas composições se beneficiam muito também da produção personalista e econômica de Luisão, que emoldura suas melodias com mínimas intervenções eletrônicas, sopros, guitarras.
“Esse foi um dos motivos da escolha de Luisão para produzir. Acompanho de perto e gosto do trabalho dele, seja como produtor, arranjador ou músico. No fundo eu sabia que ele levaria minha música à sonoridade desejada, uma quase ousadia comedida”, afirma.
No álbum, dez canções de Tatau compostas em diferentes épocas e com diferentes parceiros. “Buscamos canções que representassem a minha obra. Uma panorâmica da minha vida”, conta o músico.
Antonio Carlos Tatau, foto Flávia Almeida
“Tem desde Nas Águas de Outro Amor, feita no comecinho da década de 1970 com Théa Lúcia, até a mais nova, Um Bolero a Mais, com letra de Ronaldo Bastos e composta quando eu já estava gravando o disco, passando por Canção pra João, feita em 1975/76 com Euvaldo Macedo Filho e Marcos Roriz, Um e Outro, de 2015, com Mateus Borba. E mais seis canções de diferentes épocas com meu parceiro mais constante, o grande poeta Expedito Almeida”, enumera.
Para dar um brilho a mais, Luisão ainda requisitou o auxílio de alguns amigos, músicos de primeira linha: Gustavo Ruiz (Tulipa, guitarra) Régis Damasceno (Cidadão Instigado, baixo), Mauro Tahin (bateria), Sebastian Notini (percussão), Morotó Slim (ex-Retrofoguetes, guitarra), Joatan Nascimento (trompete e flugel), Josely Saldanha (trompa), Lais Tavares, Fernanda Monteiro (cellos), Jhonantan (viola), Gilherme teixeira e Priscila Magalhães (violinos).
“Foi muito bom (ter esses músicos todos nas gravações), sobretudo pela forma carinhosa como me receberam. Me sinto privilegiado”, agradece.
Com formação em administração de empresas, Tatau teve uma atuação tímida na música antes dessa estreia, tendo ganhado o V Festival São-Franciscano da Canção nos anos 1970 e uma faixa gravada pelo sambista (e tio) Ederaldo Gentil: Peleja do Bem, no LP Pequenino (1976).
Feliz com os resultados do trabalho, Tatau parece ainda estar tomando pé da situação: “Tem aparecido muitos convites que tem me deixado surpreso”, confessa.
“Essa coisa de internet realmente nos leva a lugares que jamais imaginei. Que se concretizem e surjam outros. Há muito o que ser cantado. Só começamos”, promete.
Antonio Carlos Tatau / Show de lançamento do disco A lida dos Anos / Participação e abertura: Zé Manoel (PE) / HOJE, 20h30 / Teatro do SESI (Rio Vermelho) / R$ 40, R$ 20 A lida dos anos / Antonio Carlos Tatau / Produzido e arranjado por Luisão Pereira / Joia Moderna / R$ 25
Paredes de guitarras, peso grunge: Game Over Riverside volta com novo EP matador
Game Over Riverside, foto Fernando Fernandes
De volta à atividade no cenário local desde 2015, a Game Over Riverside é uma banda a se acompanhar com interesse – caso o interesse seja rock sujo e sem frescura, mais para anos 1990 (na sonoridade e no espírito), do que 2010.
Depois de um bom EP de seis faixas autointitulado e lançado há um ano, a GOR volta ao front com Empty, uma espécie de segunda parte daquele trabalho.
Por enquanto, só está liberado para audição o single Me and My Band (ouve aí embaixo!). O EP completo sai em setembro.
Mas o colunista já ouviu tudo e pode garantir: são seis faixas com paredes de guitarras, riffs crocantes, levadas grunge / pós-punk / rock alternativo de lavar a alma de todos que não aguentam mais tropicalismo de boteco de universitário millenial.
“Quando fizemos o primeiro EP, tínhamos repertório para um disco cheio. Por uma questão de formato e, principalmente, de orçamento, decidimos gravar somente seis, rodar o quanto fosse possível com ele e voltar ao estúdio o quanto antes para gravarmos as demais. Sabíamos que era importante estar no feeling do nosso debut e dos nossos shows para entramos novamente no estúdio e registrarmos o segundo EP. O final de 2016 chegou, aproveitamos essa verve e demos início a construção de Empty”, conta o baterista Léo Cima.
"(Ter voltado com a banda) Foi muito bom, melhor até do que esperávamos. O nosso retorno em 2015 foi bastante tímido, estávamos em fase de readaptação da nossa formação após a saída do nosso antigo baixista, com André Gamalho mudando de instrumento, assumindo o baixo, e Sérgio Moraes ficando com a terceira guitarra. Na época preferimos manter a cautela sobre as atividades da banda por conta das nossas rotinas pessoais e por sabermos que o cenário roqueiro daqui não era mais o mesmo de dez anos atrás. Isso fez com que nos organizássemos melhor e aos poucos voltarmos a ganhar espaço no cenário local. 2016 foi um ano mais movimentado, com bastante apresentações e lançamento do EP de estreia, que consequentemente nos levou e novas amizades e a boa receptividade do público. 2017 chegou com a gente aparecendo de maneira mais pontual em shows, pois o disco novo se tornou prioridade", relata Léo.
Ouvindo ambos os EPs da GOR, é quase impossível não traçar um paralelo com o álbum de estreia (lançado há pouco), de outra banda local de veteranos da cena, Rosa Idiota. Ambos trazem um som de rock alternativo / HC bastante similar - e isto é um elogio.
"É uma boa coincidência! Não fazemos parte do mesmo ciclo social, mas tive a oportunidade de conhecer o Marcelo Adam (vocalista e guitarrista) e bater um papo com ele, o Rodrigo Gagliano (baterista) já conheço há um bom tempo e ambos tem trabalhos para além da Rosa Idiota. O Marcelo com a Aphorism e o Rodrigo com a Ivan Motosserra (e tantas outras bandas de sua carreira), todas com propostas diferentes e diversas entre si, o que abre um bom leque de possibilidades e conexões. Creio que a similaridade dos sons talvez venha daí, do fato de escutarmos bastantes grupos e artistas! O programa Lado B da MTV ajudou a formar o d.n.a musical da G.O.R. e nele tínhamos acesso a uma quantidade imensa de bandas como a Hüsker Dü, por exemplo, mesmo ela não sendo uma influência direta para a gente. Mas tudo chegava até nós, consumíamos aquelas músicas com uma atenção quase que religiosa, ficávamos instigados e tínhamos a curiosidade de fuçar tantos outros grupos na web (uma vez que a internet havia acabado de chegar às nossas vidas e se apresentado como uma fonte inesgotável para a pesquisa musical). Processávamos isso a nossa maneira, o que acabou nos guiando para o som que fazemos", observa Léo.
