segunda-feira, dezembro 23, 2019

PODCAST ROCKS OFF PEDE A SAIDEIRA DE 2019

Lara Aufranc: longe de ser só mais um rostinho bonito. Foto Gal Oppido
Nei Bahia, Osvaldo Braminha Silveira Jr. e este blogueiro se reúnem mais uma  vez para dar uma geral em alguns dos melhores sons que ouviram este ano.

Como nossos gostos são muito esquisitos, não espere encontrar aqui (quase) nada do que rola por aí nas listas dos críticos / palpiteiros / apreciadores mais ou menos convencionais que tem por aí hoje em dia.

(Tradução: somos velhos.)

Então temos Sebadoh, Casapronta, Dona Iracema, Rodrigo y Gabriela, Tedeschi-Trucks Band, Stray Cats, The Budos Band, Cold War Kids, Leonard Cohen, Chemical Brothers, Rival Sons, Lara Aufranc, Lloyd Cole etc.

Enjoy – se puder...!

terça-feira, dezembro 17, 2019

BELO E FURIOSO (MA NON TROPPO)

Casapronta fecha 2019 com um dos melhores  do ano: Como a fúria da beleza do sol

Casapronta e Pablues (último à direita), foto Rafael Santos
Senhoras e senhores, é uma honra escrever esta última coluna este último post de 2019 (sim, voltamos em 8 de janeiro) dando destaque para um dos melhores discos que o colunista ouviu este ano: Como a Fúria da Beleza do Sol, da banda feirense / cachoeirana Casapronta.

Projeto paralelo de Pablício Pablues Jorge, da fundamental banda feirense Clube de Patifes, o Casapronta estreia em álbum cheio com uma obra que demonstra a absoluta maturidade artística de seu líder, ainda um ilustre desconhecido para muitos fora de seus redutos entre Feira (onde vive) e Cachoeira (onde estuda).

Em Como a Fúria..., Pablues logrou produzir aquele tipo de obra que somente grandes artistas são capazes: é profundamente (local)  baiana, mas também absolutamente universal.

Partindo de seu gênero de escolha há mais de 20 anos, o blues, Como a Fúria... se espraia pelo rock ‘n’ roll, pelo folk e pela Bahia (atenção: não necessariamente pelos ritmos baianos) como poucos foram capazes antes. Os paralelos mais evidentes para o colunista são Raul Seixas e Fábio Cascadura.

Além da competente banda que o acompanha, formada por Ígor Skay e Rodrigo Borges (guitarras), Rafael Razz (baixo) e Luiz Neto (bateria), o álbum traz participações igualmente iluminadas de Martin Mendonça, Isa Roth, Marcia Porto, Julio Caldas, Pedro Pondé, Juli, Roça Sound e outros não menos cotados.

“Desde que montamos o Casapronta determinamos que não ficaríamos presos a rótulos, deixando livre o processo criativo e que a música imperasse”, afirma Pablues.

“O rock n roll é o alicerce do Casapronta, junto tem o folk, que é um expressão que venho adotando faz um tempo, o blues é a vida, e a Bahia é o estado onde a gente entendeu, desde pequeno, que é necessário respeitar as diferenças aprendendo com elas ao mesmo tempo. Então, tem Bahia, rock, folk, blues e uma pitada de dendê”, acrescenta.

Encontro em Cachoeira

O fato é o seguinte: enquanto muito roqueiro arrependido se traveste de mpbista e muito roqueiro camisa preta se apega à estereótipos mortos, Pablues encontrou um saudável caminho do meio, evitando a caricatura que são aqueles dois extremos. Mas não se trata de fórmula. É uma mistura de talento com maturidade.

“A minha ida pra Cachoeira, enquanto estava na graduação em Museologia, me favoreceu muito a entrar em contato mais comigo e perceber a música baiana mais de perto, bem no seu berço”, conta.
Lançado o disco, Pablues & Cia meterão o pé na estrada no Ano-Novo. Em fevereiro passam por Salvador.

Ouça já.



BÔNUS: ENTREVISTA COMPLETA COM PABLUES

Ao mesmo tempo que é rock 'n' roll, o disco é profundamente baiano, algo que muita gente do rock tem dificuldade em aceitar / cultivar, mas está na raiz do rock local desde Raul Seixas, passando pelo Cascadura. Foi pensado como um manifesto mesmo ou simplesmente aconteceu assim?

Pablues e Casapronta, foto Rafael Santos
Pablues: O Casapronta é um banda, que um dia foi projeto, que relutei muito em trazer às vida. Que medo era esse? Tinha receio de não conseguir fazer nada que fosse tão bom quanto ao trampo que desenvolvo no Clube e seus 21 anos de estrada. Isso me atrapalhava bastante. Mas eis que um dia a coisa acontece e o Casapronta tá aí caminhando para o seu terceiro em 2020. Esse disco foi uma surpresa pra mim. Quando pensei em gravar... a ideia era um ep com 3 canções, gravadas no violão e elementos estranhos de percussão. Um folk bicho grilo. Daí, em meio ao processo de gravação, o ep foi tomando outra direção dando espaço pro disco. Desde que montamos o Casapronta determinamos que não ficaríamos presos a rótulos, deixando livre o processo criativo e que a música imperasse. O rock n roll é o alicerce do Casapronta, junto tem o folk que é um expressão que venho adotando faz um tempo, o blues é a vida, e a Bahia é o estado onde a gente entendeu, desde pequeno, que é necessário respeitar as diferenças aprendendo com elas ao mesmo tempo. Então, tem Bahia, tem rock, folk, blues e uma pitada de dendê no disco “COMO A FÚRIA DA BELEZA DO SOL”. Gosto d’uma frase de Raul, quando ele fala: “Não importa o sotaque e sim o jeito de fazer”. O Casapronta tem seu jeito de lidar com o rock e com a música. Os temperos usados na mistura é muito bem pensando, sem perder a mão, buscando não azedar nada nesse caldeirão de influências e sentimentos. Venho já há um tempo tentando fazer a música com mais liberdade, sem estar preso a alguma norma ou rótulo, deixando sair bem mais “eu” nas composições e interpretações. A coisa fica mais leve e fluida. Faz tempo que deixei pra trás aquela sisudez do roqueiro bravo, tradicional, e intransigente. Não que eu seja contra, não é nada disso, gosto ainda de muita coisa que ouvia e que me influenciou, e que muito ainda influência, mas quis tentar soar diferente. A minha ida pra Cachoeira, enquanto estava na graduação em Museologia, me favoreceu muito a entrar em contato mais comigo e perceber a música baiana mais de perto, bem no seu berço. Essa música baiana perpassa pelo reggae, samba de roda e afins, samba de terreiro de candomblé, a música que está nas pessoas, no conversar, no caminhar e no simplesmente ser baiano. A gente quando é novo sai de casa querendo descobrir o mundo, sustentando bandeiras que nem sequer nas guerras tivemos. Mais tarde alguns conseguem perceber que o único mundo não desbravado foi o seu, o interior. Interior de interior, cidade de onde vem, de onde nasceu, mas também o seu interior, seu “eu”. Pra que maior descoberta? E assim a gente vai se reinventando, se redescobrindo e vendo possibilidades outras que a vida apresenta, inclusive a maneira de fazer música. Então, o Casapronta tá nessa caminhada de fazer música como der na telha, uma espécie de #folkbluesrockexperinceforall. A gente tem auto rotulado nossa música como “música mundana”, acho que assim define. Esse disco é parte de um processo que a gente não sabe bem como vai se desenrolar, mas sabemos que vem muita coisa diferente pela frente, sem perder nossa essência, sem soar nada forçado, nem tampouco piegas. Aí tenho que citar Raul de novo: “Não sei onde estou indo, mas sei que estou no meu caminho”. Quanto a soar como um manifesto? De repente sim. Hoje em dia pra gente sair do mais do mesmo, pensar fora da caixa, ser fora da curva, é muito arriscado. Mas arriscado pelo que os outros podem pensar ou falar. Não estamos muito preocupados com esse tipo de risco. Eu venho do rock como formação musical básica. Mas também já fui zabumbeiro de banda de forró tradicional, tenho máximo respeito pela cultura do nordeste. Meu pai tinha uma loja de discos em Cruz das Almas onde a música baiana e o axé music, eram campeões de venda, então lá em casa era isso que rolava bastante, além de clássicos como Altemar Dutra, Nelson Gonçalves e afins. Sem contar que os meninos da banda, cada um traz suas referências pra dentro da musicalidade do Casapronta, e assim vamos construindo nosso universo e esperamos que o público entenda nossa proposta. O Casapronta posso dizer que um caldeirão de bruxos. Soul suspeito, mas tá bonito o “negoço”.

O disco está cheio de participações muito bacanas, de gente daqui de SSa e daí de Feira. Como foi reunir essa galera em torno desse disco?

Pablues: Bicho, essas participações, nem eu mesmo acredito que conseguimos colocar tanta gente foda nesse disco. A ficha demorou de cair. Quando começaram a chegar as primeiras canções da mixagem pra gente aprovar, é que a coisa foi se tornando real. O primeiro foi Martin Mendonça, né? Broder dos tempos do Callypso e um cara que sempre tive um máximo respeito e também por ser um dos caras que leva a música até as últimas consequências. A gente sempre se fala, ele de lá e eu de cá, e trocamos algumas ideias. Uma vez o Casapronta fez um show com o projeto dele em Serrinha em 2018. Ele adorou o som da banda. Daí convidar pra fazer a guitarra em “o visitante de carvão”, foi fácil. Gravou de lá de Sampa e me mandou. Ficou foda. Aí pensei em convidar uma galera, cada um pra cada música. Pow, foi loucura, mas deu tudo certo. Julio Caldas no banjo e bandolin, Pedro Pondé e sua “calma pra recomeçar”, sangue bom. Roça Sound, o novo fenômeno de Feira de Santana com seu sound e seu “mete dança”, putz, ficaram foda as participações. Juli, uma menina aqui de Feira também, que vai aparecer pra geral muito brevemente, participa em “Não tem mais volta”, um mix dicotômico, o hard e o suave, falando do encontro das vozes. Ficou linda a canção. Muitos amigos ainda participam e cada um deixou sua marca e nos apontou possibilidades para com nossa música. Muito aprendizado envolvido e principalmente, muita amizade e respeito. Sou muito grato a todxs que dedicaram um tempo pra visitar o Casapronta no disco. Véi, você num tem noção, é muita gente “bala” nesse disco e em todo o processo. Jera Cravo mixou o bagulho, imagina? O cara manda super bem. Grande amigo. Eu tenho um amigo no Canadá rsrsrs. Eu sinceramente não esperava ter essa galera no disco, não. Mas cada convite foi aceito de bate pronto, e vieram, vieram bonito. Muito feliz em poder ser respeitado por toda essa galera, e isso é saber que nossa história no meio da música vale o quanto pesa, e ter parceiros assim, como o Casapronta tem é bom demais. A palavra chave é: felicidade.

