domingo, janeiro 24, 2010

CARTILHA ATIVISTA

O livro Não devemos nada a você, coletânea de entrevistas da extinta revista americana Punk Planet, reúne o melhor do pensamento independente e do ativismo de protesto radical


Quando se fala em “punk“ para um cidadão médio, aquele que assiste novela e curte um churrasquinho com sambão no fim de semana, ele certamente não terá muitas referências, além de um punhado de bandas ridículas na TV ou figuras estereotipadas com cabelos moicanos e roupas rasgadas – o clichê clássico do estilo.

Pois agora é a hora de pegar todos esses estereótipos e joga-los em seu merecido lugar: o lixo. Ainda que não se proponha a ser uma cartilha, o livro Não devemos nada a você - Coletânea de entrevistas Punk Planet (Edições Ideal), bem que serve como uma, ao juntar em um só volume o pensamento de diversos luminares do ativismo e da música underground.

Organizada por Daniel Sinker, ex-editor da revista independente Punk Planet, que circulou nos Estados Unidos entre 1994 e 2007, o livro traz entrevistas de nomes tão díspares quanto Jello Biafra, o ultra-politizado ex-líder dos Dead Kennedys (uma das bandas mais perigosas do mundo em sua época) ao pensador Noam Chomsky; de Ian MacKaye, líder do pilar independente Fugazi, às líderes do Central Ohio Abortion Access Fund (ONG que apóia o aborto); de Beth Ditto, a ativista homossexual da banda The Gossip (antes da fama), ao Vozes do Deserto (outra ONG, que promove ações para deter a guerra no Iraque). E ainda há mais, muito mais.

Abaixo os símbolos

Toda essa diversidade de ideias (e ideais) ilustra o que, na realidade, é o punk: uma filosofia de vida apartidária que estimula o individualismo, o pensamento independente e condena a busca pelo lucro a qualquer custo. Para ser punk, portanto, ninguém precisa usar símbolos – de resto, desmoralizados pela mídia mainstream – como cabelos espetados, roupas rasgadas ou ouvir música hardcore.

Para assumir posturas que podem ser consideradas ativistas (mais do que simplesmente “punk“), basta começar a pensar por si mesmo, e, quem sabe, tomar atitudes simples e, certamente, bem civilizadas.

Como, por exemplo, separar o lixo reciclável, privilegiar o comércio solidário, não pagar uma fortuna por aqueles tênis de marcas supostamente bacanas que são fabricados por escravos (seja no Oriente, Paraguai ou Bolívia) e – especificamente, aqui em Salvador – boicotar o carnaval comercial dos grandes blocos e camarotes que exploram de forma escravagista a mão-de-obra das classes D e E, além de privatizarem o espaço público – com a conivência dos governos.

Ou, como diz o editor Daniel Sinker na introdução do livro, “se você for ao âmago do punk e tirar toda a tinta de cabelo, power chords, máquinas de escrever, vinil colorido, jaquetas de couro, bastões de cola, cartazes de show e coturnos, a questão ‘por que não podemos fazer isso?‘ é o que sobrou no fundo da panela. O punk sempre foi sobre perguntar ’por quê’? e fazer algo a respeito“, escreve.

“É sobre pegar uma guitarra e perguntar: ’por que não posso tocar isso?’. É sobre pegar uma máquina de escrever e perguntar: ‘por que minhas opiniões não contam?‘. É sobre olhar o mundo à sua volta e perguntar: ’por que as coisas estão fodidas como estão’?. E então é sobre olhar para dentro de si e perguntar: ’por que não estou fazendo nada a respeito’?“, continua Sinker.

Foi pensando assim que pessoas como Jello Biafra, Thurston Moore (Sonic Youth), Henry Rollins, Ian MacKaye, Porcell (Shelter) e tantos outros mudaram o mundo a sua volta e influenciaram milhares de outras a fazer o mesmo.

Um exemplo bem prático foi o movimento riot girl, detonado nos Estados Unidos em 1991, por bandas de garotas como Bikini Kill e Bratmobile. Não mais que de repente, essas garotas começaram a fazer shows rabiscando as palavras ”vadia” e ”estupro” nas suas barrigas enquanto vociferavam hardcore com letras feministas.

Em pouco tempo, toda a mídia mainstream americana – veículos como o jornal New York Times e as revistas Newsweek e Rolling Stone – queria saber o que era todo aquele rebuliço.