Demência via Chadler
GOR ao vivo, foto do Facebook da banda
“Dementes como toda criança da Cidade Baixa que cresceu respirando a fumaça suja da fábrica Chadler”, segundo Rodrigo Sputter Chagas (The Honkers), Leo, André Gamalho (baixo), Leko Miranda, John-John Oliveira (guitarras) e Sérgio Moraes (vocal e guitarra base), capricharam ao trabalhar no estúdio para deixar Empty ainda mais matador do que o EP de 2016.
“As composições ganharam mais unidade. Passamos mais tempo no estúdio e o período de shows que precedeu as gravações foi significativo para as músicas tomarem uma forma mais robusta”, afirma Leo.
“Eu diria que as composições ganharam mais unidade aqui nesse novo trabalho. Passamos mais tempo dentro do estúdio e o período de apresentações que precedeu as gravações foi significativo para as músicas tomarem uma forma mais robusta. Houve um acréscimo natural de novos arranjos nas canções, o que já é um reflexo da mistura desses shows com nossas novas influências. A sequência de faixas foi mais bem pensada, com isso, o EP ficou mais pesado, de certa maneira mais sombrio até, porém, sem que perdêssemos o bom humor. Trabalhamos melhor o uso das três guitarras e em algumas músicas utilizamos somente duas, incluímos backing vocals femininos em certos momentos (cortesia da cantora Suzi Almeida) e experimentamos recursos de estúdio para criar um discreto efeito de textura. Pudemos raciocinar melhor todas as composições ao lado do produtor André Araujo, que novamente as entendeu muito bem e fez um excelente trabalho, dando mais unidade ao trabalho”, conta.
Agora senta que lá vem história: como sabemos, o rock meio anda sem moral com a meninada. Culpa do rock mesmo, de roqueiros velhos reacionários como Lobão e Roger ou da meninada que tem uma visão superficial do próprio rock,comprando os estereótipos vendidos pela mídia?
"Creio que essa seja uma situação presente por toda a cena brasileira, é claro que uma ou outra se destaca de maneira positiva, mas não é algo exclusivo do cenário baiano. Essa é uma condição complicada e curiosa ao mesmo tempo. Porque mesmo havendo essa baixa de popularidade, em paralelo se tem produzido muito dentro do rock da Bahia, de maneira diversa e qualitativa. Estamos em um momento em que várias bandas / artistas têm lançado trabalhos interessantíssimos e proporcionado ótimas performances em seus shows. Há um esforço grande e louvável de produtores e coletivos em manter festivais e eventos frequentes só com grupos autorais, como os tradicionais Big Bands e o Quanto Vale o Show?, organizados pelo Rogério Bigbross, o Rockambo, que é tocado pelo Thiago Guimarães e que tem um forte perfil de intercâmbio cultural entre bandas da capital e do interior, o Incubadora Sonora, evento capitaneado pelo Irmão Carlos que visa dispor mais conhecimento para os conjuntos, o Festival Soterorock, meu, de Sérgio Moraes e de Kall Moraes, onde juntamos bandas novatas e veteranas em um mesmo som e o Feira Noise Festival, do Feira Coletivo Cultural, que possui a posição de ser um dos maiores festivais de rock do interior do estado, ao lado do Ruídos no Sertão, além do Sunday Rock, do Artur W, em Alagoinhas, e os eventos organizados pelo Coletivo Camaçari Rock, que fizeram suas primeiras investidas nesse ano. Isso para ficar só em alguns. Não há falta de divulgação do gênero por aqui, existem os canais no youtube do Sanção Maia, o Cafeína, no qual ele apresenta o Bahia do Rock, e o Vandex TV, do Evandro Botti, com apresentações ao vivo, tem os textos do Portal Soterorock, os podcasts Rota Alternativa, de Kall Moraes, Fora da Agulha, da Beatriz Cerqueira e o Alternativa Ativa do Magno Costa e da Leinne Portugal, ambos veiculados na programação da Mutante Radio, e tem também o seu espaço aqui na sua coluna Coletânea e no Rock Loko. É fato que há um empenho em prol do rock aqui na Bahia, mas quem comete o erro? É a banda que não busca propagar da melhor maneira a sua música, ou até mesmo se articular adequadamente, esperando ser descoberta ou que as coisas aconteçam do nada? É o comodismo de preferir formar uma banda de covers? É o encerramento das atividades de casas de shows voltadas para grupos de rock? É dificuldade em ter acesso às pautas desses lugares? É o público que não vai aos shows e que é pouco interessado em buscar novos sons, que espera tudo na mão e que se contenta somente com o que o seu serviço de streaming de música indica para ele ouvir só com quinze segundos do refrão? É porque não temos tido espaço na televisão e no radio? Na verdade é bem complicado apontar um erro central, diante de tantos fatores existentes. Aí ainda temos que lidar com declarações como a do Giovani Cidreira, que afirmou que o gênero se acabou (mais uma de que o rock morreu) e de que ele é conservador (essa aí foi nova), tudo isso dito com um argumento raso e com referências superficiais, típico de quem não presta atenção no que está acontecendo no cenário musical local como um todo. Mas o mais engraçado disso é que ele se cercou de bastante gente do rock para dar corpo ao seu novo trabalho, como o Paulo Diniz, que foi frontman da Weise e que gravou um dos melhores discos de rock da Bahia na última década (Aquele que superou o fim dos tempos), e com quem fez parceria em algumas de suas novas composições e com o Junix Costa, talentosíssimo e versátil músico, com passagens pela banda do Cirque du Soleil e a Subaquático, e que gravou os baixos do seu álbum. É incrível como o rock também pode ser a solução e a salvação para muita gente que não é roqueira, desde aquele novo cantor que se desgarrou da sua boyband e partiu para a carreira solo, até o novo hipster hypado do momento, não é? Definitivamente, nós da G.O.R. não acreditamos que o gênero esteja esgotado ou que seja irrelevante, muito pelo contrário, o rock ainda tem muito para oferecer!", discursa Léo.
Fundada em 2005, a GOR parou três anos depois e só retornou em 2015. Bem recepcionados pela cena roqueira local, os meninos andaram meio recolhidos nos últimos meses, para trabalhar no estúdio. Mas agora chegou a hora de meter o pé na porta das casas de show de novo.
“Pretendemos retomar uma rotina mais frequente de shows daqui para adiante. Valeu a pena ter voltado, para nós a música é diversão e gostamos de ter isso”, conclui Leo.
NUETAS
Circo e Hot Coffees
Circo Lltoral e The Hot Coffees Band fazem a Noite NHL neste mês de comemorações da session Quanto Vale o Show?. Cole às 19 horas no Dubliner’s e pague quanto quiser.
Antiporcos no Shopping
A banda Antiporcos faz show de lançamento do seu segundo EP, Seguimos no Front, com participações de Gigito e DJ Avast. Amanhã, na Coreto Store (Shopping Bela Vista), 19 horas, gratuito.
Sax suíço no ICBA
Essa é chique: o saxofonista suíço Hans Koch se apresenta no Teatro do ICBA (Goethe Institut) com os músicos Thomas Rohrer (rabeca, sax soprano) e Antonio Panda Gianfratti (percussão). Cortesia Low Fi Processos Criativos. Sábado, 20 horas, R$ 30 e R$ 15.
