Luedji Luna, foto Carol Aó |
"Muita gente me pergunta isso, se 'sou de Salvador mesmo'. Alguns pensam que sou estrangeira, não sei se por causa do nome, da altura (1,80m) ou da minha feição com traços bem fortes. Mas nasci no Cabula, e fui criada em Brotas toda vida", conta.
Na ponte aérea Salvador - São Paulo, a artista é uma das vozes mais belas e originais a surgir na nova cena da música baiana.
“Tive uma infância e adolescência muito silenciosa, poucos amigos, muita contenção. A impressão que eu tinha é que nada acontecia fora, enquanto dentro de mim tudo se movia”, conta Luedji.
Não à toa, no que se pode ouvir de sua música – algumas poucas canções já gravadas – o silêncio é quase um parceiro de sua voz – uma daquelas vozes d’África que parece carregar milhões de outras em si.
“Escrever foi meu jeito de estar no mundo, e depois cantar isso. Então, a fonte da minha música é o silêncio, acho que esse minimalismo surge em respeito a esse lugar de partida”, acrescenta.
"Que eu tenha memória, desde a infância, cantar era minha brincadeira predileta! Cantar, fazer música, imitar a Mariah Carey e Whitney Houston no banheiro, todo o meu imaginário durante a infância era construído em torno da música, a escada era o palco, as plantas eram meu público. Eu fui muito influenciada pelo que meus pais ouviam, Milton Nascimento, Luiz Melodia, e Djavan eram os principais nomes, todo o reggae da década de 80 que meu pai escutava também: Gregory Isaacs, Alpha Blondy, Peter Tosh, Edson Gomes, é daí minha paixão pelos graves e pelos sopros. A música sempre teve um grande impacto sobre mim, sempre me tocou muito, lembro de uma vez uma professora no colégio ter colado no dia do estudante uma música do Milton em sala de aula para homenagear os alunos, e de eu ter chorado aos prantos, eu fui a única criança que chorou. Também me lembro das viagens à Feira de Santana, da batucada no quintal, do Raciocínio Lento, um grupo formado por amigos industriários, que nos finais de semana reuniam as famílias para beber e fazer boa música, minha primeira e principal escola", relata.
"Assumi a música tardiamente, com 25 anos. Não venho de uma família de músicos, e, terminado o colégio, então com 17 anos, idade que você tem de escolher o que fazer da vida, ela nunca foi uma opção. Nós não temos uma educação direcionada para nossas potencialidades, e o sonho não é uma possibilidade, sobretudo quando se é negro, e a garantia da sobrevivência é uma preocupação prioritária. Então, no meu caso, fazer música foi um processo de aceitação, comecei participando de grupos e coletivos de música na cidade, porque buscava essa força e incentivo no outro, com o dinheiro do estágio pagava as aulas de canto na Escola de Canto Popular da professora e cantora Ana Paula Albuquerque. Foi nesse período que decidi fazer isso da vida definitivamente. Ir à São Paulo nunca foi um plano, ou um desejo, mas tive duas experiências que foram determinantes na minha decisão. Eu fazia parte de um coletivo junto com outros compositores de Salvador, o Uns Zansoutros, e fomos convidados a participar de um tributo aos Novos Baianos na cidade. Tivemos uma receptividade muito boa, que para mim foi um grande incentivo. Depois retornei em um outro momento, porque um selo paulista muito bem conceituado teve conhecimento da minha música e mostrou interesse, me chamaram para uma audição do novo disco, na época, de um cantor / compositor que eu admirava muito, na ocasião estavam presentes vários outros artistas que eu admirava, e eu me perguntava: o que é que está acontecendo na minha vida? Naquela noite eu decidi que São Paulo era o lugar onde eu deveria estar! Não foi nada premeditado, a música foi costurando toda história", continua Luedji.