De fato é inescapável neste momento, mas o disco saiu também muito político. Pode comentar? 

Pablues: O disco tem seus momentos. Começa com uma intro tratando de uma assunto que muita gente passa em silêncio, que é a depressão e todas essas síndromes que destroem as pessoas por dentro. O caos interior de cada um, que bagunça tudo. Mas a gente mostra que tem um jeito, tem uma saída. Não chega a ser auto ajuda, mas é real. O amor é tema recorrente sempre, o produto que mais vende no mundo. Tem amor no disco. Duas canções (Une Versos e Meu sangue tem dendê) tem como tema a religiosidade, mais especificamente a religião do candomblé, e uma outra (O visitante de carvão) de forma bem humorada, trata da intolerância e do preconceito. É necessário falar sempre que possível desses assuntos. O mundo anda tão estranho e o Brasil vem acompanhando com suas intolerâncias, preconceitos,  racismos e demais crimes que são praticados contra o povo de santo, o povo preto, nossa gente “baiana”, que tanto fez por essa território. O Casapronta tem filhos do candomblé em sua formação, não todos, e entendemos que estamos numa guerra pra combater esses crimes contra os direitos“humanos”, e com nossa arma é a música, contribuindo com a conscientização daqueles ignorantes conservadores preconceituosos. Religião também é política. Discutir religião e política se faz necessário e urgente. E a gente fecha o disco com uma pedrada na vidraça, contra as violências, policial e do sistema, que calam, humilham e assassinam nosso povo preto e pobre, aqueles que levantam as vozes, nossas crianças, nossos jovens e seus direitos de ir e vir. Tudo isso velado por uma fé que mata através da bíblia e milícias na política, uma “ordem e progresso” pra poucos. Isso é histórico, né? São centenas de anos clamando por justiça e liberdade. Ainda bem que a arte resiste. Resistiremos.

A sonoridade ficou também muito bem resolvida, com uma alquimia entre o blues folk mais tradicional e um clima - não diria ritmos - bem baiano. Como foi trabalhar isso no estúdio?

Pablues: Tomei a liberdade pra produzir o disco. Quis colocar ali muito do que acredito e aprendi ao longo desses anos fazendo música autoral com o Clube e vivências com outros amigos e artistas. O folk é ponto de partida do trabalho com o Casapronta. Nomes como Neil Young, Jackie Greene, Bob Dylan, Carlos Posada, Ortinho, Renato Godá, e o maior artista do Brasil que é Raul Seixas, foram algumas de nossas referências para “startar” o projeto e o disco. As músicas, todas, já tocava no violão nas rodinhas de prosa e afins, e vez outra rolava nos ensaios. Algumas já estavam no repertório do Casapronta, como as versões de “Retalhos” de Posada e “É demais” de Sine Calmon. Então, basicamente os outros instrumentos foram sendo colocados em cima dessas bases de violão. Pode parecer simples, mas deu um trabalhinho. Muita coisa ficou tudo dentro do esperado, outras, a mágica aconteceu no estúdio – Estúdio Netuno em Feira de Santana, do querido PV – nos  surpreendendo, encaixando como uma luva. Esse clima de “Bahia” que você tanto fala, a gente deixou chegar numa boa. Até pra fazer o disco soar “livre”, sem amarras, mostrando realmente o que é que a Bahia pode ter. Tem rock? Tem. Tem folk? Tem. Blues, samba reggae e beat eletrônico? Tem sim, senhoras e senhores. A Bahia é possível em todos os ritmos, mundos e universos. Nós temos a Bahia bem guardada, tem que mostrar mais. Sem preconceitos. A música em primeiro lugar. Foi de uma certa forma bastante tranquilo fazer essa mistura inicial e montar esse repertório, até porque o técnico do estúdio, Pv (Paulo Vitor), contribuiu muito com as observações e deixando as coisas mais fluidas possíveis. Foi uma verdadeira vivência esse tempo no Estúdio Netuno. Temos um bom disco. Estamos felizes com o resultado.

Quais os planos do Casapronta? Tá rolando shows em Feira, outras cidades? E Salvador? Quando rola?

Pablues: O plano principal é poder divulgar o disco nos shows. As plataformas digitais já estão fazendo a parte delas e temos recebido um feedback maravilhoso. O nosso foco agora são os shows. É no palco que vemos a coisa funcionar “à vera”. Fizemos apresentações em Feira de Santana na Cervejaria Sertões e no Feira Noise divulgando o disco. Com esse período de festa e férias a coisa dá uma parada obrigatória. Já estamos montando a agenda para 2020,em circular no interior da Bahia, através de contatos de produtores parceiros – Feira, Serrinha, Cruz das Almas, Camaçari - e em Salvador devemos nos apresentar em fevereiro. Esquentar o couro subindo o Nordeste é nossa pretensão, além de tomar um sereno na terra da garoa. Uma coisa de cada vez, afinal os tempos atuais requerem cuidado e atenção. Os planos foram traçados...

O Clube de Patifes ainda existe? Tem planos?

Pablues: O Clube de Patifes ainda existe, sim. Demos uma recuada pra cada um resolver assuntos pessoais, pois é tempo de mudanças pra todos da banda. Mas não estamos parados totalmente. Em novembro, mês que completamos 21 anos de banda, fizemos um show no Feira Noise e foi vibrante, com direito a música nova no repertório. Iniciamos as gravações do nosso novo disco, intitulado “Macumba”, nos Estúdios T, em Salvador, com o queridíssimo André T, e já temos música nova gravada. O Clube de Patifes lança o primeiro single no começo de 2020. A música já tá pronta e se chama “Bebi com um Deus”. Vem coisa nova aí. Os planos são os mesmos: Trazer nossa música à vida e ocupar nosso espaço nesse “latifúndio cultural”.

Soledad (CE): sábado no Intercenas. Ft Julia Moraes
NUETAS

Eric Assmar e Ícaro

O prodigioso Eric Assmar convida Icaro Britto para uma session de blues no Solar Gastronomia Rio Vermelho.  Sexta-feira, 20h30.

Josyara e Soledad

Josyara é a última atração de 2019 no Intercenas Musicais. A baiana convida a cearense Soledad para show de abertura e participação. Sábado, 20 horas, no  Commons Studio Bar. R$ 10 (promocional), R$ 15 (lista), R$ 20 (porta).

Overdose sábado

A banda Overdose Alcoólica comanda a primeira edição do Samba Canção Fest recebendo uma pá de convidados e a banda Cães. Sábado, 17h, no   Bardos Bardos Casa da Trinca (Rio Vermelho). Sugere-se colaboração de R$ 10. Bagaceira e rock ‘n’ roll no talo.

quarta-feira, dezembro 11, 2019

VIVENDO O SONHO

Saga do blues baiano segue viva com a RestGate Blues, que lança primeiro EP dia 19

RestGate Blues, foto Nti Uirá
Salvo engano, o  blues chegou tarde à Bahia, ali na virada entre as décadas de 1980 e 1990, quando bandas como Talkin’ Blues e 14º Andar começaram a fazer sessions semanais em bares como o Atelier (Nazaré) e Club 45 (Barra).

Foi no primeiro que Jr. Wyll, que já ouvia blues em casa, nos vinis do pai, se batizou no gênero ao som do saudoso mestre Álvaro Assmar e de outros que estão aí até hoje, como Oyama Bittencourt (hoje Água Suja), Cláudio Lacerda (Ramal 12), Mario Danneman  etc.

Muitos anos se passaram, Wylsel (seu nome) se alistou na Marinha  e se tornou fuzileiro naval. Curiosamente, foi entre colegas de caserna que teve suas primeiras experiências tocando blues em uma banda.

Depois de dar baixa, formou com o amigo Viriato um duo. Ele na gaita e voz, Viriato no violão.

Em 2002, tocavam em um ponto de ônibus no bairro do Resgate.

De lá para cá, a RestGate Blues já teve diversas formações, se mudou para o Capão e depois voltou à capital, acabou e retornou.

A partir de 2014, Wylsel e sua esposa / produtora, Nanci Nunes, resolveram botar o antigo projeto pra frente, começando a se apresentar regularmente em bares e restaurantes da cidade.

Agora, finalmente, Jr. Wyll (voz e harmônica), Atila Caribé (guitarra), Uirá Tiago (bateria) e Rayan Ribeiro (baixo) lançam o primeiro trabalho da RestGate Blues: é o EP Vivendo Blues, que terá show de lançamento no dia 19 próximo (uma quinta-feira), no Jazz na Avenida (Boca do Rio).

No mesmo dia, o EPzinho de cinco faixas estará disponível no Spotify, iTunes, Amazon,  Google Play e YouTube.

“Gravamos tudo de forma totalmente independente, e com aquela velha ajuda de grandes amigos”, conta Wyll.

Blues on the road

Lançado o disquinho, que terá versão física em breve, garante Wyll, a ideia do quarteto é cair na estrada e tocar muito.

“Estamos preparando uma turnê por cidades da Bahia para 2020. Já se confirmaram Feira de Santana, Serrinha, Amargosa, Santo Antonio de Jesus e algumas cidades da Chapada Diamantina: Lençóis, Itaberaba, Palmeiras, Vale do Capão”, conta o bluesman.

“Também estão nos planos e em negociação, casas noturnas em Aracaju, São Paulo e Rio de Janeiro. Bem como alguns festivais de blues pelo Brasil que também já sinalizaram interesse nos nossos attacks”, afirma.

Além disso, a RestGate pretende lançar simultâneo ao EP de estúdio uma versão acústica, que já está pronta e deve sair também estes dias.