Surgida em 2013 em Salvador, a Van der Vous foi pioneira na onda de bandas locais pós-piração los-hermânica, já namorando com a psicodelia contemporânea de bandas como Tame Impala e Temples.
Após um elogiado primeiro álbum, La Fuga (2014), o band leader Vitor Vous Matos se mudou para Buenos Aires.
Na mala, levou o parcialmente gravado Espectro Solar. Lá, concluiu o trabalho e o lançou.
Com isso, a Van der Vous é agora, a exemplo do Tame Impala de Kevin Parker, um projeto solo.
“Estou de forma definitiva por aqui”, conta Vitor.
“Para produção de discos, por enquanto, sim, não é algo definitivo (a permanência) dos integrantes da banda, (então) encaro a VdV mais como um projeto solo que conta com músicos (quando ao vivo) e participações em gravações”, acrescenta.
Na capital argentina, Vitor tem garantido sua sobrevivência como muitos outros músicos mundo afora: tocando nas ruas e estações de metrô – o famoso busking.
“Tive foco na construção e lançamento do novo disco e por agora trabalho como artista de rua no metrô de Buenos Aires, o que me permite viver de música e desenvolver improvisos e experiência para o próximo álbum”, conta.
“Sobre shows ainda não tive tempo para montar uma banda. Pretendo, antes disso, prensar o novo disco”, diz.
Psicodélico e objetivo
Ligeiro, Espectro Solar enfeixa dez faixas em menos de 24 minutos, o que facilita sua audição em tempos de pressa smartphônica – sem prejuízo para a estética psicodélica buscada pelo músico.
“O novo álbum é uma exteriorização pessoal de minha vida, colada nas canções. Não há foco estético, e sim, o desenvolvimento no atual momento”, despista Vitor.
A má notícia é que, tão cedo, não se verá shows da Van der Vous por aqui. “Por enquanto não há oportunidades (para a VdV) aí no Brasil. Por pouco iríamos tocar em São Paulo e realizar uma turnê sul-americana pela SecultBA, mas infelizmente o projeto não passou por falta de recursos”, diz.
“Aqui em Buenos Aires estou, aos poucos, conhecendo a cena e os festivais que ocorrem por aqui mas, por enquanto, meu foco principal está no desenvolvimento e trabalho como músico. Apesar disso, a resposta positiva com relação ao novo álbum me deixa tranquilo – estou surpreso com as vendas no Bandcamp – e a divulgação diária no metrô está dando resultado. O disco completo está disponível no site oficial: www.vandervous.com. Para quem puder ajudar na prensagem do novo álbum, acesse: www.vandervous.bandcamp.com”, conclui. www.vandervous.com
NUETAS
The Honkers show
Não vai sobrar um assento seco em todo o auditório: os fabulosos The Honkers recebem uma pá de convidados supimpas em show comemorativo dos três anos da session Quanto Vale o Show?. Hoje, 19 horas, Dubliner’s, pague quanto puder.
Laia e Levante!
As bandas Laia Gaiatta e Levante! se apresentam sexta-feira na Casa Preta (Rua Areal de Cima, 40, Dois de Julho). 19 horas, R$ 15 (compartilhe post do evento e pague R$ 10 na lista amiga).
Bagunça no sábado
Flerte Flamingo, Bagum, Jadsa Castro e Djalma se apresentam na 3º edição do Bagunça. Sábado, 20 horas, no Clube Bahnhof (antigo Idearium). R$ 10 (lista), R$ 20.
Neila, Irmão, Dyou
Integrante do coletivo Som das Binha, Neila Kadhí se apresenta com MC Dyou e Irmão Carlos em nova edição da Incubadora Sonora neste sábado, no Portela Café. Às 22 horas, só R$ 5.
Clássico do rock e da MPB, Loki?, de Arnaldo Baptista, volta em vinil 180 gramas via Polysom. Despercebida na época, obra ganhou status de cult graças à genialidade insana do ex-Mutantes
Arnaldo em 2017, divulgando nova mostra de quadros. Ft Henrique Queiroga
Ao contrario do que pensam muitos empresários e produtores, a música popular pode (e deve) tratar de outros temas além das dores da traição amorosa e demais banalidades correlatas. Os males da alma, o isolamento e, digamos, os discos voadores já inspiraram grandes artistas e criarem obras referenciais, eternas.
No Brasil, um álbum movido a tristeza e loucura incipiente é há mais de 40 anos reverenciado como um dos melhores do rock nacional – e da MPB mesmo: Loki? (1974), do ex-Mutante Arnaldo Baptista, que agora volta às lojas no formato perfeito para ouvi-lo em toda a sua grandeza: em LP de vinil 180 gramas.
Gravado logo após sua saída dos Mutantes e do seu divórcio de Rita Lee, Loki? é o desabafo, o grito de dor de um homem extremamente talentoso e sensível em um momento especialmente frágil: isolado em um sítio na Serra da Cantareira (SP), entre o abuso do LSD e a sanidade que começava a lhe abandonar, um processo de degradação que culminou em uma tentativa de suicídio em 31 de dezembro de 1981.
Felizmente, Arnaldo sobreviveu e – mesmo tendo de viver com as sequelas daquele período trágico – está hoje feliz, vendo sua obra (solo e com os Mutantes) ser cada vez mais aclamada como uma das mais fundamentais da psicodelia planetária.
Não a toa, nomes como Kurt Cobain, Sean Lennon, Devendra Banhart, Kevin Parker (Tame Impala) e a revista inglesa Mojo, entre outros, já rasgaram declarações de amor ao eterno Mutante.
“(Estou) Adorando a vida, achando as coisas que acontecem de repente maravilhosas, que nem esse lançamento”, diz Arnaldo ao telefone.
Conhecido pelas obsessões audiófilas (guitarras, só marca Gibson e amplificadores, só valvulados), Arnaldo aprovou com louvor a qualidade sonora do vinilzão 180 gramas de Loki?: “Com a profundidade maior dos sulcos no vinil de 180 gramas, a agulha penetra mais, então dá um grave mais poderoso”, justifica.
“Tenho a impressão de que Loki? foi o (meu trabalho) mais marcante, foi feito numa época da minha vida que eu precisava mostrar isso. Estava sem gravadora, sem conjunto, sem nada, Então foi uma coisa importante na minha vida e na minha carreira”, afirma. Power trio sem guitarra
Arnaldo no sítio da Cantareira, 197? Foto Grace Lagoa
Ainda que seja considerado “de rock”, Loki? é – como os melhores discos de rock, na verdade – uma obra que transcende os limites do gênero, tornando-o quase indefinível.
A começar pelo fato de ser um disco que, apesar de ser considerado de rock, prescinde do seu instrumento mais simbólico: a guitarra. Quase todas as músicas apresentam apenas piano, baixo e bateria.
“Eu meio que me desapercebi disso, por que o disco (na época do lançamento) foi muito mal divulgado. O André Midani (então diretor da gravadora Philips) não gostava de mim, eu acho, aí não divulgou o disco. Então o pessoal não ficou sabendo”, diz Arnaldo.
