sábado, junho 10, 2017

CENAS DA VIDA EM SP

Em Portugal para participar de festival de quadrinhos, o casal baiano Flávio Luiz e Lica de Souza lança sua HQ mais adulta

A SP de céu azul e cheia de verde na visão de Flávio
Um raro quadrinista baiano de destaque nacional, o premiado Flávio Luiz (Aú, O Capoeirista) se mudou para São Paulo há alguns anos.

Lá, entre outros trabalhos, vem desenvolvendo HQs em parceria com a esposa, a filósofa e produtora cultural Lica de Souza. O segundo trabalho do casal é Histórias Paulistanas.

Lançado há pouco pela sua editora independente, a Papel A2 Texto & Arte (via edital ProacSP, programa de incentivo à cultura), a HQ enfeixa, à moda Short Cuts: Cenas da Vida (1993, de Robert Altman), diversas narrativas paralelas protagonizadas por pessoas comuns, que parecem aleatórias mas se entrelaçam em determinados momentos.

As motivações dos personagens são as mais simples possíveis.

Há o garoto da comunidade carente que mal consegue dormir, ansioso para poder ir nadar no clube no dia seguinte.

O porteiro de prédio com a mulher grávida.

O aposentado que vive com a filha e a neta, mas que não recebe nenhuma atenção de qualquer uma das duas.

O guarda municipal que se depara com a namorada no protesto de rua que tem de reprimir.

Em meio ao conflito, um parto
“Tinha essas histórias na minha cabeça, ainda soltas, e queria transformar em roteiro. Quando abriram a inscrição no ProacSP, falei com Flávio e ele topou. Ele estava cheio de trabalho no período, então eu escrevi o projeto e uma sinopse, e quando ganhamos, desenvolvi. E quando ele começou a desenhar, fomos trocando ideias e amadurecendo. Como ele saca muito mais de quadrinhos, ele desenvolveu mais as 'quebras' do que viraria quadrinho e encaminhamento das páginas, 'timing', conta Lica.

“Lica já  tinha se aventurado nos roteiros em nosso trabalho anterior (3 Histórias de Terror e Uma Nem Tanto, 2015), e sempre acreditei que ela tiraria de letra escrever HQs. Ela tem uma pegada mais adulta, de quadrinho focado na história. Tem sido o nosso  álbum de maior repercussão no mercado nacional”, afirma Flávio.

Apesar de ficção, algumas situações foram inspiradas na vida real, como conta Lica: “Só a parte da história do velhinho na praça que foi inspirada em uma situação que Flávio viveu e me contou. A história do casal eu criei no sentido inverso, quando estava vendo as passeatas de 2013 pela TV. Que outras histórias, além da violência e revolta que era mostrada, estavam se passando naquele exato momento? E pensei no casal em lados antagônicos e no parto. Não seria uma loucura um parto em meio a uma passeata? E um casal de namorados brigando? E porque eles estariam brigando? A história do menino na piscina eu pensei quando li uma matéria dizendo que São Paulo era a terceira cidade em balas perdidas. A primeira é o Rio e a segunda, Salvador. Mesmo um único caso de bala perdida é um absurdo, mas eles estão aumentando e sendo banalizados. E são sempre casos de uma trivialidade angustiante”.

No sufoco entre bombas de efeito moral, o casal entra em uma amarga DR pública, na qual ressentimentos sociais afloram – mas sem maniqueísmos, uma armadilha que a autora soube evitar.

“A vida não nos afaga. Gosto de levantar questões, mesmo que não tenhamos as respostas. Acho que a vida não é preto no branco e queria passar isso na história. Esses personagens conflituosos refletem a vida mesmo. Nunca somos uma coisa só. Quando você cria, tem que saber de antemão que alguns vão adorar e outros odiar, e isso faz parte. Ainda mais em momentos tão polarizados. Mas não pensei nisso quando escrevi”, diz.

O velhinho na praça
"Will Eisner ,um dos meus maiores ídolos, acreditava no quadrinho como forma de arte capaz de abordar os mais variados temas em suas contradições e profundidades. Apesar de ter um traço cartunesco, tenho uma forte influência de Will na retratação dos tipos humanos e na forma de contar  historias. Espero ter acertado nesse álbum e feito o 'dever de casa' direitinho pra ele e pra Lica, a quem dedico tudo o que publico", acrescenta Flavio.

