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Assis Valente nos arcos da Lapa (RJ), em 1951 |
Em seu novo livro, o jornalista baiano Gonçalo Junior reconstrói a biografia de Assis Valente, genial compositor baiano – e revela seu vício em drogas e a depressão que o levou a se atirar do alto do Corcovado
Enquanto parte da classe artística e o Congresso lutam para manter a história e a memória brasileiras no obscurantismo, guerreiros como Gonçalo Junior (e outros) afiam suas penas para trazer à luz a realidade dos fatos sobre grandes vultos históricos.
Desta vez, o jornalista baiano, autor de A Guerra dos Gibis, O Homem-Abril e Maria Erótica & O Clamor do Sexo volta seu escrutínio para um conterrâneo genial: Assis Valente (1911-1958).
Fruto de décadas de pesquisa, sua biografia para o compositor tem mais de 600 páginas e é superlativa até no título: Quem samba tem alegria: A vida e o tempo de Assis Valente, compositor das célebres Brasil Pandeiro, Cai, cai, balão, Camisa listada e Boas festas.
Recheado de revelações, o livro estabelece o vício em cocaína do artista e sua depressão. Compositor preferido de Carmen Miranda, teve dezenas de sucessos, mas nunca foi feliz de fato e vivia afundado em dívidas.
O desespero o levou a se atirar do alto do Corcovado. Por incrível que pareça, sobreviveu.
Nesta entrevista, Gonçalo Junior conta de suas motivações, da personalidade do biografado, a não-tramitação lei das biografias no Congresso, cita as razões do seu quase anonimato (apesar de todos conhecerem suas canções) e rebate as insinuações acerca do seu suposto homossexualismo, levantadas por alguns pesquisadores.
ENTREVISTA: GONÇALO JUNIOR
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Gonçalo por Fernando Amorim | Ag. A TARDE |
O que motivou o livro? A lacuna editorial (de ainda não haver um trabalho mais aprofundado sobre o homem e sua época), o fato dele ser um conterrâneo genial, a vontade de demonstrar sua real dimensão para a cultura brasileira, o desafio jornalístico de desvendar os mistérios em torno de sua vida ou tudo isso junto? Ou nada disso?
GJ: Tudo isso junto e um pouco mais. Claro que acreditar que Assis Valente não recebeu ainda a devida atenção no sentido de dimensionar o quanto sua vida foi trágia é um estímulo e um desafio. Sou baiano e sempre quis escrever algo ligado à cidade que mais amo, que é Salvador, embora tenha nascido em Guanambi e me mudado para a capital ainda criança. É o pagamento de uma dívida. Temos tantos artistas geniais. Adoraria biografar, por exemplo, Luiz Caldas, que considero gênio e me permitiria contar um pouco da axé music, da indústria musical de Salvador nesses 30 anos. Mas Assis me interessou mais no primeiro desafio. Tem a ver com algo mais pessoal.
Como foi seu primeiro contato com a música de Assis na infância? Foi daí que veio seu interesse por ele? Ou foi depois de adulto?
GJ: Cresci ouvindo Assis no Carnaval, no São João e no Natal, com suas marchinhas inesquecíveis como Cai cai balão e Boas Festas, principalmente. Em nossa casa era o que mais se tocava no toca-disco. Meu pai é uma enciclopédia ambulante da história da MPB. Nasceu em 1930, dois anos depois, surgiu o rádio comercial. Ele cresceu ouvindo Carmen Miranda, Mario Reis, Francisco Alves, Bide e Marçal, Aracy de Almeida, Noel Rosa e muitos outros. Acompanhou os 30 primeiros anos do rádio e guardou muita coisa em sua memória prodigiosa. Ele adorava fazer introduções antes de tocar os discos. Contava as mesmas histórias sempre. Por ter perdido um irmão que se matou, citava a tragédia de Assis como um exemplo de que tirar a própria vida não resolve nada. Cresci fascinado por sua história, queria saber como alguém que faz um samba chamado Alegria se atirou do Corcovado para a morte – e escapou por milagre.