Se o próprio Arnaldo nem tchuns para esse “mero detalhe”, o mesmo não se pode dizer dos seus parceiros Dinho Leme (bateria) e Liminha (baixo), colegas Mutantes que gravaram Loki? com ele.
“Quando comecei a gravar com o Dinho e o Liminha não precisou de muito ensaio. Foi tudo no improviso, e o Liminha não queria assim, queria que fosse igual ao Yes: ‘Ah, não quero nada disso, tá parecendo Sérgio Mendes’! Aí eu disse ‘vai ficar assim mesmo’, e foi assim a gravação”, resume.
"Uma coisa que é importante na minha carreira, no sentido de experimentar sem guitarra, com o piano fazendo que nem no Oscar Peterson (Trio), no Zimbo Trio, uma parte total sem guitarra e no fim uma música só de guitarra (É Fácil)", acrescenta.
O resultado é uma coleção de dez faixas em 34 minutos que valem por um mergulho no mar de angústia que afogava o músico na época.
O que separa gênios como Arnaldo dos meros mortais é que, mesmo agonizante, o mergulho é pleno de arte: pianos que vão do clássico ao honky-tonky à bossa nova na mesma faixa (Será Que Eu Vou Virar Bolor?), teclados Moog emoldurando a mais sublime das dores (Desculpe), samba psicodélico com arranjo de Rogério Duprat (Cê Tá Pensando Que Eu Sou Loki?), delírios molhados adolescentes (Vou Me Afundar na Lingerie) e por aí vai. Um monumento.
Outro fator interessante do álbum é sua capa, onde o músico aparece apoiado pelos braços sobre um cenário espacial. "Eu tinha uma casa na Cantareira e a gente queria fazer uma coisa quase como se fosse num templo, né? Na foto, eu tô de costas para o céu na sacada da casa. Na contracapa eu tô deitado no chão com um anjo atrás de mim, uma estátua. Então ficou bonito", diz o músico.
Em 2013, Arnaldo disse a este jornalista que estava gravando um novo álbum para o qual já tinha até título: Esphera. Infelizmente, este ainda não viu a luz do dia, quatro anos depois.
"Ainda não tenho (previsão de lançamento). Quando me perguntam isso, eu sempre falo: 'a Lucinha é que sabe'. E ela fala: 'Deus é que manda'. É que ainda não tem nada certo, mas vai ser importante para o que vem acontecendo na música em relação a ele", afirma.
E finalmente: Arnaldo continua não gostando do Alice Cooper (como ele canta em Será Que Vou Virar Bolor?)? "Eu não gostava era de um caso que a Rita (Lee) tinha, que era com um roadie do Alice Cooper (quando este se apresentou no Brasil em 1974). Então falei isso para ser contra ele, até por que não gostava dele mesmo, por que matava animais no palco", justifica.
(Segundo o próprio Alice Cooper em entrevistas, pessoas na plateia jogaram uma galinha no palco durante um show. Ele jogou a galinha de volta, que acabou prontamente destroçada pela turba ensandecida).
Com o relançamento, Arnaldo, que hoje mora em um sítio em Juiz de Fora (MG), tem corrido algumas capitais fazendo shows.
“Fiz três datas agora em Brasília. Tá pintando uma leva de shows que vai satisfazer meu público. Aí em Salvador ainda não sei, mas se pintar alguém que queira comprar, eu vou e faço”, afirma. Em outubro, ele se apresenta em Recife – dica pros Loki locais.
Loki? / Arnaldo Baptista / Polysom - Universal Music / Preço sugerido: R$ 89,90
Rosa Idiota (foto: Fernando Gomes): episódio on line nesta quinta-feira
Editoria de música da conceituada revista gringa / site de notícias Vice, o Noisey, em sua edição brasileira, abriu as portas para as bandas do hardcore baiano ao abrigar a série documental Cena Morta.
Com onze episódios de dez minutos cada, o primeiro já foi ao ar, com a banda Aphorism.
Quinta-feira entra on line o segundo, com a Rosa Idiota (que lançou um ótimo álbum de estreia, ouçam no BandCamp).
A iniciativa – 100 % do it yourself, sem grana de governo, sem patrocinador etc – é de alguns abnegados militantes do HC local: Fabiano Passos, Rodrigo Gagliano (Ivan Motosserra), Mari Martins e Eduardo Dudu Lima (TomanacaraHC).
“A série, inicialmente, foi um projeto encabeçado por Fabiano Passos (Estopim Records) aliado com o pessoal do Tomanacara (Eu, Rodrigo e Mariana) para fazer um documentário sobre a cena local. Já assistimos diversos documentários como Botinada (2006) e American Hardcore (2006), falando das cenas de determinados locais. Mas Salvador não tinha o seu, e já passava da hora de ter. Problema é que descobri que fazer um documentário não é tão simples, cortar falas é horrível e se fossemos lançar naipe documentário teríamos de fazer uma pesquisa histórica maior, assim como reduzir o tamanho das falas para não ficar maçante”, afirma Dudu.
“Com a websérie isso não rola, é uma parada mais tranquila de se ver. E pelo que temos visto da recepção, geral já está esperando o segundo episódio”, acrescenta.
No vídeo da Aphorism vemos a banda entrevistada por Fabiano e ao vivo no estúdio – duas pauladas que não é brincadeira, não.
“Desde a minha adolescência eu estou envolvido ativamente com o hardcore, sendo através da Estopim, bandas ou coletivos que já fiz parte. Nos últimos anos passei a me dedicar muito ao audiovisual, mas foram poucas as vezes que uni as duas coisas. Percebi que existia muito pouco material de vídeos das bandas da cena hardcore aqui da Bahia na internet e que podíamos mudar isso, já que no nosso meio havia outras pessoas que trabalhavam com audiovisual. Fiz a proposta pra galera do Tomanacara, que aceitaram prontamente. Sempre pensei no projeto como um scene report, apresentando o que estava sendo feito e, de certa forma, esquecendo o caminho que foi trilhado até aqui. Foi a forma que achei para não ficar nostálgico. A nostalgia algumas vezes congela as atitudes das pessoas, que passam só a reverenciar o passado ao invés de usa-lo como uma referência. A idéia era mostrar as bandas que estão ativas, tocando, produzindo, algumas delas possuem membros ativos na cena a muito tempo, mas outras apresentam uma nova galera que está ai, fazendo as coisas acontecerem. O projeto foi criado para ser um longa metragem, mas no processo de edição percebemos que teríamos que retirar muitas falas boas, por causa do limite de tempo do formato, por isso resolvemos lançar como web-série”, acredita Fabiano.
Sim, ainda estamos nessa
E esse é o ponto central de Cena Morta: partir de um título auto-irônico para mostrar uma cena vivíssima, ativa, diversa e que não pede nem espera nada de ninguém.
“Sempre se ouve que ‘a cena morreu’, bom era no início da década de 00, ou ainda a velha pergunta: ‘Você ainda está nessa?’. Na real, a cena não está morta, você que não faz mais parte dela”, afirma Dudu.