RestGate Blues / lançamento Vivendo blues / Dia 19 (quinta-feira), 19 horas / Jazz na Avenida / Colaborativo

EXTRA: Jr. Wyll relata sua história e a da RestGate Blues em suas próprias palavras:

RestGate Blues, foto Nti Uirá
"Então, da formação original hoje só temos o Wyll (eu) o vocalista e harmonicista. Inicialmente eramos apenas um duo (voz e harmônica - Wyll, e violão - Viriato Sampaio), que tocava num ponto de ônibus no bairro do Resgate em Salvador, em 2002. Em 2009 mudei para o Vale do Capão, onde passei a tocar sozinho na taberna de um cordobês. Dois anos depois, o Viriato que acabava de concluir a sua faculdade de engenharia, foi também para o Vale e voltamos a tocar juntos. E no réveillon de 2010/2011, tocamos pela primeira vez com o formato atual: voz, harmônica, guitarra, baixo e bateria. Foi quando o duo virou banda, no Vale do Capão. Um ano depois, percebendo que algo estava dando certo naquele projeto, e somando isto à vontade de continuar com o sonho antigo de fazer blues, e com o término de um casamento no Vale do Capão, resolvi que não ficaria por lá, pois já estávamos tendo alguns convites para tocar em Salvador e que no Vale não seria possível seguir com o projeto sem ter muitas dificuldades (não que em Salvador fosse ser fácil..rsrs). Acontece que, pouco tempo depois em uma visita ao Vale, juntamente com o Viriato, ele iniciou um relacionamento e resolveu ficar por lá. Então voltei a procurar um guitarrista em Salvador que soubesse tocar o blues - missão quase impossível (até hoje)! Tendo em vista que eu não fazia parte do grupo fechado de músicos que se dedicavam ao estilo em nossa cidade. E isso iniciou um processo de entra e sai de músicos na banda, que atrapalhava muito os processos e a intenção de gravar. Tamanha demora para o lançamento de um trabalho, reside basicamente aí. Sou um ex-fuzileiro e tive a minha primeira banda de blues no quartel. Lá, tinha acesso a excelentes músicos que tocam todo tipo de música. Inclusive o blues! Só que a partir do momento que saí de lá, e não conhecia ninguém que sequer ouvisse o blues - por mais que frequentasse - aos 20 / 21 anos, o Atelier Presciliano Silva e conhecesse o nome de cada um dos caras que lá tocavam. Então foi muito difícil formar e manter uma formação longeva de uma banda de blues, em Salvador, com músicos que não eram do blues. Este primeiro guitarrista do qual falei antes, quando o conheci, estava começando a aprender o violão, e tocava uma coisa que ele chamava de 'funkeado' (rs). Ele pegava musicas como Odara do Caetano, e umas coisas da Ivete Sangalo, e tocava em ritmo de funk. Ao ver que ele se iniciava no instrumento, tratei de contaminá-lo logo com 200 CDs de blues dos mais variados. E quando ele começou a tirar alguns sons, começamos a tocar no tal ponto de ônibus. Pouco tempo depois, comecei a encorajá-lo a comprar uma guitarra. Foi quando partimos para tocar em bares como o Etrusco, Whiskritório, Sankofa e Zen Thai, bares de Salvador onde tocamos muitas e muitas vezes, a convite da amiga, atriz e cantora Denise Correia, da banda Na Veia da Nega, que nos deu uma força imensa no inicio dessa trajetória, abrindo espaço para tocarmos em vários lugares na cidade. Cerca de um ano depois quando conheci a Nanci Nunes - minha mulher, cuja entrada na banda como produtora ajudou a elevar com muito trabalho, organização e muita dedicação o nível do projeto - começamos a tocar no D'Venetta, no Santo Antonio, onde passamos quase três anos tocando todas as quartas, e reunindo um publico que já começava a disseminar por aí o nosso trabalho".



"O blues chegou à Salvador no final dos anos 80, talvez mais no começo dos 90. O Atelier se inicia em '93. O Atelier reunia essa turma! E eu frequentava o lugar. Ia com uns amigos do quartel e ficávamos lá meio 'peixe fora d'água', querendo tocar, mas sem coragem para abordar os caras. Era pra gente um lugar especial, onde caras especiais (Álvaro Assmar, Mario Danneman, Jerry Marlon, Oyama Bittencourt, Guiga, Miguel Arcanjo, Mauricio Simões, Carlos Lacerda, entre outros...), estavam fazendo algo que gostaríamos de fazer. Blues. Digo que fui 'iniciado' no blues dentro de casa pelos meus pais, ainda que eles não tivessem noção de que faziam isso - pois tudo era dentro da minha cabeça e coração, e depois de adulto, foi que eu também concretizei isso. Mas eu não encontrava esse tipo de música fora de casa. E descobrir o Atelier foi incrivel! Eu nunca fui do Rock. Curtia o LP dos Secos e Molhados aos 6 anos de idade, por conta de duas musicas e que 'coincidentemente' eram dois blues - ou pareciam muito: Mulher Barriguda e Prece Cósmica. Na primeiro, pode-se ouvir uma gaita estridente, e era o que me chamava a atenção. Um dia encontrei numa coleção de chaveiros da minha mãe, um que era uma pequena gaita, e passei fazer barulho com ela quando percebi que tinha o mesmo som do instrumento que eu gostava na música do Secos & Molhados. Até que entre os tantos LPs que o meu velho comprava surgiram BB King, Junior Wells e mais tarde o Harp Attack (um álbum que reúne Billy Branch, Junior Wells, James Cotton e Carey Bell, quatro dos maiores harmonicistas do mundo), e isso pra mim foi a maior pancada! Dos outros integrantes da gang, apenas o Átila (guitarrista) já veio por caminhos de blues, é ex-integrante da Meia Noite no Ali, banda parceira que se fez presente nas casas noturnas da cidade há uns cinco ou seis anos atras. E que acabou. O Uirá (baterista) tem outras influências, vindo a conhecer o blues após entrar na banda primeiramente como roadie, depois passou a substituir o Samuel (baterista entre 2016 / 17), passando a assumir a bateria da gang. E o Rayan (baixista) está pouco mais de um ano na gang, é estudante de musica popular na UFBA e também tem uma influência bastante variada. Iniciando seu contato com o blues, também ao entrar pra gang".

"Gravamos Vivendo Blues que é o single do EP, há dois anos no Estúdios WR. No 'WR de Portas Abertas', um projeto que viabilizou a muitos artistas o sonho de gravar com extrema qualidade uma música. Isso nos ajudou muito e nos aproximou da possibilidade de um lançamento. Só que não basta ter a música para lançá-la, né? Então todas as outras coisas que rodeiam este processo - e muito disso é dinheiro, foram e voltaram varias vezes, inclusive com o anuncio de um lançamento em 2018, que não aconteceu. Neste ano de 2019 decidimos que não dava para terminarmos mais um ano sem lançar um trabalho que já estava completamente concebido, e que só precisava de ação. E então metemos a mão na massa! Gravamos tudo de forma totalmente independente, e com aquela velha ajuda de grandes amigos. Um deles, o Diogo Rios, cantor e compositor, possui equipamentos e muito boa vontade, de cara topou e incentivou muito para que iniciássemos este processo logo. Gravamos na casa dele guitarras, baixo, gaita e vozes com um amigo do Diogo, que possui uma placa e que também se disponibilizou a um custo de amigo fazer a gravação. Por questão de tempo, a bateria só foi ser gravada depois... o que fez com que quase tudo tivesse que ser gravado novamente rsrs. Pois ficou tudo meio fora do beat! Então pegamos quase do zero, gravamos uma das baterias inicialmente no estúdio Carmo44, da banda Vivendo do Ócio, com os irmãos Luca e Davide Bori. E demos continuidade no estúdio O Puleiro, do produtor e amigo Rodrigo Medeiros - dessa vez, com um novo amigo e grande promessa para a produção musical - ao meu ver, que é o Victor Jessy, que também é cantor e compositor e estagia na WR, onde refizemos as vozes. Daí foi necessário regravar algumas guitarras e pronto, o Victor começou a mixar. Foi uma semana que se encerrou no dia 3 último, com uma sessão que começou 9h da manhã e acabou as 23h no estúdio O Puleiro, em Piatã. Acredito que hoje seja perfeitamente possível se virar sem o produtor fonográfico profissional. Evidentemente que se o artista leva realmente a sério o seu trabalho e deseja lançar bons materiais, precisa estudar e trabalhar muito para conhecer profundamente o caminho no qual está passando. Existem grandes exemplos não somente no Brasil, e não somente de artistas novos, mas muitos grandes artistas que conhecem o caminho e se desenrolam independentemente. Penso que isso poderá ser cada vez mais possível para bandas novas e independentes".

NUETAS

Amigos Velhos sexta

Uma das melhores novidades do rock local em 2019, a banda Meus Amigos Estão Velhos faz seu último show do ano no esquemão street do Bardos Bardos. A coluna recomenda. Sexta, 19h, sugere-se uma colaboração de R$ 10.

Carne Doce, Andréa

Alimentada por certo hype, a banda goiana Carne Doce estreia em Salvador sábado, na despedida do TOCA! 2019. Andrea Martins (Canto dos Malditos na Terra do Nunca) faz as honras da casa, apresentando set list do primeiro álbum solo (sai em 2020). 20 horas, no Pátio do Goethe Institut, R$ 50, Lote 2: R$ 30 e R$ 60.

Scalene, Informais, Iorigun

A banda brasiliense Scalene volta à cidade para show com as baianas Os Informais e Iorigun. Domingo, 16h, no Portela Café. R$ 35 (Sympla).

quarta-feira, dezembro 04, 2019

O AUGE DA (REAL) INCORREÇÃO POLÍTICA EM EDIÇÃO DE LUXO E CAPA DURA

Clássico dos anos 1980,  versão psicopata (e adulta) de Tom & Jerry são testemunho da genialidade de Massimo Mattioli

Antes de mais nada, cabe um aviso: este álbum de histórias em quadrinhos não é para crianças. Está lá, na contracapa, em bom português: “Impróprio para menores de 18 anos”.

Isto posto, cabe outro aviso: este material também não é indicado para cristãos fundamentalistas, (falsos) moralistas de rede social e conservadores em geral.

Aviso dado. Depois não adianta ficar choramingando por aí de HQs satanistas que querem acabar com a família tradicional.

Até porque é  verdade: Squeak The Mouse (Guincha o Camundongo, em desnecessária tradução literal), do italiano Massimo Mattioli, é uma das HQs mais depravadas, imorais, violentas, crueis, pornográficas, alucinadas e profanas de todos os tempos.

Ao mesmo tempo, é  também uma das mais ousadas, engraçadas, criativas e divertidas.

Para aprecia-la, não precisa nem saber ler: as historietas são mudas, não tem sequer diálogo. Os únicos pré-requisitos para apreciar Squeak TheMouse são aqueles já citados: não ser nem criança (depois dos 18 tá liberado) nem conservador “guardião da moral e dos bons costumes”.

O aviso explícito de que a HQ não é indicada para crianças ainda tem outra justificativa bem óbvia: seus personagens podem ser facilmente confundidos com clássicos personagens infantis, como Tom & Jerry ou Frajola & Piupiu ou Papa-Léguas e o Coiote.