Na internet, sua produção mais bem acabada até o momento é o clipe (e a música) Um Corpo no Mundo, ambos inspirados no contato que teve com imigrantes africanos pelas ruas de São Paulo.
“É uma proposta para se pensar identidade, uma reflexão que surgiu desse encontro com a imigração africana em São Paulo”, conta.
“O projeto se fundamenta na ideia do não pertencimento, do corpo que ocupa o espaço, mas não se identifica, e da necessidade de conexão com a ancestralidade, essa inspiração nasceu dessa vivência, mas o single não fala só sobre isso”, diz Luedji.
A identificação com os desterrados na Terra da Garoa até por que ela também se sente longe do seu lugar de pertencimento: “O fato de estar em São Paulo e não pertencer a cidade reproduz em pequena escala a sensação do que é ser negro da diáspora no Brasil. A música também traz um questionamento sobre corpo, sobre quais são os corpos que merecem afeto, dignidade, respeito e amor. Eu cheguei em São Paulo em um momento em que estavam sendo noticiados muitos casos de xenofobia contra os imigrantes africanos na cidade, e a gente sabe que xenofobia no Brasil é racismo, porque os imigrantes não negros têm um tratamento completamente diferenciado. Em termos políticos, o que está acontecendo em São Paulo, no Brasil e no mundo é um retrocesso sim, mas que só acentua um problema que é sistêmico, a questão do racismo não é partidária”.
Campanha
Este primeiro single, Um Corpo no Mundo foi produzido pelo requisitado sueco Sebastian Notini, ex-percussionista de Eagle-Eye Cherry e responsável por produções, como o premiado Mama Kalunga (2015), de Virgínia Rodrigues, além de álbuns de Tiganá Santana, Ramiro Musotto e Jurema Paes.
Não a toa, Um Corpo no Mundo será também o nome do álbum que Notini começa a produzir em breve para a cantora. “Terá dez faixas, com músicas de minha própria autoria e em parceria”, conta.
“Conheço o Sebastian já há alguns anos, sempre cogitamos fazer algo junto, mas só ano passado foi possível ter essa primeira experiência, que foi a produção do single Um Corpo no Mundo, gravado parte em São Paulo, parte em Salvador. O disco, que leva o mesmo nome do single vai ser gravado na Bahia, terá dez faixas, com músicas de minha própria autoria e em parceria. O Sebastian trabalha com muito diálogo, é bastante sensível ao que a música pede. Então fiquei muito feliz com o resultado do single, que dará norte ao disco. Buscamos a mesma potência e verdade que conseguimos nessa primeira experiência”, afirma.
Para viabilizar a produção, Luedji recorreu ao financiamento coletivo (crowdfunding) na plataforma Catarse.
“A campanha segue a passos lentos, mas firme, me parece que o grande boom do financiamento coletivo de projetos já passou, mas ela segue crescendo de pouquinho em pouquinho. Para colaborar é só entrar no site Catarse, procurar pelo projeto Um Corpo no Mundo, e fazer a contribuição de qualquer quantia”, convida.
"Fiquei dois anos em São Paulo, e só voltava a Salvador em dezembro, nas festas de final de ano. Mas esse ano tem sido diferente, fiquei três meses ininterruptos em Salvador, fiz vários shows e uma mostra, a Palavra Preta: Mostra Nacional de Negras Autoras, idealizada por mim e Tatiana Nascimento, cantora, compositora e poeta de Brasília. A mostra reuniu em janeiro mais de 20 compositoras e poetisas negras da cidade de Salvador e de outras regiões do país. Então, depois dessa experiência no verão, esse ano decidi ficar nessa ponte São Paulo - Salvador. Minha cidade está bem viva, produtiva, com espaços novos, e com projetos pulsando. Estou na articulação para fazer a comemoração de um ano da mostra Palavra Preta em Salvador, além de shows, e a gravação do disco em outubro", conclui.
www.catarse.me/umcorponomundo_luedjiluna
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