Raul. Foto Dan Dickason / Imagens divulgação Todavia |
Há coletâneas de textos, ensaios, ensaios biográficos e até romances psicografados.
Mas biografia séria mesmo – profissional, investigativa, escrita por um jornalista de peso – por enquanto, só há uma: Raul Seixas: Não Diga Que a Canção Está Perdida (Todavia), de Jotabê Medeiros, repórter cultural de vasta experiência nos jornalões paulistas.
Fruto de ano e meio de trabalho, o livro resultou de dezenas de entrevistas, pesquisas em outros tantos artigos de jornais e revistas e – claro – uma viagem à Salvador.
O rapaz se esforçou tanto que acabou desencavando uma polêmica, ao notar que a sequência de acontecimentos no episódio das capturas de Raul e Paulo Coelho pela ditadura militar em 1974 abria uma porta para suspeitar que Raul poderia – poderia – ter delatado o parceiro.
Afinal, o primeiro foi solto ileso e o segundo, preso uma segunda vez e torturado.
E aqui é bom deixar duas coisas claras.
Não há como provar a hipótese – tanto Raul quanto o agente da repressão que atuou no caso já estão mortos.
Segundo e mais importante: mesmo que seja verdade, condenar Raul seria errado. Regimes ditatoriais militares “quebram” pessoas. É pra isso que eles servem.
Essa história está muito bem narrada no livro – assim como toda a sua trajetória, desde a infância entre Salvador e Dias D’Ávila, sua amizade com Waldir Big Ben Serrão, a Jovem Guarda, Os Panteras, o primeiro – e duro – período no Rio de Janeiro, a carreira de produtor, a carreira solo, a parceria com Paulo Coelho, as mulheres, o sucesso, as drogas, a decadência, o início, o fim e o meio.
Leitura ágil e leve, é obrigatória não só para os fãs do Raulzito, mas para qualquer um com interesse na própria cultura brasileira dos últimos 50 e poucos anos. Por que Raul nunca foi “apenas o cantor”.
ENTREVISTA: JOTABÊ MEDEIROS
Além de ouvir Raul, como qualquer pessoa, qual a sua relação com o biografado? Você chegou a entrevista-lo ou encontrá-lo ainda em vida?
Jotabê Medeiros, foto Renato Parada |
Como foi sua pesquisa em Salvador? Você veio à cidade? Com quem falou? Foi sempre bem recebido?
JM: Estive em Salvador para conversar com o baterista dos Panteras, para conhecer o antigo Cine Roma, as casas onde Raul viveu, mas principalmente para fazer algo que considero fundamental numa pesquisa: ir aos lugares onde tudo aconteceu. Para que a narrativa tenha credibilidade, é preciso palmilhar os percursos que os protagonistas percorriam, descobrir quanto tempo levava da casa de Waldir Serrão até a de Raulzito, onde vivia Edith, onde ficavam as lojas de discos, os pontos de encontro. Percorri de Uber todos esses lugares, conversei com as pessoas na Vila Operária. Enfim, tentei compreender a geografia daquela revolução. Não houve grandes problemas para falar com as pessoas, elas recebem bem qualquer contribuição à memória de Raul Seixas, ele deixou um legado de portas abertas.
Passada a polêmica da possível delação de Paulo Coelho, que teria sido feita por Raul aos militares, como você encara o episódio? O que você, pessoalmente, acredita que ocorreu? E mesmo que tenha de fato ocorrido, seria possível condenar Raul?
Os Panteras. Raul é o segundo da esq. p/ a dir. Crédito DR Os Panteras |
Apesar de genial, visionário e de ter marcado e influenciado a MPB e o rock brasileiro para sempre, tenho a impressão de que Raul ainda é menos reverenciado do que merece. Entre os MPBistas, nunca está no mesmo patamar do trio Chico / Gil / Caetano. E entre os roqueiros, sempre há a ala que o considera superado e até brega. O destino de Raul, mesmo pós-morte, é esse eterno limbo?
O jovem Raul toca para pescadores em Amaralina. Foto Juvenal Pereira |
Ao longo de todo o livro você aponta todos os plágios / "empréstimos" / adaptações que Raul fez em sua carreira. Na época isso passava batido? Ao mesmo tempo, há toda aquela discussão de autoria na arte contemporânea. E vale lembrar que o rock está cheio de plagiadores geniais, a começar por Jimi Page. Conclusão: até para plagiar direito é preciso ter talento?
JM: Raul encarava a apropriação, a meu ver, também como um ato de sublevação, de enfrentamento do status quo. Ele ria do copyright, ria de todos os conceitos de propriedade. Não tinha necessidade de copiar, era mais inventivo, em geral, do que aquilo que tinha copiado. Mas a contracultura teve também esse aspecto, que Raul transformou em música, de contrapor-se às normas industriais, de selos, carimbos, rótulos. De todo modo, eu tento não passar pano para essa faceta de sua obra, que é muito diversa. Não se pode naturalizar o comportamento de rapinagem, embora se possa compreender. Eu gosto muito de todos os plágios dele, são maravilhosos.
Outro ponto sempre polêmico a respeito de Raul são os 50 shows que fez em turnê com Marcelo Nova, pouco antes de morrer. Acredita que foi isso que "apressou" sua partida ou ele já estaria condenado devido às décadas de abuso e negligência à própria saúde?
Sergio, Wagner, Leno, Raul e Tom. Ft Dan Dickason |
Em tempos tão estranhos, a pergunta me parece inescapável: como o senhor acha que seria a posição de Raul hoje em dia? Se manteria à margem, ainda que libertário, ou sucumbiria ao fascismo, que já abriga tantos roqueiros tradicionais? Sei que o senhor não é adivinho, mas...
JM: Raul execrava a ação do Estado na tutela da sociedade. Então, ele estaria contra o que se apresenta hoje no Brasil, é evidente. Ele era vítima da censura cotidianamente; então, ele ficaria puto com a reinvenção da censura por um governo de conformação religiosa e conservadora, moralista. Raul era livre em sua expressão de costumes, de comportamento; então, ele ficaria em guerra contra um Estado que prega abstinência sexual, que estigmatiza o pensamento contrário, que persegue ou destila preconceito contra índios, nordestinos, gays e lésbicas. Não é nenhum segredo que Raul estaria em guerra contra esse arremedo de governo que temos, é apenas uma questão de analisar sua atitude.
Raul, a exemplo de Jesus, Jim Morrison, Bob Marley e outros, é muitas vezes apontado como um daqueles casos "ele é ótimo, o que estraga são os fãs". O raulseixismo enquanto fenômeno social é um elogio ou um desserviço à obra e à memória do artista?
JM: Rapaz, aí vou discordar: tenho visto manifestações maravilhosas dos raulseixistas, que são sempre bem-humorados e debochados, que não se levam a sério demais, mas que nutrem por Raul um amor verdadeiro, sincero, além do tempo e das interpretações. Há radicalismos, é claro, mas quem tem medo de cara feia é passarinho, que foge do espantalho. Lancei o livro em Fortaleza, Belo Horizonte, São Luís e João Pessoa, e a recepção tem sido maravilhosa, todo mundo tem coisas pra perguntar e inquirir. É um dos contingentes de fãs mais bem-preparados do star system.
Qual seu próximo livro / biografia? Pode adiantar algo?
JM: Por enquanto, ainda não posso. É um trabalho de imersão absoluta, creio que já poderei falar sobre ele no final desse ano.
Raul Seixas: Não Diga Que a Canção Está Perdida / Jotabê Medeiros / Todavia/ 416 páginas/ R$ 69,90 / E-book: R$ 39,90