Mesmo em alguns fanzines punks, essas garotas eram odiadas e chamadas de ”sapatões”, entre outros termos pouco lisonjeiros.

Desta forma, desmascararam o sexismo e o machismo que havia dentro do próprio movimento punk – o que já foi um grande feito.

Confrontamento ao vivo

Mas as entrevistas da Punk Plante não se limitaram a artistas e bandas do gênero, estendendo-se a líderes de movimentos sociais, designers, cineastas, filófosos e até mesmo ativistas destemidos como Jon Strange.

Conhecido como ”o senhor de camiseta branca”, Strange interrompeu, em 1998, uma audiência pública na Universidade Estadual de Ohio, transmitida ao vivo pela CNN, confrontando a então Secretária de Estado Madeleine Albright com perguntas para as quais ela simplesmente não tinha resposta.

A audiência pública, uma jogada da administração Clinton para conceder uma aura democrática à decisão (já tomada) de bombardear o Iraque, acabou tendo como resultado o adiamento do bombardeio por dez meses. Graças a um único homem – no lugar certo, com as perguntas certas na ponta da língua.

Mais famoso, o professor de linguística do MIT (Massachusetts Institute of Technology) Noam Chomsky (cujos artigos atmbém aparacem no jornal A TARDE), é outro entrevistado essencial do livro de Sinker.

Um senhor distinto que nada lembra um punk, Chomsky denuncia na sua entrevista a forma como o sistema educacional é projetado para impedir que as pessoas ”liguem pontos”. ”Uma coisa importante é manter as pessoas espalhadas e a outra evitar que elas vejam como as coisas estão ligadas entre si”, diz Chomsky.

Para Noam Chomsky, os próprios ativistas costumam cair nessa armadilha, tornando-se especialistas em questões específicas como “o apartheid na África do Sul, a guerra do Vietnã ou a América Central“. “Você não deve perceber o fato de que está tudo aqui“, atenta.

Acontece que “ligar pontos“ e unir ativistas é justamente a especialidade de outra entrevista de destaque do livro: Han Shan, diretor de programas do grupo Ruckus Society.
Quando se vê no noticiário da televisão aqueles ativistas encarando cassetetes, gás lacrimogêneo, jatos d‘água, spray de pimenta e outras formas de controle de multidões, é bem capaz que a Ruckus esteja por trás daquela movimentação toda.

Especializada em treinar ativistas para ação direta, ela ensina, em campos de treinamento, “as pessoas a escalarem prédios e colocarem faixas, algemarem-sem umas às outras – ou à barricadas, árvores e estradas”, escreve Sinker na introdução à entrevista.
“Você não pode ter uma coisa sem a outra“, diz Han Shan. “Todas as lutas por justiça e sustentabilidade, por direitos humanos e por justiça social estão profundamente ligadas. (...) Metalúrgicos e tibetanos, ativistas pelos direitos animais, hippies e anarquistas, todos precisam perceber que estamos trabalhando com um objetivo em comum. Podemos ter visões diferentes de como ele se concretiza, mas basicamente estamos tentando reverter a tomada de poder das corporações sobre nosso planeta“, exorta o ativista.


Jello Biafra e o Grateful Dead

Igualmente estimulante é a entrevista de Jello Biafra. Um verdadeiro pilar de pedra do movimento punk americano, suas palavras podem ter um efeito equivalente a um litro de café bebido todo de uma vez.

Longe de qualquer radicalismo rocker, Biafra aponta os velhos hippies da banda Grateful Dead como ativistas muito mais eficientes e organizados do que muitos punks uniformizados.

“Um modelo para se examinar é o que o Grateful Dead – justo eles – fez com boa parte do seu dinheiro, que foi criar uma fundação chamada Rex Foundation. Todo ano eles faziam shows beneficentes. Começou com uma doação de 30 mil dólares. Da última vez que tocaram, a Rex recebeu 1,2 milhão de dólares. (...) Isso ajudou a realizar sopões, centros de apoio a vítimas de estupro, os protestos Redwood Summer, do Earth First! (ONG ecologista) e ajudou escolas no distrito rural da Califórnia que não têm dinheiro para programas musicais por que os Republicanos roubaram tudo através de fraude fiscal“, denuncia Biafra.