Esta biografia de Assis é também um estudo muito detalhado de sua época, incluindo diversos aspectos culturais (claro), sociais e econômicos que enriquecem muito a leitura e portanto, a cultura geral de quem o lê. Quanto tempo você levou para produzir este livro, da ideia inicial à entrega dos originais à editora? Em que ponto você percebeu que não poderia falar de Assis sem estar profundamente familiarizado com sua época e tudo que o cercava?
GJ: Eu passei uns 20 anos, desde a adolescência, na década de 1980, juntando material sobre Assis: discos, livros, recortes de jornais e revistas. Creio que foi o primeiro livro que pensei em escrever. Tanto que, em 1999, quando passei uma tarde inteira entrevistando Dorival Caymmi em seu apartamento no Rio e sabia que Assis tinha sido importante na sua vida, conversamos um tempão sobre ele. Ali já estava definido que escreveria sua biografia e aproveitei a oportunidade. O livro foi escrito ao longo de 32 meses, entre 2009 e 2011. Percebi que a depressão que mataria Assis tinha muito a ver com coisas que aconteciam à sua volta, como o lado nada glamouroso do mundo do rádio, os roubos de composições, as intrigas, as fofocas, as chantagens de radialistas para conseguirem co-autoria como condição para tocar as músicas nas rádios. Está tudo lá, inclusive os nomes dos vilões dessa história, que ajudaram a arrastar Assis para a cocaína, o que destruiu sua vida e acho que é a maior revelação desta pesquisa.
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Assis aos 14 anos |
Durante uma entrevista que fizemos há quase dois anos, vc me contou que estava tendo problemas em lançar o livro por que o setor jurídico da editora estava com um certo medo de processos dos descendentes de Assis, por conta das revelações que você faz em torno da relação do biografado com drogas. Como esta questão se resolveu? A editora resolveu peitar o que viesse ou foi feito algum acordo com a família de Assis? Isso afetou de alguma forma o conteúdo do livro?
GJ: Não, não tiraram uma vírgula, a não ser na revisão. Não houve conversa com a família no sentido de pedir autorização. Simplesmente a editora resolveu correr o risco em nome da liberdade de expressão, estimulada pela discussão que provocou aquele episódio deplorável e mesquinho protagonizado por Roberto Carlos. Somos o país mais hipócrita do mundo. Impossível ter outro pior. Essa discussão das biografias é meramente financeira, embora pudessem alegar direito de uso de imagem. Faça um bom acordo com as famílias e elas não vão se importar com honra nenhuma do biografado. Não foi assim que a biografia de Garrincha (Ruy Castro) foi liberada? Quando o livro voltou às livrarias, estava exatamente como antes e a família com a conta bancária gorda. E os argumentos sobre honra e reputação foram abandonados.
Anteontem (quarta-feira, 10), o senador Agripino Maia (DEM-RN) manobrou para que a lei das biografias não fosse adiante, praticamente engavetando a lei por tempo indeterminado, a pedido do deputado federal Ronaldo Caiado (DEM-GO). Isso pode ter algum efeito imediato na publicação do seu livro? E a longo prazo, em que isso afeta seu trabalho e o de outros biógrafos no Brasil?
GJ: Natural que quem tem sujeira para esconder fique apavorado em liberar as biografias, dentro dos preceitos democráticos e da livre expressão, como diz a nossa Constituição. Só tem um caminho para impedir que esse engavetamento aconteça: a sociedade civil voltar a pressionar o Congresso. E vai voltar, basta um novo processo surgir e causar indignação na opinião pública. Creio que chegamos a um ponto sem volta nesse sentido. No momento, as maiores editoras do Brasil estão contratando e produzindo grandes biografias que devem chegar às livrarias a partir do ano que vem. Elas têm a opinião pública, a imprensa e boa parte do judiciário, inclusive ministros do STF, a seu favor e vão bater de frente com essa palhaçada de usar uma lei abusiva e censora em prejuízo da história do país. A questão é simples: falam em biografias que denigrem figuras públicas. Pois bem: quem pode me citar um exemplo? A de Roberto Carlos, que nem os advogados dele leram porque usaram argumentos financeiros?