Trata-se de um gato e um rato, fazendo o que bons gatos e ratos de cartum fazem: correm um atrás do outro, preparam armadilhas mútuas e, eventualmente, são violentos.

Sim, não há como negar que os desenhos infantis de antigamente podiam ser bem violentos. Não faltavam marretadas, tiros (de revólver, escopeta e até canhão), facadas, machadadas, pedradas etc.

O que diferencia Squeak The Mouse daqueles cartuns infantis de antigamente é que esta HQ mostra, explicitamente, tudo o que a Hanna-Barbera e os Warner Brothers escondiam.

Quando o gato dá uma machadada no rato, divide-o ao meio, com todo o sangue e vísceras que tal cena tem direito.

É como se Evil Dead, a clássica série de terror gore de Sam Raimi, fizesse um crossover com Tom & Jerry.

E assim vai, aqui usa-se de tudo: tiro, bomba, lâminas em geral, eletrocussão, afogamento, fogo, motosserra etc.

Ah, outro detalhe. também tem sexo. Sexo explícito. Muito. E interespécies, ainda por cima. Homossexuais, também.

Enfim, não deixem essa HQ chegar na TFP, senão as tochas e ancinhos podem sair do armário e tomar as ruas.

Gênio do mal

Tudo isso é só para dizer: Massimo Mattioli, esse incorrigível enfant terrible morto aos 75 anos em agosto último, era um gênio da narrativa sequencial.

Essas HQs, um pequeno pedaço de seu legado, embalado em uma linda edição capa dura da editora Veneta, são um verdadeiro exemplo de narrativa puramente visual.

Cada quadrinho está firmemente ancorado em uma narrativa absolutamente amarrada, uma sequência matematicamente perfeita de sexo, dor, morte, alucinação e risos.

É uma obra que também reflete a visão do politicamente incorreto que se tinha à época, uma visão bem diferente da de hoje, quando o que se toma por "politicamente incorreto" é um falso direito auto-arrogado de ser abertamente racista, misógino ou mesmo fascista.

Parte de uma genial geração de quadrinistas europeus, Mattioli teve boa parte dessas HQs  publicadas no Brasil há coisa de 30 anos, na saudosa revista Animal.

Agora é a hora de novas gerações terem contato com a obra deste gênio do mal. No melhor sentido.

Squeak The Mouse / Massimo Mattioli / Editora Veneta / 160 páginas / R$ 99,90

terça-feira, dezembro 03, 2019

JAZZ & STARTUP

Lançamento da plataforma E-Musicall tem shows internacionais imperdíveis de jazz

Meddy Gerville, pianistae cantor da Ilha de Reunião
Sim, não está fácil para ninguém. Mais do que nunca, soluções novas e criativas são necessárias em todas as áreas da produção de riqueza – inclusive na área cultural. Papo de startup, empreendedorismo e tal.

Neste sábado, o músico baiano Gerson Silva e o especialista em startups e tecnologia John Oliver lançam a plataforma E-Musicall. Trata-se de um instrumento concebido para ser uma multiplataforma de serviços e produtos com diversas funcionalidades para músicos e  público em geral.

Ah, não tem paciência para essas conversas? Então aqui vai um incentivo: no mesmo evento haverá dois shows internacionais de  responsa para apreciadores de jazz e (boa música em geral): Meddy Gerville Trio e Richard Bona.

O primeiro é o maior nome da música da Ilha de Reunião, posse francesa na costa africana do Oceano Índico.

E Bona é um virtuose camaronês do contrabaixo. Ambos, músicos com livre trânsito no agitado circuito de jazz europeu.

Voltando ao E-Musicall, Gérson explica melhor do que se trata: “Criado por meio de tecnologia Blockchain, o E-Musicall  reúne serviços de gestão para investimentos financeiros e tecnologia direcionada ao mercado da música. O projeto foi divido em seis núcleos que podem ser melhor vistos e explicados no e-musicall.com”.

Segundo Gérson, os benefícios aos músicos podem ir desde a compra de equipamentos, acessórios e instrumentos “com preços totalmente diferenciados e acessíveis comparados aos preços encontrados no Brasil, até oportunidades de monetizar o capital investido. Nossa parceria com a empresa BuySell para esse tipo de monetização pode ser iniciada a partir do investimento mínimo de 10 dólares”, detalha Gérson.

Além de operar nestes termos (aqui resumidos bem por alto), Gerson e o E-Musicall pretendem seguir trazendo mais grandes músicos de fora da Bahia e do Brasil para se apresentar em Salvador.

"Perfeitamente observado por você, a intenção desse departamento de eventos do E-Musicall é compartilhar informações artísticas das áfricas, como continente enorme e importante para nossa formação de cultura musical Afro-brasileira e baiana. Um calendário de eventos estará sendo apresentado no site já já, trazendo estilos artistas que fazem músicas inteligentes no mundo como a dos artistas Karim Ziad (da Argélia), Etienne MBappé (de Camarões), Jean Philipp Fant Fant (de Guadalupe), são alguns dos nomes que já conversei por ter aproximação com eles em trabalhos que já fiz na Europa durante esses muitos anos que atuo como profissional da música. Faço questão de não trazer nada tão convencional para que possamos ter acesso a esse tipo de cultura musical , mesmo não tendo apoio financeiro de nenhum departamento de cultura do estado. Desejo muito que um dia possamos estar juntos pensando possibilidades de inclusão cultural e tecnológica a partir da cadeia da música , que gera o segundo maior PIB econômico do Brasil. Enquanto isso não acontece, vamos fazendo nossa parte e estamos abertos totalmente a bons diálogos inovadores", conclui Gerson.

Fusão em Reunião

O camaronês Richard Bona, grande nome do contrabaixo
Agora cabe aos interessados ir lá e ver se o negócio é quente, mesmo. O que com certeza é quente é o som do Meddy Gerville Trio, uma fusão dos ritmos tradicionais de Reunião, maloya e sega, com jazz.

“Em Reunião, os ritmos tradicionais são intimamente conectados com a história da ilha e o triste passado de escravidão. Herdamos as tradições musicais da África e de Madagascar, enriquecidas com influências indianas, chinesas e europeias”, detalha Gerville, em entrevista por email.

No repertório, composições autorais e até clássicos como La Bohéme. “Não raro, dizem que minha música tem muito de sul-americana. Isso pra mim é uma honra. Já ouvi muito João Gilberto e Tom Jobim. E no meu último disco, tive o extremo privilégio de contar com o bandolim de Hamilton de Holanda em uma gravação”, conta.

"Para nosso primeiro show em Salvador, terei a honra de compartilhar com o público algumas novas composições que estarão no próximo álbum, a ser lançado ano que vem. Claro que minhas composições mais antigas também estarão no set list e porque não, La Bohème. Também terei o prazer de receber o Gerson Silva no palco para uma ou duas músicas. Convido todos os amantes da música para se juntar a nós. Mal posso esperar para chegar e tocar neste lindo país", conclui Gerville.

Lançamento: Plataforma E-Musicall / sábado, 17 horas / Com  Meddy Gerville Trio e Richard Bona com Alfredo Rodriguez e Pedrito Martinez /  Trapiche Barnabé / R$ 100 e R$ 50 / Vendas: www.balcaodeingressos.com.br ou nos pontos Balcão de Ingressos



NUETAS

Vanguart Acoustic

Toda a classe e a chinfra da banda Vanguart (MT) é a atração do próximo Toca! no Pátio do Goethe Institut. Helio Flanders & cia trazem o show Vanguart Acoustic Night. O sergipano Arthur Matos abre o evento. Sábado, 18h30, R$ 50 (meias esgotadas).

Reggae night, Pelô

A festa Reggae Jambras traz direto da Jamaica as bandas Suga Roy & Fireball Crew e Conrad Crystal and Zareb. No repertório, os clássicos do gônero. Banda Cativeiro, Edy Vox, Dinho Negryne, Thomé Viana e Mavi fazem as honras da casa. Sábado, 19 horas, no Largo Teresa Batista, R$ 20.

Malcriado Mudo

Malcriado Mudo faz show divertidíssimo no Bardos Bardos. Sábado, 19h, R$ 10.

quarta-feira, novembro 27, 2019

ROCK ARROCHA FILOSÓFICO GAIATO

Popular, raulseixista  e com toques de arrocha, estreia solo de Pessoa tem show sexta 

"Qual foi, onde é que tá rolando treta aí"? Pessoa em foto de Adriano Vaz
O que aconteceria se Raul Seixas, Odair José e Silvano Salles saíssem para tomar umas?

Possivelmente, algo parecido com  Esse é Pra Tocar no Streaming, EP de estreia do cantor Pessoa.

Interessou? Então ouve lá no... streaming – e compareça ao show de lançamento nesta sexta-feira, no Tropos.

 Para quem não conhece, esclareço: Pessoa é o novo nome artístico de Leandro Cebola Pessoa.

Desde a década passada, essa simpática figura vem militando no cenário independente local, à frente das bandas Truanescos (já extinta) e Callangazoo (em pausa).

"Com a pausa das atividades da Callangazoo, comecei a fazer aulas de piano com o maestro Isaías Rabelo e o chamado da música foi sendo canalizado para novas composições, entrei em um período fértil. Cada canção que surgia me reconectava com alguma outra guardada no baú. Até que aconteceu um reencontro com Tempo é Bom – um reggae antigo que naquele momento dialogou comigo de uma forma diferente da de quando havia escrito. O desejo de cantá-la, de levá-la às pessoas me colocou em movimento: fui procurar o produtor Gabriel Franco que me apresentou o guitarrista Irênio Neto. Juntos trabalhamos nessa faixa que, lançada em maio, se tornou o meu single de estreia. Foi nesse processo de realizá-la e de levá-la à escuta das pessoas que assumi a trajetória solo. Me entendo como um cantautor que vive hoje a oportunidade de trabalhar com compositorxs, músicos, produtorxs e cantorxs que admiro e, ao mesmo tempo, nenhum impedimento quanto a vir integrar uma banda. É um nascimento com todas as dores e delícias decorrentes de assumir os rumos da própria expressão artística", conta o artista.

Ao colunista sempre agradou o estilo leve e comunicativo dos trabalhos anteriores de Cebola – ops, Pessoa –, um fiel aprendiz da pegada sincerona e bem humorada de Raulzito.

Agora, com Esse é Pra Tocar no Streaming, ele alia essa pegada com alguns toques do arrocha baiano, como seus teclados de churrascaria e levadas aboleradas em duas das quatro faixas do EP.