“Tranquilo, pra algumas pessoas é só uma fase, para se recordar futuramente. Pra outros ela continua aí, criando laços, lançando bandas fodas, materiais fodas e ensinando pra muita gente que o ‘Faça Você Mesmo’ funciona. E uma prova disso é esta websérie. Então, nada mais justo que homenagear essas pessoas, que dizem que a cena está morta, com uma série muito bem produzida, com recursos próprios, coletividade e disposição”, acrescenta.
"(O título Cena Morta) É uma ironia sim, e essa ironia é reforçada pelo fato da série retratar tudo o que está sendo feito agora, sem nostalgia. Se a cena tá morta, então somos zumbis e eu não acredito em zumbis", arremata Fabiano.
O critério de seleção das bandas foi muito simples: estarem ativas. "Basicamente bandas que estavam bastante ativas no momento das gravações. Daí, tentamos pegar representantes de vários lados da cidade, região metropolitana e interior. Na real, bandas que acabam transitando nessa região Capital-Região Metropolitana-Interior", conta Dudu.
"Tivemos trabalho para escolher as 11 bandas que fazem parte do projeto, porque existiam várias outras que mereciam estar ali, mas tínhamos que fazer um recorte dessa cena, e talvez futuramente abranger outras bandas, de outras cidades do estado, um pouco mais distantes de Salvador. O critério foram bandas que estavam tocando, pegamos cartazes de eventos produzidos nos últimos meses e fomos pegando as bandas que estavam na correria", afirma Fabiano.
Mas porque, já que que estavam com a mão na massa, não documentar a cena rock local como um todo? "Dá trabalho... Mas na boa, o rock como um todo tem muito espaço. Existem casas de shows rockers, as coisas são mais 'acessíveis'. Provavelmente alguém vai fazer algum material sobre a cena rocker local, em algum dia vai. Sobre o hardcore, se não fossemos nós, ninguém faria", afirma Dudu.
"A cena rocker é recheada de pessoas talentosas nas artes em geral e no audiovisual também, outra pessoa pode produzir isso. Existem outros programas de música alternativa na Bahia que já fazem essa documentação, a exemplo do Lá Em Casa Sessions de Glauco Neves. O hardcore é um estilo bem específico, que não possui muita inserção nesse tipo de programa, por isso resolvemos que a gente mesmo tinha que criar algo nosso, com nossa cara e influências. Lembrando também que Joaquim Fauro está fazendo um ótimo trabalho filmando shows de música mais extrema que acontecem na cidade e está realizando um documentário sobre a cena punk local. Esperamos que o Cena Morta seja um motivador para outros projetos do tipo surjam", pontua Fabiano.
E o lance com o Noisey, como rolou?
"O jornalista que publicou a matéria é soteropolitano, Fernando Gomes, e sempre esteve envolvido no hardcore, já teve uma banda bem legal, a Veredicto, já registrou muito show através de suas lentes. Rolou e porra, foi uma divulgação ótima! Foi um excelente ponta pé inicial, nem imaginava que teríamos uma estreia boa assim", comemora Dudu.
“Fernando Gomes, um velho amigo e parceiro da cena, escreve para o site do Noisey/Vice e se ofereceu para conseguir o lançamento por lá, aceitamos logo de cara por nos identificarmos com o material produzido pelo portal. Além disso Fernando, que é um fotografo com bastante experiência em fotos de música e skate, fez o Still da web-série”, conclui Fabiano.
Bruna Linzmeyer é Luna Madeira, interesse romântico do protagonista
Baseado no livro Um Pai de Cinema (Ed. Record), do chileno Antonio Skármeta, O Filme da Minha Vida, que estreia hoje em todo o Brasil, é o terceiro e melhor filme dirigido por Selton Mello.
Não que seja uma obra-prima da sétima arte ou que traga grandes inovações. Nada disso.
Assim como outra película baseado em obra skarmetiana, O Carteiro e o Poeta (1994), O Filme da Minha Vida seduz pela via do coração, ao combinar um texto lírico com uma fotografia deslumbrante e atuações sensíveis – e felizmente, sem exageros.
A trama, de simplicidade espartana, combina dois temas clássicos: o rito de passagem para a vida adulta e a busca do filho pelo pai.
Ambientada em uma cidade não definida na serra gaúcha no início dos anos 1960, tudo começa com o retorno do jovem Tony Terranova (Johnny Massaro) ao lar, após concluir os estudos na cidade grande.
Ao saltar do trem, descobre que seu pai (o ator francês Vincent Cassel) vai embora naquele mesmo instante, de volta para seu país, a França.
Daí em diante, acompanhamos Tony restabelecendo seus contatos com a mãe (Ondina Clais), Paco (Selton Mello), o melhor amigo do seu pai e com as beldades locais, as irmãs Madeira: Luna (Bruna Linzmeyer) e Petra (Beatriz Arantes), entre outras figuras.
Singeleza e metalinguagem
A medida que Tony vai se desenvolvendo na tela, vamos descobrindo mais sobre sua vida, seus relacionamentos e, claro, seu pai. Contar mais estragaria o espetáculo de quem vai assistir.
O que é importante dizer é que, de forma muito singela, sem apelar para qualquer tipo de cinismo, vulgaridade, violência ou efeito especial ostensivo, Selton Mello consegue plasmar na tela (recebam, rebanho de sacanas, um 'plasmar na tela' direto na caixa dos catarros!) um senso de maravilhamento pouco visto no cinema hoje em dia.
De quebra, ainda faz um belo exercício de metalinguagem ao levar o protagonista ao cinema – literalmente, na pele do seu próprio personagem – para assistir um filme clássico e utiliza-lo para espelhar seu próprio filme. O Filme da Minha Vida / Dir.: Selton Mello / Com Johnny Massaro, Vincent Cassel, Bruna Linzmeyer, Beatriz Arantes, Ondina Clais, Rolando Boldrim / 14 anos
ENTREVISTA: SELTON MELLO
Entrevista feita em dupla com o jornalista e crítico de cinema João Paulo Barreto, que aliás, teve a paciência de transcrever tudo e a gentileza de me enviar o texto todo. Agradecido.
Selton e e o escritor Antonio Skármeta, que faz uma ponta no filme
Apesar de ser um filme de rito de passagem, ele também aborda muito a relação pai e filho. O tema lhe é caro?