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Assis foi ilustrador de revista erótica |
Todo mundo conhece Brasil Pandeiro, Boas Festas e Cai Cai Balão. Mas poucos conhecem seu autor. A que você acha que se deve esse semianonimato de Assis Valente?
GJ: Depois de morto, ele ficou quinze anos praticamente esquecido. A sociedade desse que é, repito, o país mais hipócrita do mundo, não perdoa suicidas. Isso é praxe cultural, moral e religiosa. Os suicidas vão para o inferno e aqui, entre os vivos, são jogados no limbo. Assis foi um caso assim. Quando morreu, o presidente da Câmara Municipal do Rio não deixou velarem o corpo dele lá, alegou que não era famoso o suficiente para tamanha honraria. Na verdade, ele não o fez por se tratar de um suicida. Nessa época, Assis andava sujo, barba por fazer, sem tomar banho, delirante, consumido por seu vício pela cocaína. Essa revelação me foi feita pela afilhada, que conviveu com ele por treze anos. Não é invenção ou especulação irresponsável, como dizer que ele era homossexual a partir de interpretações das letras de seus sambas. Contesto isso com segurança no livro, apenas ao não fazer referência a isso. A não ser que me provem com documento que Assis não foi vítima de especulação sobre sua sexualidade bem depois de sua morte. Não vale dizer que a tia do primo da vizinha do porteiro do colégio contou que conheceu um cobrador de ônibus cujo nome não sabe mas garantiu que teve um caso com ele. Não dá, né? E é isso que fazem. Usam Camisa Listada, E o Mundo Não se Acabou e Fez Bobagem para afirmar que as letras são cifradas com simbologias gays. O que dizer, então, de Folhetim, de Chico Buarque? Me poupe.
Há a possibilidade de algum dia o livro ser adaptado em filme ou série de TV? Alguém já te abordou quanto a isso?
GJ: Não, ninguém me procurou nesse sentido. Assis teve a vida mais trágica da história da MPB. Só o dia da morte dele, que relato em 15 páginas, daria um grande filme. Tomara que isso aconteça no sentido do Brasil rever seu valor e fazer justiça a um gênio esquecido.
Em que medida você acha que a obra de Assis foi importante no desenvolvimento da chamada "linha evolutiva" da MPB, aquela que desembocou na bossa nova, tropicalismo, a MPBzona de Chico-Caetano-etc?
GJ: Não sei se chegou tão longe, mas me parece que ao introduzir a melancolia no samba – que teria adeptos e seguidores como Caymmi (Saudade da Bahia, por exemplo), Nelson Cavaquinho, Cartola, Paulinho da Viola e Batatinha – ele mostrou novas possibilidades para o gênero, que renderia variações mais celebradas pela classe média e os intelectuais como a bossa nova. Para mim, Assis e Noel foram os dois modernizadores do samba e os dois maiores compositores da era de ouro do rádio, sem diminuir a importância de Ary Barroso e Lamartine Babo, entre outros. Claro que coloco Caymmi – o pai da bossa nova, creio – como posterior a isso, embora tenha sido revelado em 1939.
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Próximo do fim, Assis era a imagem da decadência |
É muito comum descobrirmos que artistas que transmitem muita alegria em sua obra eram na verdade depressivos, tristes e viciados em drogas. (Aliás, algo muito comum em comediantes também). Você diria que Assis se encaixa nesse perfil?
GJ: Perfeitamente. Assim como Assis, esses artistas têm, em comum, uma doença grave que só nas últimas décadas tem sido estudada, tratada e compreendida: a depressão. Não é coragem ou covardia que leva o sujeito a se matar. Não tem nada a ver. A depressão simplesmente tira o interesse pela vida. E, muitas vezes, provoca alterações radicais de humor, vão de um extremo a outro. Por isso, Assis recorreu terapeuticamente à cocaína. Em Alegria ele escreveu: “Vou cantando fingindo alegria para a humanidade não me ver chorar”. Acho que um psicólogo ou psiquiatra pode explicar melhor isso.