"Não sou adepto de fórmulas musicais. Como compositor penso que aplicar fórmulas é se limitar na tentativa de forçar algo que tem muito mais força ao natural. Porque a expressão da genética musical – daquilo que você assimilou – é algo natural. O que acontece é que pra sair também de modo natural, para fluir como suor, é necessário tempo, paciência, dedicação. Busco enfrentar essas inquietações, fazer o cooper criativo, cultivar o ócio", ensina.

A faixa-título, a mais raulseixista, é uma pérola na linha Cowboy Fora Lei (1986), com direito à linda guitarra pedal steel do mestre Júlio Caldas: “Nego me diz  que a onda é o samba roque / No mês que vem já tocando pop / É tanto faz, tanto fez / Lacrar na rede é que tá dando ibope / Aperta o play, se não gostou, stop / E o mercado, seguro nas leis”.

“Sou um grande apreciador da obra do Raul – foi ela quem me levou ao violão, à canção, à literatura  – e Essa É Pra Tocar no Streaming eu escrevi como agradecimento ao legado de liberdade artística que ele nos deixou”, conta Pessoa.

Em A Materialidade do Rolê, a pegada arrocha surge com mais força em meio a uma letra de tons filosóficos, na qual vaticina no refrão: "falta verdade no rolê".

"É a constatação saudosa de um eu lírico que busca no rolê por interações sólidas que a modernidade líquida inevitavelmente vai dissolvendo. Escrevi essa música com o amigo Murillo Bahia durante o São João do Capão. Eu tinha acabado de ler o Bauman ('modernidade líquida' é um conceito desenvolvido pelo sociólogo polonês Zygmunt Bauman), e estava espantado com a quantidade de pessoas que o referenciavam de maneira inapropriada", explica Pessoa.

Um Mercedes, um violão, um calor no coração...
Provocação à produção

Curiosamente, o EP foi produzido à quatro mãos (fora músicos convidados) e à distância por Pessoa e o produtor Iago Guimarães, de Juazeiro.

“Eu estava escrevendo uma matéria sobre produtores que trabalham online e fui conversar com Iago, que conheci em uma das apresentações da Callangazoo em Juazeiro. No fim do papo ele lançou uma provocação: ‘tu quer saber mesmo como é produzir à distância? Vamos fazer uma música tua!’”.

Desafio lançado, Pessoa e Iago começaram a trabalhar via webconferências.

“Criamos frases de guitarra, trocamos referências e fizemos os ajustes de mixagem. Fiquei muito contente com o resultado, me reconheço ali”, diz.

“O plano é trabalhar o show do EP ao longo do verão que já se anuncia. Ainda não encontrei local para realizar meu próprio ensaio para a temporada, mas aceito convites - tô facin, facin. Agora a  vontade é levar o show às praças como Feira de Santana, Juazeiro, Imbassaí, Vale do Capão”, conclui.

Pessoa: Show de lançamento Esse é Pra Tocar no Streaming  / Sexta-feira, 21h / Tropos Gastro Bar (Rua Ilhéus, 214, Rio Vermelho) / R$ 10 (com direito a uma bebida)



NUETAS

Solo Sessions 2

Álisson Lima (Pastel de Miolos), Sohl (A Flauta Vértebra) e André Dias (Exoesqueleto) fazem a segunda edição da Solo Sessions. Voz, violão e ideias próprias. Quinta-feira, 19 horas, no Bardos Bardos. Pague quanto puder.

Bruma com Iracema

Bruma (folk rock de Salvador) e Dona Iracema (rock funk queer regional)  de Vitória da Conquista) fazem show juntas  sábado, no Lebowski Pub. A coluna recomenda ambas. Experimente. 21h, R$ 15.

Pitty e Teago free

Pitty e Teago Oliveira fazem show sábado na Concha Acústica do TCA com ingressos grátis. Tem que buscar no www.ingressorapido.com.br/tca ou na bilheteria do teatro. Capaz de já ter esgotado, mas vai que...

quarta-feira, novembro 13, 2019

A ARTE DA FUGA

Escapo, de Paul Pope, é mais uma chance de conhecer o trabalho deste singular quadrinista norte-americano

Um dos mais aclamados autores de HQ underground / alternativa dos  últimos 20 anos, Paul Pope ainda é meio que um segredo bem guardado entre os apreciadores da arte sequencial no Brasil.

Um bom ponto de partida para conhecer sua obra é justamente um de seus trabalhos iniciais: Escapo (1999), lançado  por aqui este ano, pela Mino Editora.

Na superfície, abrir uma obra de Pope é de cara um choque: de tão dinâmica e enérgica, sua arte parece querer pular para fora da página, puxar o leitor pela camisa e lhe aplicar uns tabefes.

Como todo bom quadrinista, Pope foi / é um ávido leitor dos mestres de três tradições da HQ planetária: a escola norte-americana (Jack Kirby, Alex Toth), a escola italiana (Hugo Pratt, Milo Manara) e a escola japonesa (Goseki Kojima, Katsuhiro Otomo).

Com um extraordinário poder de síntese expresso no próprio traço, Pope reúne características muito identificáveis dessas três tradições quadrinísticas em suas obras.

Estão lá a exatidão do traço de Toth, as energias cósmicas fora de controle e o maquinário psicodélico  de Kirby, a mitologia sutil de Pratt, o erotismo estiloso de Manara, o apuro estético de Kojima e a explosão cinética de Otomo – tudo retrabalhado dentro da lógica de um universo narrativo muito próprio e cheio de uma personalidade rebelde indomável.

Todas essas qualidades estão muito evidentes em Escapo – possivelmente uma de suas graphic novels mais pessoais e simbólicas.

Máquina de moer carne


Em termos objetivos de narrativa, a trama é um fiapo que pode ser resumido em duas ou três linhas: Escapo – este é o nome do personagem principal – é um mestre das fugas à la Houdini (que trabalha em um circo, sempre elegante em  seu traje de esqueleto.

No seu dia a dia, encara provas cada vez mais absurdas e inescapáveis, enquanto encara uma crise de auto-confiança e nutre uma paixão mal-disfarçada por Aerobella, “a rainha da corda bamba” – que na HQ mal parece  saída da adolescência.

A graça de Escapo, a HQ, reside menos na esquelética linha narrativa e mais na velocidade com que Pope conduz o leitor para cima e para baixo sob a lona do circo, para dentro e para fora das exóticas armadilhas que ele tem de se esforçar para vencer.

Absolutamente kirbyanas (em sua fase mais vistosa, linha Eternos e O Quarto Mundo), as armadilhas de Pope para seu personagem são literamente máquinas de moer carne, sobre as quais Escapo é pendurado  de cabeça para baixo amarrado, acorrentado e na camisa de força.

Desnecessário  dizer, essas sequências de fuga são ao mesmo tempo um espetáculo visual explosivo e emocionantes em sua narrativa.

Herói relutante e exótico em um cenário circense felinniano, Escapo é um espelho do próprio Pope, um garoto de Ohio que deixou aquela caipirice redneck para trás e se jogou na máquina de moer carne  mundial, conquistando trabalhos diversificados no Japão (na megaeditora Kodansha), na Itália (como designer para a griffe Diesel) e em Nova Iorque (para a griffe DKNY).

Já desenhou capas de álbuns para bandas e festivais de rock, além de ganhar prêmios Eisner com HQs como Bom de Briga (Battling Boy, Companhia das Letras, 2014), 100% (Ópera Graphica, 2006) e Batman Ano 100 (Panini, 2006, relançada em edição de capa dura este mês).

Vale um elogio ainda à edição da Mino, que além da capa dura com papel de boa qualidade, convocou Pedro Cobiaco (Cais, 2016), filho do lendário Fábio Cobiaco, para recriar em português os letterings à mão de Pope, um trabalho muito delicado, tamanha a integração entre a arte e o texto na obra.

Escapo / Paul Pope / Mino/ 96 páginas/ R$ R$ 44,90/ Capa dura, P&B / www.editoramino.com.br

terça-feira, novembro 12, 2019

MELANCOLIA FORTALEZENSE

Cearenses do Selvagens a Procura de Lei lançam quarto disco e tocam no Feira Noise

SAPDL, foto Igor de Melo
Uma das melhores bandas surgidas na última década, a cearense Selvagens à Procura de Lei (ou apenas SAPDL) consolida uma carreira que parece bastante estável com seu quarto álbum, Paraíso Portátil.

Bem assessorados, contaram com a produção exata do experiente   Paul Ralphes, galês radicado no Brasil desde 1986, ex-diretor artístico da Universal Music.

E já saem em turnê por algumas cidades brasileiras: de Porto Alegre a Porto Velho, com direito a uma passagem por Feira de Santana, para o festival Feira Noise.

Trabalho mais introspectivo do quarteto, Paraíso Portátil marca uma espécie de reinvenção e amadurecimento (com o perdão do clichê) dos membros da banda, agora já mais experientes e vividos, após mais de uma década de lida na música.

“Toda carreira, seja na arte ou acadêmica, você tem um tempo de uns dez anos até poder realmente bater no peito e dizer que venceu, olhar para trás e ver se faz sentido”, afirma Gabriel Aragão (guitarra e vocal).

“Temos orgulho de dizer que sim, passamos por dificuldades. Mas tudo é difícil. Ser médico ou engenheiro é difícil. E ser músico também”, diz.

De sonoridade leve, Paraíso Portátil também abarca alguma psicodelia contemporânea (sem fritação, via Tame Impala, War on Drugs) e brasilidade (via Clube da Esquina).

Se pega  leve no som, é um pouco mais soturno nos temas.  “Arrisco dizer que é nosso disco mais sincero, muito intimista. Toca em temas difíceis  como depressão, questionamentos, a busca de um caminho a seguir e até suicídio”, conta.

“Mas também fala de amor. Apesar de abordar temas difíceis, tem uma redenção, uma luz, uma esperança, o olhar para dentro de si, superação”, pontua Gabriel.

O paraíso dentro de você

SAPDL, foto Igor de Melo
O músico faz inclusive um comparativo com o álbum anterior, Praieiro (2016), que, como o nome explicita, era um trabalho mais solar.

“Paraíso Portátil é como um espelho ao contrário do Praieiro, que era um disco extrovertido. Paraíso é introvertido. Praieiro é o sol, Paraíso é a lua”, observa.

“O Paraíso Portátil vem da frase de que, quando você descobre que a paz está dentro de você, você carrega dentro de si um ‘paraíso portátil’, que acessa em qualquer lugar. Esse é o conceito do disco”, detalha.

Na estrada a partir desta semana, o SAPDL vai passar por sete cidades na primeira perna da turnê do discos até chegar ao Feira Noise no dia 24.