NÃO DEVEMOS NADA A VOCÊ
Organização e edição: Daniel Sinker
Edições Ideal
308 p. / R$ 40
www.idealshop.com.br

11 comentários:

Franchico disse...

A íntegra desta matéria circulou ontem (sábado, 23.01), com uma longa entrevista com Daniel Sinker.

Quem quiser ler o resto, corra atrás...

osvaldo disse...

bela dica chico.sinker parece professar a cartila politicamente correta na qual atual contra-cultura se viu encurralada(mas isto eh outro papo), mas definitivamente parece leitura interressante.vou correr atras.

Márcio A Martinez disse...

Osvald-man, beleza? Cara, não conheço nada do Sinker, portanto me desculpe (e me ajude) se você conhecer, mas o que eu acho é que pelo texto postado aqui não dá pra se chegar a uma conclusão sobre se o autor do livro segue a cartilha do "politicamente correto". Repare que ele é apenas o ORGANIZADOR do material e não seu escritor. Só sei de uma coisa: Jello Biafra é que não é, absolutamente, um cara que professa essa cartilha. De qualquer modo, é isso mesmo: vamos correr atrás dessa leitura... Abç.

Admnistrador disse...

Saiu um texto do Chomsky no a tarde sobre os presidentes americanos que já ganharam o Nobel da Paz, muito interessante, quem nao leu corra atrás, e o Biafra tem uma história triste, os caras da banda dele fizeram o que fizeram com ele, alguem sabe sobre o que ele anda produzindo?

Aliás porque esse livro não sai de graça hein? Será que não são tão punks assim?

Franchico disse...

Márcio e Bramis, talvez a interpretação "politicamente correta" tenha sido minha - de forma inadvertida, claro. Mas tb, o que é ser politicamente correto? É sugerir a separação do lixo reciclável? Bom, não acho que isso seja mais uma questão de correção política, não. Me parece mais uma questão de sobrevivência enquanto espécie.

Logan, no Portal Rock Press, o último CD do Biafra (não aquele da asa-delta) foi considerado o melhor internacional de 2009. O homem está vivo - e bem! E acho que, se eles disponibilizassem o livro de graça, eles simplesmente não teriam como lançá-lo. Uma coisa anula a outra, percebe? Mas, a essa altura, é bem capaz de vc já acha-lo em pdf por aí....

Franchico disse...

A propósito, o menino Lionman iniciou uma discussão boa sobre como a axé music está se infiltrando em nichos supostamente "cool" da cultura pop local.

http://palavrario.wordpress.com/

Já larguei meu comment por lá. Calçem suas luvas de boxe, pois a discussão promete...

Emmanuel Mirdad disse...

Chicão, vc conhece as tirinhas de Metade? São mt fodas. Confira uma seleção delas aqui: www.elmirdad.blogspot.com

E aqui é o sítio do brou: www.fotolog.com/29tiras

Abs, master!

The Red Crown disse...

Olá!
Gostei muito do blog, bem organizado, atual, divertido, com conteúdo..Vou voltar aqui mais vezes com certeza!
Hm, se puder, passa no meu blog: theredcrown-fanclub.blogspot.com
É para a divulgação da banda "The Red Crown", eles são muito bons! O blog ainda é recente, ainda está descobrindo seu caminho na blogosfera, mas acho que já dá para ter uma ideia.
Bjobjos!
Lubas.

Nei Bahia disse...

"Aliás porque esse livro não sai de graça hein? Será que não são tão punks assim?"

Puta que pariu, por isso que odeio esssa raça...acorda Alice!!!

Logan disse...

Pqp, "The Guantanamo School of Medicine" só pelo nome da banda já vale a pena ouvir, valeu pela dica!

E de vez em quando a´te que aparece um site que preste sobre rock nessa rede hein... nada mal o site.

Old School disse...

Eu assisti o Jello Biafra num show solo em 2004,portanto ja faz algum tempo,porem o show foi quase todo de Dead Kennedys,nao achei q ele cantou muito legal nao.Tambem vi o DK sem ele em 2004(ou 2005,nao lembro) com o Klaus Flouride e o East Ray Bay,gostei mais apesar de sentir muito a falta do Biafra.Nao faco ideia do q o cara ta fazendo ultimamente,mas deve ser coisa boa.Ele eh o cara!