Assis pegou a transição dos tempos do teatro de revista para o rádio. Como ele se relacionou com a nascente comunicação de massa? Ele compreendeu sua importância de cara?
GJ: Assis foi um gênio instintivo ao perceber a força do rádio e as possibilidades de promoção, de se tornar famoso. Ele queria a fama para se fazer notar na Bahia, em Salvador, que o recusou como cartunista brilhante que ele era. Queria mostrar para o pai branco que era uma pessoa especial e merecia carinho e atenção. descobriu-se um marqueteiro nato e ganhou muitos inimigos por isso. Era odiado por se promover tanto na condição de compositor e não cantor - só esses podiam brilhar. Os amigos faziam intrigas, fofocas, porque ela saía na rua com os bolsos cheios de fotos suas que distribuía e dava autógrafos no verso. Ele era tão astuto que, antes de ter seu primeiro samba gravado, convenceu o jornal O Globo a fazer uma concurso para escolher um cantor que interpretaria a marcha que ele em fez em homenagem ao próprio jornal. Isso tudo aconteceu entre 1932 e 1939, quando ele emplacou uma centena de sucessos, ao menos. Um caso impressionante. Só Carmen Miranda gravou 23 músicas suas. A maioria caiu na boca do povo.
Em que medida você acha que a relação de Assis com entorpecentes foi decisiva para a sua ruína? Ou ele teria se arruinado mesmo que fosse "careta"?
GJ: Se ele fosse careta, continuaria a fazer músicas tristes e melancólicas como Boas Festas (Eu pensei que todo mundo fosse filho de Papai Noel). Foi a doença que o inspirou a fazer músicas assim, não as drogas. A cocaína veio depois, quando Carmen Miranda foi embora do Brasil e ele perdeu sua maior intérprete. Por outro lado, a droga o destruiu, impediu de criar, mais arrastou-o para a sarjeta e ao endivadamento desesperado, motivo para seus gestos de loucura, combinados com o grave quadro depressivo: matar-se por causa de dívidas. No livro, falo dos dramas de Orlando Silva, Nelson Gonçalves, Zezé Fonseca e outros que tiveram suas vidas arruinadas e até se mataram (como Zezé Fonseca, a musa de Orlando) ou tentaram.
A indústria fonográfica e a cena musical é um meio assediado por marreteiros em busca de lucro fácil e imediato não é de hoje, como vemos no seu livro. Como você avalia a postura geral de Assis nesse "antro"?
GJ: Assis e grandes compositores como Ary Barroso e Lamartine Babo reagiram com firmeza e se afastaram dos concursos de sambas e marchas ainda na década de 1930. Ary presidiu uma entidade de compositores e de arrecadação de direitos autorais e botou a boca no mundo, denunciou esquemas de jabás e apropriações de sambas e direitos autorais em jornais convencionais e nas páginas de revistas importantes como Carioca, O Malho, Revista do Rádio e Radiolandia, cujas coleções completas eu consultei para o livro. Só a Carioca teve 600 números. Na época havia um esquemão selvagem de propina que no meio se chama jabá ou jabaculê. Depois, piorou, quando passou-se a pagar até mesmo para não tocar os concorrentes. Alguém precisa escrever um livro sobre isso ao longo do século XX.
Alguma possibilidade de lançamento de Quem Samba Tem Alegria em Salvador, com sessão de autógrafos?
GJ: Adoraria. Mas fico meio inseguro. Sai de Salvador há 17 anos, perdi o contato com muita gente - amigos, colegas de colégio e faculdade - e temo que ninguém apareça.
Quem samba tem alegria / Gonçalo Junior / Civilização Brasileira / 644 p. / R$ 65