“Já tocamos algumas vezes em Feira e sempre foi muito legal, adoramos o público de lá. No lado do rock, do pop, os artistas circulam bem pelo interior. Lá no Ceará vamos muito para Juazeiro do Norte, Quixadá, Sobral”, conclui.

Ouça: www.sapdl.com



NUETAS

Lazzo, Dão, Larissa

Quinta-feira tem Dão, Lazzo Matumbi e Larissa Luz inaugurando o projeto Mixturado. No Largo Pedro Archanjo, Pelourinho, 20h, R$ 40 e R$ 20 (1º lote no Sympla).

Dom Sá e Sequestro

As bandas Dom Sá e Sequestro Relâmpago animam a sexta-feira de feriadão no reduto Bardos Bardos. 19 horas, pague quanto quiser.

Héloa e Okwei

A cantora sergipana Héloa aporta no Commons Studio Bar para mais uma edição do  Intercenas Musicais. Ela vem lançar seu novo álbum, Opará, nome pelo qual os indígenas Dzibukuá chamam o Rio São Francisco.  A diva soul nigeriana residente Okwei Odili faz as honras da casa. Sexta-feira, 23h, R$ 10.

quarta-feira, outubro 23, 2019

A CRÔNICA SOCIAL DE UM PAÍS CONTADA NA CARNE

Em Uma História da Tatuagem no Brasil, Silvana Jeha traça a formação de nossa sociedade. Lançamento amanhã no MAB

Acima e abaixo: imagens do livro. Divulgação
Se “toda obra de arte é autobiográfica”, dizia Lucian Freud (1922-2011), imagina o que deve ser a tatuagem, arte entranhada diretamente na carne do apreciador?

Em conjunto, talvez as tatuagens possam nos dizer algo sobre o próprio povo, sua história, seus costumes.

No livro Uma História da Tatuagem no Brasil - Do século XIX à década de 1970, a historiadora Silvana Jeha nos oferece justamente isso: um pouco da história social do Brasil a partir da tatuagem.

Amanhã, ela estará em Salvador para lançar seu livro, uma belíssima peça de história popular brasileira (em edição de luxo, com muitas imagens e capa dura), no Museu de Arte da Bahia.

Como tem feito nos lançamentos em outras praças, haverá uma roda de conversa com a autora e um tatuador veterano convidado.

“Em Salvador será o Bingha, tatuador pioneiro da cidade (desde 1980) que aprendeu a tatuar com um coreano no Rio de Janeiro”, conta Silvana.

Ela pretende juntar os depoimentos que vem colhendo desses tatuadores veteranos para produzir um outro documento e passar a sabedoria destes mestres adiante, para os artistas mais jovens.

“Há muitos e muitas que me escrevem, sedentos de informações dessa história que é difícil de pesquisar justamente por ser popular. E infelizmente, a maior parte da documentação está em arquivos judiciários e páginas policiais dos jornais”, conta.

“A tatuagem é uma arte e uma cultura muito diversa, merece um olhar mais atento dos pesquisadores da cultura. Merece um lugar mais nobre na história cultural do Brasil e do mundo”, afirma Silvana.

Religiosidade e afetos

No livro, a pesquisadora enfoca a tatuagem antes da massificação que ocorreu no Brasil (e no mundo) dos anos 1980 / 90 para cá.

Para os mais jovens, pode parecer inimaginável, mas até os anos 1980, a tatuagem não maculava as “carnes nobres” de moças e senhoras de família.

Tatuagem era coisa de trabalhador braçal, marinheiro, prostituta,  soldado raso – além de costume entre alguns povos  africanos, indígenas e asiáticos.

"Há muitas suposições para esse fenômeno de massa e realmente muito universalizado que é a tatuagem. Para o caso brasileiro, eu sempre faço uma correlação com o samba, a capoeira, o funk: antes fenômenos exclusivamente populares e criminalizados, sendo que o funk ainda é. No livro, as pessoas tatuadas são lavradores, pedreiros, prostitutas, lavadeiras, pescadores, barbeiros, operários etc. Como a cultura de baixo atrai as classes mais abastadas? Acho que tem um tanto de desejo de transgredir as normas burguesas que são muito opressoras e conservadoras. Não é só isso, mas passa por aí. Historicamente, no ocidente, a tatuagem começou a se espalhar em outros grupos nas décadas de 1960 e 1970. Época de revoluções comportamentais na sexualidade, na cultura. São os hippies, os punks, roqueiros, gangues variadas, surfistas urbanos, entre outros, que começam a se tatuar nesse período. Tribos urbanas que foram ditando comportamentos que se tornaram depois fenômenos de massa. Ao que parece que são eles em alguma medida que fazem essa passagem para a popularização. Mas esse é um tema muito vasto que merece mais pesquisa", observa.

“No livro não trato dessa passagem (para a massificação). O subtítulo é Do século XIX à década de 1970, quando a tatuagem era de fato uma cultura popular e também étnica. Não só indígenas e africanos se tatuavam – no caso dos africanos usa-se mais a palavra escarificação – mas também os imigrantes europeus, árabes e asiáticos que chegaram aos milhões na passagem do século 19 ao 20 trouxeram tanto a tatuagem dita ocidental quanto a de seus povos de origem”, pontua Silvana.

“Se você olhar o índice do livro verá a lista de seus personagens: marítimos, soldados, africanas e africanos, imigrantes, artistas, trabalhadores e trabalhadoras (principalmente prostitutas), prisioneiros. Acresci os dois motivos principais do uso da tatuagem: a religiosidade e os afetos. E por afetos entendo amor, ódio, paixão, desejo, virilidade, saudade”, detalha.

O curioso é que, na verdade, a história da tatuagem nem era a princípio, o objeto de estudo da autora. “Eu acabara de defender uma tese de doutorado sobre marinheiros da Marinha de Guerra no Brasil Imperial, onde havia uma pequena seção sobre tatuagem. Até hoje os registros mais antigos que encontrei da tatuagem dita ocidental foi em listas de navios da década de 1830”, conta Silvana.

“Enfim, parece que foram os marítimos os principais responsáveis por espalhar essa cultura no país. Como tatuagem era um assunto muito popular e sua história pouco pesquisada, quando acabei a tese, resolvi fazer um projeto sobre a história da tatuagem no Brasil e ganhei uma bolsa da Biblioteca Nacional”, relata.

Apesar de ser fruto de uma pesquisa acadêmica, é bom que se diga: Uma história da tatuagem no Brasil passa longe do hermetismo das academias. De fácil leitura, é acessível a qualquer pessoa alfabetizada.

“O livro pode ser lido como um mosaico de gentes, uma leitura da formação do povo brasileiro, uma história vista de baixo, onde homens e mulheres estão lutando pela sua sobrevivência em meio a suas paixões, desejos e fé.  O livro tem dezenas ou mesmo centenas de histórias de pessoas que se tatuavam. Pus o título Uma história da tatuagem no Brasil pois toda história é parcial e incompleta. Infelizmente não deu para eu escrever o capítulo da tatuagem indígena, que é de fato a pioneira no território que hoje chamamos de Brasil. E vários povos ainda se tatuam, como os Ikpeng, Matis, Kaiabi. Korotowi Taffarel, Ikpeng, escreveu uma dissertação belíssima sobre o ritual da tatuagem de seu povo”, conta.

Nessa toada, Silvana acabou se surpreendendo com algumas de suas descobertas, até mesmo sobre suas próprias origens.

"Muita coisa me surpreendeu. Do ponto de vista pessoal, que a tatuagem era popular entre os imigrantes sírios e libaneses, dos quais eu descendo. Nunca ninguém na minha família tinha mencionado essa cultura. Eu atribuo ao fato de que como a tatuagem era marginalizada no Brasil da época que eles chegaram, foi uma memória apagada para se afastar do estigma. Isso não impediu que vários sirios e libaneses tenham se tornado tatuadores eventuais, como mostra a documentação. Outras novidades foram a tatuagem no mundo do samba, capoeira, a tatuagem patriótica entre soldados, a tatuagem religiosa", detalha.

"É muito difícil dirigir a leitura do que a gente escreve. Mas eu tenho sim uma intenção subjacente no livro: é 'popularizar a história popular' que a gente produz com todo o rigor na Universidade há décadas. É a história do povo brasileiro, sem folclorismo, mitos, bem documentada. É sobre sua diversidade, sensibilidade, originalidade. A gente pode se orgulhar da nossa diversidade e criatividade sem ser ufanista, produzindo e lendo história. No caso dos historiadores profissionais, uma história cheia de notas de rodapé, pra dizer de onde a gente tirou aquela informação. As pessoas que encontrei nos arquivos que pesquisei são pessoas comuns, mas também extraordinárias", afirma.

Agora, Silvana se dedica à pesquisar  a vida e a memória na obra de dois artistas que produziram em manicômios: Arthur Bispo do Rosário e Aurora Cursino dos Santos.

"Bispo foi marinheiro e pugilista e Aurora, prostituta. Ambos versam sobre suas profissões nas suas obras. É isso que me interessa neles, além de grande artistas, produziram discurso e memória de si, documentos menos comuns da classe trabalhadora que viveu na primeira metade do século XX. Eles não só produziram bordados, esculturas e pinturas, como textos dentro da sua obra plástica. Estou fascinada pelo que dizem de si e do Brasil de sua época", conclui.

Que venha um novo livro.

Lançamento e roda de conversa com Silvana Jeha: Amanhã, 18h / Museu de Arte da Bahia (Corredor da Vitória) / Participação: Bingha

Uma História da Tatuagem no Brasil  – Do Século XIX à Década de 1970 / Silvana Jeha / Veneta / 352 p. / R$ 109,90

terça-feira, outubro 22, 2019

THE DARK IS RISING

Morcegões da cena gótica voltam a voar. Sábado tem festa no Portela com  a CelulaMekânika, KFactor e DJs locais e de fora

Célula: David Giassi e Henrique Letárgico, foto Fernando Ricanelli
Se você acha o rock baiano underground, é porque nunca se deparou com a cena gótica local.

Underground do underground, ela vem marcando presença na cena desde os anos 1980 com diversas bandas.

Neste século, a mais marcante delas é sem dúvida a Modus Operandi, que, na maciota, já lançou álbuns bem impressionantes e comandou festas e festivais pela cidade.

Vocalista da MO, David Vertigo Giassi, porém, tem mais ideias na cabeça, as quais nem sempre cabem na nave-mãe.

Ao lado do parceiro de Modus Henrique Letárgico, ele apresenta nesta sexta-feira o projeto paralelo CélulaMekânika: uma colisão de batidas eletrônicas sujas (e dançantes) com texturas pesadas e guitarras abrasivas.