Selton Mello: Eu tenho uma relação com meus pais muito boa. Eu e meu irmão. Eu cresci em um núcleo afetivo bem fechado e muito carinhoso. Então, esse é um assunto que eu gosto. E se você quer saber, é claro que é uma história de pai e filho, mas é também um filme muito sobre a mãe. E essa mãe... Eu gosto dessa coisa, já misturando os assuntos de elenco, pô, eu tinha o Johnny Massaro que é um expoente, um talento absurdo da geração dele, um menino realmente diferenciado, eu tinha o Vincent Cassel, um astro internacional, por que diabos eu ia botar uma atriz conhecida fazendo a mãe, entendeu? Aí eu puxei a Ondina Clais, que é uma atriz desconhecida do grande público, mas ela tem uma formação muito sólida no teatro. Ela trabalhou anos com o Antunes Filho, e também com o Bob Wilson, depois. Teatro, assim, na veia! E ela fez uma participaçãozinha no Sessão de Terapia. E eu gostei demais dela. E é uma idade que não tem muito assim, digamos... (pausa). É difícil você lançar alguém com quarenta e poucos anos. Aí eu pensei: ‘Poxa, eu quero botar a Ondina nessa. Fechar minha família com um rosto desconhecido’. Então, acho que é sobre esse trio
Já que você falou nela, sendo atriz de teatro, você teve que fazer algum ajuste de registro na voz? Porque no teatro, você emposta a voz. O cinema é algo mais intimo. Você teve que fazer esses ajustes?
Ondina Clais, uma mãe de cinema maturada no teatro
SM: Meu trabalho é muito meticuloso como diretor. E, então esse trabalho não foi só com ela. Foi com o (Rolando) Boldrin, com o próprio Johnny. Eu trabalho de forma muito minuciosa. Às vezes é algo assim: ‘meio sorriso a menos’. ‘Sorrindo’! ‘Sem dente’! É nesse nível. ‘Não, não é sorriso aberto’ (faz uma cara alegre). ‘É um’ (faz uma cara amistosa). ‘É só uma onda boa. Deixa eu ver no teu olho’. É assim, milimétrico. Então, ela rapidamente se adaptou ali. Acho que porque ela tinha uma disciplina muito grande lá com o Antunes, no método dele. O meu era outro, mas é, tinha disciplina.
O filme remete muito a um sentimento nostálgico. Tem um vídeo seu se despedindo do Boldrin, no último dia de gravação dele. É perceptível sua voz embargada. Você falou da relação com teu pai, que vocês assistiam ao programa do Boldrin juntos. Essa atmosfera nostálgica do filme foi sempre sua intenção?
SM: Foi. E isso, na verdade, de onde vem esse tom, é do próprio livro. O livro, quando eu li, eu falei: ‘puxa, tá ai o que eu gosto’. É um tom nostálgico, lírico, onde tem espaço para imaginação. É também divertido, com passagens divertidas. Uma história simples, clássica: início, meio e fim. Para todos os públicos, mas com viradas interessantes, com espaço para uma engenharia estética e emocional grande. Eu me cerquei de profissionais incríveis. Walter Carvalho (diretor de fotografia)! Foi um retorno depois do (filme) Lavoura Arcaica. Também emocional, também de pai e filho. Também é uma espécie de ‘pai de cinema’, o Waltinho. Então, assim, retomar com ele, depois de tanto tempo. E o som, e a luz do sul. Tudo era material. O trem, a moto, a bicicleta, a casa da luz vermelha...
E no final, inclusive, você o dedica aos seus pais.
SM: Na verdade, tudo eu dedico aos meus pais. Eles foram fundamentais na minha vida. Eles fizeram movimentos muito grandes por minha causa. E eu te digo o principal deles. Quando eu tinha 11 anos de idade, eu já era ator. E estava na minha segunda novela da Bandeirantes. E a Globo me chamou. Era a chance de ir pra Globo. Para a gente era assim, que nem hoje se alguém me chamar para trabalhar com o De Niro. Aí eles disseram: ‘você quer?’ E eu falei: ‘Claro!’ Aí, meus pais, a gente morava em São Paulo, se mudaram pro Rio, com toda família. Pô, deixando amigos para trás, costumes para trás, tudo para trás, por causa de um menino de 11 anos. É muito bonito o que eles fizeram por mim. Eu fico imaginando eu pai, se eu faria isso pelo meu filho. Cada vez mais eu acho muito impressionante o que eles fizeram. Foi uma aposta que deu certo. Então, tudo eu retribuo a eles. E nesse filme eu quis deixar claro.
Selton, esta é sua terceira parceria com o Marcelo Vindicato no roteiro. Como essa dupla cresceu? Escrever em parceria é melhor para você?
Selton como Paco e Johnny Massaro como Tony Terranova
SM: Foi muito legal porque a gente foi aprendendo juntos como é que faz isso. O Marcelo era um amigo de teatro. Começamos, quer dizer, eu já estava na estrada, mas a gente se conheceu no tablado. Atores, juntos. Na mesma turma de teatro. Fã de cinema. A gente era os nerds do cinema ali. Sabia tudo de cinema e adorava os atores e tudo, os diretores. E aí o tempo passou e ele sempre foi um cara muito brilhante, muito inteligente. Aí eu o incentivei a escrever. E ele começou a escrever curtas, um programa que eu tinha, o Tarja Preta, a gente experimentava uma coisas, aí veio meu primeiro longa, Feliz Natal, depois O Palhaço. E ele foi ficando bom nisso. Foi ficando estudioso disso. Então, é muito legal que nesse terceiro, primeiro porque foi nova a coisa de a gente adaptar algo. Porque os dois primeiros foram originais. Isso foi interessante. E é legal identificar que ele virou um roteirista, um técnico, um cara estudioso. Um cara que, assim: “aqui é um ponto de virada. Aqui é a hora de fechar um ato. Aqui tem abrir o segundo e descortinar o terceiro.” Sabe, um cara que olha na estrutura do roteiro? E isso para mim é muito bom. Porque eu sou o lírico da dupla. Eu sou o que escreve uma cena, até porque eu vou dirigir, então, às vezes, sei lá, uma das cenas que eu amo nesse filme é quando o Tony literalmente voa. Viajando naquelas duas irmãs e ele está enxergando um troço que não está acontecendo. A rubrica daquela cena é: “Tony em transe olhando as irmãs.” Mas eu sabia como eu ia filmar aquilo. Então, esse espaço para a imaginação e para a sensibilidade, na filmagem, é muito legal na parceria com o Marcelo porque ele me ajuda a dar uma cama bem estruturada para poder ter a arroubos de lirismo ao longo das coisas.
Outra coisa interessante é a relação do filme com o próprio cinema, com cenas do (filme) Rio Vermelho (1948). As falas do John Wayne era para refletir o estado de espírito do personagem?
SM: No livro, o filme é outro. É outro Rio. É o Rio Bravo (Onde Começa o Inferno, 1959), com Dean Martin. Tentamos os direitos para esse, falaram que não tinha chance. Aí eu fui pesquisar outros filmes e achei Rio Vermelho. Porra, que filmaço. Melhor que o outro. Mais cinema. Aí fui atrás e rolou de liberarem os direitos. E, curiosamente, que eu acho que nada na vida é à toa, era pai e filho, mas ali o (ator) Montgomery Clift era um filho bastardo. Um menino que ele cria e depois trai o pai e tal. Então eu fiquei vendo o filme como louco para tentar achar ecos deles e usar no meu, ficava tentando achar rimas visuais. Por exemplo, o Montgomery Clift sobe em um cavalo, o Cassel sobe no trem. Algo espelhando. Fiquei esmiuçando aquele filme.