Apesar de bem adulta e realista na narrativa, a HQ ainda assim mostra uma São Paulo colorida, vibrante e de céu azul, contrastando com o clichê da cidade cinza.

"Eu e Flávio conversamos sobre isso e concordamos que seria muito colorida, porque vemos muita cor em São Paulo, sim. Inclusive a escolha da capa cinza foi para ir de encontro ao lugar comum das pessoas, mas aí você abre e tem aquele choque de luz e cor. Achamos que tinha tudo a ver com São Paulo", observa Lica.

"Tentei sair um pouco da minha zona de conforto e convidar o leitor acostumado aos meus títulos com  personagens solares a conhecer essa outra vertente do meu trabalho. Ao mesmo tempo, mantive a influência de Eisner e do quadrinho europeu (principalmente na paleta de cor), o que é inevitável, já que são minhas maiores fontes de inspiração. A capa tem um tom inspirado nesse clichê de Sampa cinza. Mas dentro, todas as cores, e principalmente o verde, que existe e muito na cidade, estão  presentes. Tá certo que o azul  do céu é bem clarinho, comparado ao cyan 100% de Salvador, mas as pessoas tem identificado esses tons e isso me deixa muito feliz", acrescenta Flávio.

No Beja BD

Flávio e Lica, foto Marina Ribeiro
Em bom momento, Flávio e Lica desembarcam hoje mesmo no XIII Festival Internacional de Banda Desenhada de Beja, na região do Alentejo, em Portugal.

É a primeira vez que um quadrinista baiano é convidado para o evento.

“A internet possibilita um contato muito mais amplo na divulgação dos nossos trabalhos. Sigo alguns blogs e acabei conhecendo algumas pessoas que resenham banda desenhada em Portugal. Apesar de não ter ainda uma editora publicando meus álbuns, tive um retorno bastante positivo na imprensa especializada lusitana em relação ao que venho publicando, principalmente pela identificação com o estilo e temáticas tão caros ao público europeu. Acho que essas resenhas e alguns álbuns que chegaram por lá chamaram a atenção dos organizadores. Isso aconteceu em Angoulême em 2016, tanto que lá tive a oportunidade de palestrar sobre nosso mercado, levei mais de 30 títulos de diferentes artistas e, graças a Deus, isso contou muito por lá na divulgação do meu trabalho. O convite para Beja, esse ano, foi uma alegria e um alento nesses tempos tão difíceis para quem faz o tipo de quadrinho que faço aqui no Brasil. Espero voltar de lá cheio de motivação e esperança de melhores dias”, afirma.

Na programação, Flávio faz palestra, sessão de autógrafos, expõe artes originais (no Museu Regional de Beja), participa de mesa-redonda (A Incrível Banda Desenhada Brasileira, com Rafael Coutinho, Pedro Cobiaco e outros) e, para fechar com chave de ouro, comparece ao evento Tributo a Aú, O Capoeirista, do Grupo de Capoeira Gingartes.

Agora, só falta descolar um contrato para publicar no mercado europeu – mas  sem pressão.


“Já estou bastante feliz e honrado com o convite para um festival tão importante. Não quero criar  maiores expectativas. Quero curtir cada momento da exposição, da roda de capoeira, a integração com artistas do mundo todo e agradecer muito o reconhecimento ao meu trabalho. Vou continuar produzindo e lançando meus títulos e seja o que Deus quiser”, diz.

Ao voltar de Portugal, Flávio e Lica darão continuidade aos projetos de HQ já iniciados.

"Online, com certeza, deve sair O Agente Sommos (meu novo personagem) no segundo semestre. Impresso, só quando a crise der uma folga. O Cabra 2 também. Primeiro online, depois impresso. Do Aú tenho uns três roteiros prontos, mas só devo ter alguma coisa pra publicar do conterrâneo pra 2018", conclui.

Histórias Paulistanas / Lica de Souza e Flávio Luiz/ Papel A2 Texto & Arte/ 76 p./ R$ 46/ www.facebook.com/papela2editora / www.flavioluiz.net

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