Prato cheio para fãs de Suicide, Kraftwerk, Ministry, Atari Teenage Riot etc.

“Havia algumas ideias que eu (sintetizador, voz, programações) e Henrique Letárgico (guitarras, vocais, programações) tínhamos e que não cabiam num formato ‘orgânico’ da Modus Operandi, até mesmo em respeito as influências dos outros membros. Daí surgiu a CélulaMekânika, com uma sonoridade mais industrial / EBM / experimental, onde podemos exercitar nosso fetiche por batidas eletrônicas, ruídos e afins”, conta David.

E de fetiche eles entendem: a festa de sexta, no Portela Café, se chama Gothic Intoxication Fetish Mode: ON.

Além do Célula, se apresentam os projetos K Factor (de São Paulo) e Xymox (da Paraíba), além dos DJs Aries, CyberPuke e Bat. (Na dúvida, leve uma cabeça de alho no bolso).

Back to bat

CelulaMekânika ao vivo
 No cômputo geral, um evento fora da curva desta província: “Nosso show utiliza projeções de filmes e imagens coma mesma temática de nossa letras. O evento é organizado pela produtora Gothic Intoxication e pretende reativar a cultura gótica aqui em Salvador, reunindo DJs, performances e a CélulaMekânika. Quem for vai presenciar algo bem diferenciado e inusitado do que rola normalmente em Salvador”, convida David.

"Com a correria de 3 bandas (Modus Operandi, CélulaMekânika e a vindoura Entre 4 Paredes, com uma sonoridade mais anos 80/Pós Punk/Gothic Rock) realmente fiquei sem tempo para produzir eventos, sem contar que houve um certo esvaziamento de público aliado à ausência temporária de locais para eventos. Mas as coisas estão voltando a se aquecer aos poucos", acredita.

Sombria e apocalíptica, a cultura gótica pós-moderna floresceu bastante nos anos 1970 / 80, quando extermínio nuclear, opressão política e recessão econômica eram quase regra no planeta. Com o caos planetário novamente se instalando, não será surpresa uma nova onda gótica.

“Tudo isso reflexo do cenário caótico que vivemos: guerra fria, discriminação, aumento de doenças globais. É o sinal de que cada dia mais caminhamos para um fim sombrio e desolador”, aposta David.

E tá errado?

"Esperamos os antigos frequentadores do Darktronic lá no evento, para matar a saudade. Fiquem ligados em nossa redes sociais pois ano que vem já lançaremos nosso segundo EP", conclui David.

Gothic Intoxication Fetisch Mode:ON / Sexta-feira, 22H / Portela Café / R$ 20 (Sympla); R$ 25 (lista); R$ 30 (porta); R$ 50 (casadinha)



NUETAS

Cátia de França aqui

Essa é pra quem sabe: Cátia de França, verdadeira lenda viva da cultura nordestina, se apresenta neste sábado, na Casa Preta (2 de Julho), 18h, preço de ingresso não divulgado.

MAEV com Iorigun

Duas grandes bandas de rock pelo preço de uma: Meus Amigos Estão Velhos e Iorigun (de Feira de Santana) fazem A Melhor Festa da Cidade. Sábado, 22 horas, no Lebowski Pub. R$ 10 (lista) e R$ 15 (portaria).

O climão da Letrux

A celebrada cantora Letrux traz a Salvador o último show da turnê Letrux em Noite de Climão, homônima do premiado disco de 2017. Rapeize moderna se amarra. Sábado, no Largo Tereza Batista (Pelourinho), 21h30. R$ 60 (1º lote no Sympla).

segunda-feira, outubro 21, 2019

LAURENTINO GOMES: "O BRASIL FOI O MAIOR TERRITÓRIO ESCRAVAGISTA DO OCIDENTE"

O assunto é vastíssimo (e urgente) e o espaço, mínimo. Tudo o que você precisa saber é que o premiado jornalista Laurentino Gomes, autor dos livros 1808, 1822 e 1889 estará amanhã (sorry, foi ontem, domingo, 20) em Salvador para lançar e autografar seu novo livro: Escravidão Vol. 1. Mais dois volumes virão em 2020 e 2021. A seguir, uma esclarecedora entrevista com o homem.

O que levou o senhor a embarcar neste projeto específico neste momento específico? Foi um passo lógico depois da trilogia oitocentista ou foi a conjuntura do Brasil neste momento pós-golpe de 2016, pós-reforma trabalhista?

No Cais do Valongo (RJ), maior entreposto de comércio escravo das Américas
Laurentino Gomes: Escrever sobre a história da escravidão no Brasil foi uma decorrência natural da minha primeira trilogia de livros. Nos três livros anteriores, 1808, 1822 e 1889, eu procurei explicar as três datas fundamentais para a construção do Brasil como nação independente no século 19. Essas datas ajudam a explicar a maneira como nos constituímos do ponto de vista legal, institucional e burocrático. Mas não são suficientes para entender os aspectos mais profundos da nossa identidade nacional. Para isso é preciso ir além da superfície, observar o que fizemos os nossos índios e negros, quem teve acesso às oportunidades e privilégios ao longo da nossa história e como a sociedade e a cultura brasileiras foram se moldando desde a chegada de Pedro Álvares Cabral à Bahia até os dias de hoje. Ao fazer isso, eu me dei conta de que o assunto mais importante da nossa história não são os ciclos econômicos, as revoluções, o império ou a monarquia. É a escravidão. O trabalho cativo deu o alicerce para a colonização portuguesa na América e a ocupação do imenso território. Também moldou a maneira como nos relacionamos uns com os outros ainda hoje. Neste início de século 21, temos uma sociedade rica do ponto de vista cultural, diversificada e multifacetada, mas também marcada por grande desigualdade social e manifestação quase diárias de preconceito racial. Isso, no meu entender, é ainda herança da exploração desumana, cruel e indigna do trabalho de milhões de pessoas forçadas a cruzar o Oceano Atlântico a bordo dos navios negreiros para viver como cativas no Brasil colônia. No final do século 17, o padre jesuíta Antônio Vieira cunhou uma frase famosa. “O Brasil tem seu corpo na América e sua alma na África”, afirmava ele. No meu entender, é uma frase profética, que se torna cada vez mais verdadeira com o passar do tempo. E continua atual ainda hoje. O Brasil foi o maior território escravagista do hemisfério ocidental. Recebeu quase cinco milhões de cativos africanos, cerca de 40% do total de doze milhões embarcados para as Américas. Como resultado, tem hoje a maior população negra do mundo, com exceção apenas da Nigéria. Foi também o país que mais tempo resistiu a acabar com o tráfico negreiro e o último a abolir o cativeiro, pela Lei Áurea de 1888 - quatro anos depois de Porto Rico e dois depois de Cuba. A escravidão foi a experiência mais determinante na história brasileira, com impacto profundo na cultura e no sistema político que deu origem ao país depois da independência. Nenhum outro assunto é tão importante e tão definidor para a construção da nossa identidade.

Entre as várias viagens de pesquisa de campo que o senhor fez, cinco delas foram à África. O que mais o impressionou nestas incursões em relação ao seu objeto de estudo? Que marcas a escravidão deixou visíveis no solo e no povo africano nativo de hoje?

LG - Brasil e África já estiveram mais próximos. Como bem demonstrou Pierre Verger, até o final do século 19, havia rotas regulares de navios entre Salvador, na Bahia, e a Nigéria, por exemplo. Angola tentou aderir à independência do Brasil, em 1822. O intercâmbio econômico e cultural era bastante intenso nessa época, muito em consequência do próprio tráfico negreiro. Hoje, essas relações estão mais frias, mas marcas brasileiras são hoje bem visíveis no continente africano. Em Gana e no Benim encontrei uma numerosa comunidade descendentes de ex-escravos retornados durante o século 19. Ocupam posições importantes na hierarquia social. Alguns foram presidentes, ministros, governadores. Esses ex-escravos deixaram também contribuições importantes na arquitetura, nas artes e nos costumes em diversos países. Na cidade Porto Novo, no Benim, por exemplo, há uma mesquita muçulmana com traços arquitetônicos de igreja católica brasileira. Foi construída por escravos libertos da Bahia, que tinham por ofício erguer templos católicos no Brasil e levaram sua técnica de construção para a África. Essa influência continua muito forte ainda hoje. As novelas da Rede Globo têm uma audiência enorme nos países de línguas portuguesa. Ao ponto de alterar o sotaque o modo de fala o idioma nesses locais.

A escravidão, como o senhor e tantos outros autores nos lembram, sempre existiu na humanidade, em todos os continentes. Ainda assim, nunca conheceu um período tão "próspero", com o perdão da má palavra, quanto quando os europeus entraram no negócio, entre os séculos 15 e 19. E ainda hoje ela persiste em várias partes do mundo. A escravidão, portanto, é um problema da humanidade como um todo, correto?

Castelo de São Jorge da Mina, litoral de Gana, construção portuguesa, século 15
LG - Infelizmente, sim, a escravidão parece fazer parte do código genérico do ser humano. Existiu em todas as grandes civilizações, incluindo a Babilônia, o Egito, a Grécia, Roma, os territórios dominados pelo islã e a própria África antes da chegada dos europeus. Ainda hoje, o regime escravista persiste no mundo sob formas de trabalho desumanas, indignas e inaceitáveis para os padrões éticos que julgávamos ter atingido neste início de século 21. Uma organização britânica a Anti-Slavery International (mais antiga entidade de defesa dos direitos humanos, fundada em 1823 para combater o tráfico negreiro), afirma que existem atualmente mais escravos no mundo do que em qualquer período nos 350 anos escravidão africana nas Américas. Seriam 40 milhões de pessoas vivendo hoje em condições de vida e trabalho análogas às da escravidão – ou seja, quatro vezes o total de cativos traficados no Atlântico até meados do século 19. Ainda segundo a Anti-Slavery Internacional, a cada ano cerca de 800.000 pessoas são traficadas internacionalmente ou mantidas sob alguma forma de cativeiro, impossibilitadas de retornar livremente e por seus próprios meios aos locais de origem. E lamentavelmente, o nosso Brasil aparece sempre com destaque nesta lista suja.

Muita gente não entende - ou finge não entender - a relação entre o passado de escravidão dos negros, o racismo e a clara posição de desvantagem social que estes amargam ainda hoje. O senhor poderia nos esclarecer isto, por favor?