Eu ia te perguntar sobre essa cena, especificamente. Você falou agora a pouco do modo de direção exemplificando os sorrisos e ela é um enquadramento perfeito do que você quis dizer. Do Johnny tendo aquele sorriso. E ela se confunde com o lúdico, porque toca Carmen, e o som é diegético, ela está dentro daquela cena do filme.
SM: É verdade.
Então, você brinca com isso. Quando ele flutua, é o carimbo de que o filme é lúdico.
SM: Exatamente.
Então, você pode se deixar levar por isso. Houve essa intenção?
SM: Totalmente. Essa cena eu tinha um expectativa grande de filmar. Inclusive, ela demorou. Porque pela ordem de nosso cronograma, ela era, sei lá, quinta semana. Mas eu falava muito com o Waltinho que essa cena era um guia para o filme todo. Porque é como se fosse um filme que não tocasse o solo. Como se fosse um filme em suspensão. Como se fosse um grande sonho. O filme é filmado como um grande sonho. Poderia ser um grande sonho desse protagonista. Aliás, de repente pode ser que nada disso realmente aconteceu. A figura do Boldrin é uma figura mítica. Se bobear, vai que não tem um maquinista. Se bobear aquilo ele ta imaginando. Mas, assim, (pensativo). Nisso, quando tinha ali o neorealismo, e o Fellini falava assim: “Deus me livre da realidade, eu quero mais é sonho”, aí eu estou de braços dados com ele. Porque, assim, de realidade, a gente já está cheio. Inclusive, tempos duríssimos. Abre o jornal, e tudo que a gente vê são desgraças. Desigualdade, roubalheiras. Eu pensei: “não, sonhe! Pelo amor de Deus.” Uma das capacidades do cinema é fazer sonhar. Assim, você entrar no cinema e aquilo é um templo dos sonhadores. Você entrar ali é como sonhar acordado. Você está diante de uma tela e você esquece por um período o que está acontecendo ali fora, ou pelo menos espera-se que aquela obra tenha a capacidade de fazer você esquecer do que está do lado de fora. E entra em um mundo. Então, filmar é criar um mundo. É criar uma atmosfera. Então, os personagens possuem uma linguagem própria. Assim, a Luna fala coisas que uma menina da idade dela não falaria. Não importa. Eu não estou filmando a realidade. Eu estou filmando uma representação emocional de uma realidade que eu criei. De uma cidade fictícia ao sul do Brasil, mais ou menos nos anos 1960. Eu acho que essa foi a beleza de fazer esse trabalho. E é bonito. Porque quando você faz algo com essa força emocional, pula da tela e vai par ao público. O público recebe pela via afetiva, assim. É muito bonito, cara.
Eu queria te perguntar algo nessa linha. Tirando Feliz Natal, que é algo um pouco mais acido, O Palhaço, e esse filme agora, você parece rejeitar um certo cinismo que está meio que estabelecido hoje em dia. Você não gosta dessa linguagem? Não te interessa essa linguagem mais cínica, mais (estalando o dedo) fugaz?
SM: Eu acho que podem ser fases da vida, também. Assim, aí a vantagem de ser ator. Então, como ator, eu faço de tudo, inclusive muitas coisas cínicas. Mas como realizador, que aí é uma representação do meu espírito, do que eu penso da vida. Que garrafa é essa que eu estou jogando ao mar? Eu quero que o público sonhe. Que o público saia bem do cinema. Que pense nos seus pais. Eu já comecei ter depoimentos do tipo: “noss, esse filme é muito lindo. Lembrei de meu pai que morreu. E assistir esse filme foi uma loucura porque eu lembrei de coisas que eu gostaria de ter falado.” Isso mexe em lugares, assim, muito... E em uma estrutura clássica. Não é um filme cabeça. É um filme para todo mundo. É um filme com um potencial de comunicação. Que é outra coisa que me interessa. Essa via do meio. Ele não é um filme cabeça e não é claramente um blockbuster. É um filme que tenta ser um filme comercial refinado. Um filme com um apelo popular, sendo um biscoito fino. Sendo bem cuidado. É você oferecer ao público o melhor. Fotografia, trilha edição de arte, acabamento, é um presente bem embalado.
As arrebatadoras irmãs Madeira: Petra (Bia Arantes) e Luna (Bruna L.)
Uma outra coisa que me chamou atenção é a forma como as irmãs Madeira são fotografadas. A Bia Arantes surge parecendo uma diva dos anos 1940. Foi intencional, então?
SM: Foi. Eu filmei a Bia como se filma a Liz Taylor, a Rita Hayworth, Ava Gardner. O semblante dela é bem clássico. Ela tem mesmo a aura de estrela antiga. A Bruna já é mais a Shirley MacLaine. Os olhos dela chamam atenção na tela.
Sim. Ela tem um conjunto bem arrebatador.
SM: Exatamente. E aí... Eu acho (pensativo) que é filmar com... O protagonista, é ele quem conduz a história. Então, o diretor ele anda com os braços dados com o protagonista. Então, é como se eu filmasse esses personagens pelo ponto de vista dele. Sabe, aquilo é como ele vê as irmãs. Assim, a mãe e a falta que a mãe sente, é como provavelmente o Tony imagina que a mãe está se sentindo com a ausência do pai. Então, eu acho que isso.
O filme possui algo que é bem atraente que são os anos 1960. A gente não tem uma linha do tempo definida para essa década, mas algumas pistas são dadas, como a luta do Jofre, o rádio. E Do livro, vocês captaram muita coisa disso ou se foi mais algo seu?
SM: Veio muito do livro e tem muito de mim, também. Foi ótimo, pois o Skarmeta me deu total carta branca. Vocês não leram o livro, certo?
Não, não li.
Johnny Massaro é Tony Terranova, um jovem em busca do pai
SM: Então, eu te digo várias coisas que são do filme e não do livro. Por exemplo, no livro ele resolve o final todo junto com o Augusto Madeira. Eu falei: “não, não. Eu resolvo esse menino antes e o final é da família. Só.” Bicicleta e moto: é uma metáfora que eu criei. O maquinista. Tem uma cena que eu parei e pensei: “deixa eu pegar esse maquinista e colocar ele como uma figura mítica que costura o filme, que tudo viu, que sabe tudo”.
É o velho sábio.
SM: Ele viu tudo. Porque a gente não pode dar spoiler. Mas, fora dos gravadores, a gente pode dizer. Ele viu a Petra indo grávida, ele viu que foi a Paco que levou, ele viu eu e o Cassel voltando e pensando no que a gente ia fazer agora. “Vai ficar lá que eu me escondo aqui.” Ele sabia de tudo o tempo todo. Ele sabia de tudo, mas também sabia que tudo tem hora de acontecer. Então, ele estava só filmando, literalmente, o Tony. E tem um plano no filme que é um plano do Walter Carvalho. Ele falou: “Esse aí eu vou ter que fazer”. Eu falei: “Waltinho, ok. Você merece. A nossa parceria foi tão boa que eu te dou esse plano de presente.” Ele falava que, na Paraíba, na meninice dele, ele lembra muito claramente que as latas de filmes eram levadas pelos maquinistas. E iam de trem. Ele lembra disso, com o Vladimir Carvalho. E ele queria fazer esse plano. Eu falei: “Waltinho, vamos fazer esse plano”. Porque, afinal de contas, ta lá. A gente revela isso, tem ali as latas. Ou seja, o cara levava o filme para o cinema. Ele sabia tudo, mesmo. E sabe que a vida tem seu ritmo. Ele não pode se intrometer. Então, é linda a participação do Boldrin.