LG - Ao contrário do que se imagina, a escravidão não é um assunto acabado, bem resolvido e congelado no passado. Ainda está vivo entre nós, como se pode ver nos discursos de campanhas eleitorais e nas discussões diárias que aparecem nas redes sociais. O preconceito é uma das marcas das nossas relações sociais no Brasil, embora sempre procuremos disfarça-lo construindo mitos a respeito de nós mesmos. Um desses mitos dizem que somos uma ‘democracia racial’ e que a escravidão entre nós foi mais benévola, patriarcal e tolerante do que eu outros territórios da América. Tudo isso é ilusório e desmentido pelas estatísticas, que mostram um fosso enorme de desigualdade entre negros e brancos no país em todos os itens analisados. Os descendentes de africanos ganham menos, moram em lugares mais insalubres, estão mais expostos aos efeitos da violência e da criminalidade e tem oportunidades em todas as áreas, incluindo emprego, saúde, educação, segurança, saneamento, moradia e acesso aos postos da administração pública. Um homem negro no Brasil tem oito vezes mais chances de morrer vítima de homicídio do que um homem branco. Esse é um legado da escravidão, mal resolvido no passado e que ainda hoje tentamos negar. Portanto, tudo o que fomos no passado, o que somos hoje e o que seremos no futuro tem a ver com as nossas raízes africanas e a forma como nos relacionamos com elas.

Entre os vários enfoques e detalhes da história da escravidão que o senhor explora no livro, a questão dos eunucos é especialmente impressionante, até porque a imagem que temos dessa classe de escravos é aquela que nos foi dada pela indústria cultural – portanto, edulcorada. Como sopesar aquela versão dos desenhos animados com a realidade brutal de tamanho genocídio?

LG - A escravidão é um tema doloroso, repleto de sofrimento e crueldade. Por isso, precisamos estudar e refletir sobre o que aconteceu. Os eunucos eram homens privados da virilidade mediante a castração dos órgãos genitais ainda na adolescência. Há registros dessa forma radical de escravização desde a mais remota antiguidade. Eram também muito valiosos no mercado de cativos. No Egito, uma jovem negra valia cerca de 40 dinares, e um eunuco, mais de 65. O motivo era a alta taxa de mortalidade nas cirurgias de amputação dos órgãos genitais. Cerca de 90% dos adolescentes morriam em decorrência da operação. Os que sobrevivessem ocupavam funções importantes na hierarquia escravista, encarregados de fazer a guarda dos haréns, cujas mulheres em geral eram também escravas, e desempenhar funções-chave na estrutura dos impérios, como tesoureiros, ministros, conselheiros e até comandantes militares. Havia mais de cem mil deles nos palácios chineses da dinastia Ming.

Roda de conversa no Quilombo Caiana dos Crioulos (Agreste da Paraíba)
Muita gente parece acreditar que a história da África começa com a chegada dos exploradores europeus, mas no seu livro aprendemos que há um vasto arcabouço histórico antes disso, com muitos reinos, guerras e civilizações. Porque não temos acesso a isso ainda na escola, nas aulas de História Geral?

LG - A África sempre foi um continente muito diverso, culturalmente rico, com uma história milenar que remonta às próprias origens do ser humano na Terra. Infelizmente, a visão que se tem ainda hoje do continente reflete o preconceito e a ignorância dos próprios europeus que, na época do início do tráfico negreiro, viam todos os africanos como bárbaros, selvagens e infiéis, estranhos à fé católica e distantes da supostamente avançada civilização europeia. Isso também se reflete na maneira como nós estudamos a África no Brasil. Até muito recentemente, a história africana e da escravidão negra no Atlântico era tratada como tema secundário, quase casual, nos livros didáticos e a historiografia oficial. Isso não aconteceu por acaso. É resultado de um propósito de esquecimento. Alguns dos grandes abolicionistas do século 19, como Joaquim Nabuco e André Rebouças, diziam que não bastava acabar com a escravidão. Era preciso também enfrentar o seu legado, dando terra, trabalho, educação e oportunidades aos ex-cativos e seus descendentes. Isso o Brasil jamais fez. Nossa população afrodescendente foi abandonada à própria sorte, como mostram hoje todas as estatísticas e indicadores sociais. O projeto de abandono e esquecimento incluiu também a nossa história negra e africana, relegada a um segundo plano nos livros didáticos. Felizmente, isso está mudando. Hoje, já existe até uma lei que obriga o ensino desse tema em sala de aula.

Muita gente (branca) se ofende quando se fala em reparação histórica pela escravidão, como se isso dissesse respeito a estas pessoas - o que denota certa egolatria, diga-se de passagem - mas diz respeito à sociedade como um todo. Na opinião do senhor - ou dos especialistas com quem o senhor conversou - o que seria uma reparação realmente justa para todos - mas para com os negros, principalmente?

Senzala no Engenho Uruaé (PE): argola de ferro para imobilizar escravos
LG - Eu sou a favor dos programas de cotas preferenciais para afrodescendentes por duas razões. A primeira é que essa política vem dando resultados concretos. As estatísticas mostram um aumento no número de negros ou pardos (categoria do IBGE que inclui uma ampla gama de mestiços) mestres e doutores nas universidades e também em cargos mais qualificados da administração pública e da iniciativa privada. Ainda que lentamente, estamos abrindo espaços para essa parcela da população que, no passado, sempre esteve sub-representada. A segunda razão é que, mesmo sendo polêmica, a política de cotas demonstra que o Brasil da democracia, pela primeira vez, topa o desafio de enfrentar o legado da escravidão e corrigi-lo. Isso nunca aconteceu antes. Claro que ainda há muita reação. Um dos argumentos contrários à política de cotas, presente até em discursos de altas autoridades da república, tenta culpar os escravos pela própria escravidão. Muita gente afirma que, se os africanos participaram e lucraram com a escravidão, não haveria razão para manter no Brasil, por exemplo, um sistema de cotas de inclusão dos afrodescendentes em escolas ou postos da administração pública. A chamada “dívida social” brasileira em relação em relação aos descendentes de escravos estaria anulada pelo fato de os africanos serem corresponsáveis pelo regime escravista. Desse modo, não haveria porque indenizá-los ou compensá-los pelos prejuízos sociais e históricos decorrentes disso. Tudo isso é muito injusto porque, obviamente, não se pode culpar os escravos pela própria escravidão. O fato de chefes africanos terem participado do tráfico nada tem a ver com a enorme dívida social e real que o Brasil tem com os seus afrodescendentes. Basta ver as estatísticas, onde a nossa população negra aparece como a parcela da sociedade com menos oportunidades e a que mais sofre com a desigualdade social crônica brasileira. Precisamos corrigir isso urgentemente. E não podemos nos esconder atrás de falsas e incorretas discussões a respeito de fatos históricos.

Tendo em perspectiva o momento atual da Igreja Católica sob o pontificado do Papa Francisco, como o senhor avalia a posição da Igreja ao longo de todos aqueles séculos em relação à escravidão? Não que impressione muito, dado o comportamento da instituição durante a Inquisição (ou durante a 2ª Guerra e os escândalos de pedofilia), mas enfim.

LG - Foram escassas as vozes dentro da hierarquia católica que se ergueram contra o cativeiro dos africanos. Havia exceções, mas eram relativamente raras. Como apontou o historiador americano David Brion Davis, a escravidão sempre foi um problema insolúvel para a sociedade ocidental. Havia enorme contradição nas leis civis e eclesiásticas que tratavam da condição dos cativos. O estado sancionava a privação da liberdade e considerava os escravos como propriedade de seus senhores, passíveis de compra e venda, como qualquer animal ou bem imóvel. Seus filhos nasciam e permaneciam no cativeiro. Mas, ao mesmo tempo, essas mesmas leis reconheciam que os escravos tinham alguns direitos mínimos, como à própria vida, que não poderia ser tirada pelo seu senhor sob pena de crime. Os códigos canônicos determinavam que os escravos deveriam ser batizados e acolhidos no rebanho cristão, participavam de confrarias, como a de Nossa Senhora do Rosário, e se faziam representadas em festas, procissões e outros rituais religiosos, mas até o final do século 19, com raras opiniões isoladas, a igreja nunca se pronunciou oficialmente e de forma inequívoca contra a escravidão. A igreja reconhecia que os cativos tinham uma alma imortal, que deveria ser salva mediante a administração dos sacramentos, mas bispos, padres e ordens religiosas eram donos de escravos e participavam ativamente do comércio negreiro. A igreja também reconhecia o casamento de cativos e defendia a proteção da família, mas isso nunca impediu que maridos e mulheres, pais e filhos fossem separados nas transações de venda de escravos.

Outro dia, uma reportagem da BBC mostrou que guias de fazendas históricas do sul dos Estados Unidos volta e meia são xingados por turistas (brancos) que se ofendem ao se deparar com a verdade na forma como os escravos eram explorados, torturados, estuprados e mortos. Dizem que os guias tem "viés esquerdista". Ser contra a escravidão virou coisa de esquerdista? Não deveria ser uma luta de todo ser humano?

LG - A escravidão não é assunto exclusivo de direita ou de esquerda, de brancos ou negros. É um tema com o qual todos nós, brasileiros, deveríamos nos preocupar. Todos nós que estamos vivos hoje somos descendentes de escravos ou de senhores de escravos. O legado da escravidão, que se traduz em desigualdade social no Brasil, é um desafio urgente, que exige nossas atenções e esforços como cidadãos, independente da nossa cor da pele e das nossas preferências político-partidárias. Esse clima de polarização e ódio me preocupa muito. Acho que em nada contribui para o estudo da escravidão nem para a construção do Brasil dos nossos sonhos. Mais preocupante é ver que a discórdia muitas vezes é semeada por quem deveria dar exemplos de serenidade, discernimento e sabedoria. Infelizmente, isso inclui o próprio presidente da República. Durante a campanha eleitoral de 2018, fiquei assustado com a crueza e a falta de sensibilidade que o candidato Jair Bolsonaro demonstrou ao tratar de temas como a escravidão, o papel das mulheres, os direitos dos homossexuais, dos emigrantes e das pessoas mais pobres na sociedade brasileira. Esse discurso de enfrentamento rendeu votos e muita gente se valeu dele para ser eleita em 2018, mas esperava que, passada a campanha eleitoral, a retórica, o comportamento e as decisões dos eleitos fossem diferentes. Não é o que está acontecendo. É preciso que o presidente deixe para trás o discurso de palanque e governe para todos os brasileiros, levando em conta principalmente os mais fracos, os mais necessitados, os mais desprotegidos. Precisamos urgente cicatrizar as feridas, superar as divisões e encontrar pontos de união, que nos ajudem a caminhar em direção ao futuro e enfrentar os desafios mais urgentes.

Escravidão Vol. I: do primeiro leilão de cativos em Portugal até a morte de Zumbi dos Palmares / Laurentino Gomes / Globo Livros/ 480 p. / R$ 49,90