Em 2012 eu conversei com o Walter quando ele esteve aqui divulgando o documentário sobre Raul Seixas. E nós falamos sobre a qualidade do profissional atento, que está na hora certa e no momento certo. Eu lembrei disso hoje, fazendo a pauta, pois eu acho que ele se encontrou fazendo esse filme.
SM: Que legal.
Quando você me fala acerca disso, desse plano dele das latas de cinema, é algo meio que confirma isso.
Pois é. Ele lembrou da infância dele na Paraíba. Que os filmes eram levados pelo trem. Muito bonito, cara. Muito bonito. Então, assim, a essência do livro está toda no filme e eu precisava ir além das páginas. Porque eu precisava de um conflito. Meu personagem é totalmente diferente no livro. No livro, ele é um amigão. Ponto. Aí eu pensei: “peraê, deixa eu pegar esse amigão que é engraçado e dar um outro contorno pra ele para que ele tenha uma virada e seja o cara que talvez seja o pivô de tudo.” E ficou um personagem interessantíssimo. Porque boa parte do filme você fala assim: “ah, o Selton pegou esse aí pra se divertir.” Aí no final você fala: “Caramba! Olha o que esse Paco é.” Então ficou um personagem bem rico e diferente do livro, também.
Um acerto que eu achei sensacional é como eles são parecidos. O Johnny Massaro e o Vincent Cassel.
SM: Um dos melhores castings do cinema brasileiro nos últimos tempos.
O nariz do Massaro. Ele tem aquele perfil francês.
SM: Exato. E o encontro dos dois, assim, o Cassel ficou encantado com o Johnny. Imediatamente ele viu que era um menino diferente, especial, e o Johnny não se intimidou com o Cassel. Poderia, né? “Puxa , é o Vincent Cassel!” Mas, não ele ficou ali seguro. Eles ficaram super amigos e foi muito bonito o encontro dos dois. Casting ideal. Grande acerto.
O astro francês Vincent Cassel, o pai: mais brasileiro do que eu ou você
E ele vem crescendo no Brasil. Trabalhou com o Heitor Dhalia no À Deriva, agora contigo...
SM: Ele trabalhou com o Cacá Diegues, também. Vai ser lançado em breve.
Olha só. Fala português já fluente.
SM: Ele já é um carioca. Joga capoeira.
É, ele aparece jogando capoeira na terceira parte de 11 Homens e um Segredo.
SM: O Cassel? Não lembrava disso. Ah, ele ta um brasileiro. Ele é um pai mítico no filme. Um pai que permeia o filme. Exatamente de um ponto de vista... assim, é o sentimento do filho . O pai é quase um sentimento. Então, você tem o Cassel, ele é um ator, assim, é um bicho cinematográfico. Aquele cara que você põe a câmera assim e acontece muita coisa. Forte a figura dele.
Cresce.
SM: Algo assim, Marlon Brando. Vai, exagerando, mas Marlon Brando. Essas grandes figuras do cinema. O Cassel tem esse peso. Quando eu botei a câmera nele a primeira vez, eu olhei assim...
E ele é bem galã francês. O feio bonito.
SM: O feio bonito, mas, assim, com uma presença em cena muito forte. Então, quando eu volto, de vez em quando tenho aquelas lembranças, e é o Cassel ali sendo pai, tem uma força muito grande.
Ele fez um filme magnífico a pouco tempo, chamado Meu Rei.
SM: Pois é. Dizem que é bonito, né? Eu não vi. Mas ele gosta bastante desse filme.
Eu gostei bastante desse filme.
SM: Ele tem orgulho desse filme.
Trazendo o papo para o atual, assim, o que você acha, se você quiser dar sua opinião, claro, o que você achou do Sergio Sá Leitão para ministro da cultura?
SM: Cara, eu conheço o Sérgio já há algum tempo e eu acho ele um cara bem preparado. Acho que o audiovisual pode estar bem amparado. Eu acho que ele pode ser uma boa escolha. Pode ir bem.
Você falou agora a pouco acerca das fases de seu trabalho, que pode trazer um caminho mais cínico ou áspero, ou algo mais doce e lúdico. Como foi a experiência de viver o Chris, em Soundtrack? Foi a segunda parceira com a dupla de diretores 300ml.
SM: Isso. Cara, eu achei um roteiro bem inventivo. Toda a ideia dos cara, foi algo bem peculiar, assim. E um personagem denso, mas bonito, porque é um artista. Então, com suas questões que eu me identifico. Eu sei os dilemas daquele personagem. Então, foi ótimo. Assim, eu fiquei muito tempo dirigindo o Sessão de Terapia. Foram três anos. Então, eu sai de la´seco para atuar. Fazia tempo que eu não atuava tanto. Você vê que eu voltei agora com fé. O Ligações Perigosas, o Soundtrack, O Filme da Minha Vida, onde eu tenho um papel pequeno, mas importante, um coadjuvante de peso. E vem aí o Treze Dias Longe do Sol, que é uma minissérieque eu fiz para a Globo e que estreia em janeiro. Estou filmando agora com o José Padilha para o Netflix. Estou bem ator.
É a série sobre a Lava Jato?
SM: Sim. Chama-se O Mecanismo. É uma série sobre a corrupção no Brasil.
Tem planos de voltar com o Sessão de Terapia?
Tony e a poética casa da luz vermelha do filme
SM: Olha, cara, planos tem. Vontade, tem. Mas tem que achar um momento para isso. Porque exige um mergulho grande ali. Na escrita,. Foi um trabalho denso. Fiquei três anos fazendo.
Dentro de uma sala. Então, era bonito, mas era forte demais. Então, precisava dar uma pausa dali.
Já sabe qual será o seu próximo projeto como diretor?
SM: Em cinema, não. Mas estou adaptando para a Globo, em minissérie em dez capítulos, um sonho de vinte anos, que é O Alienista, do Machado de Assis. Amo esse conto. Já pensei em fazer em cinema várias vezes e é caro. Aí resolvi fazer ali em minissérie porque eles têm aquela estrutura, cidade cenográfica. Só não sei quando pois ainda, mas será a minha estreia na Globo como diretor e ator. Eu vou fazer o Simão Bacamarte, esse médico que estuda o limite entre a razão e a loucura, machadianamente. E, pô, Machado de Assis para a massa, né? Botar Machado para o grande o público é sempre um prazer. Mas não sei quando eu devo fazer isso. A gente entra em uma fila ali de muitos projetos. Mas estamos trabalhando nisso.