domingo, maio 25, 2014

SEXO, DROGAS & HQ

Produção antológica da Circo Editorial é recuperada em edição de luxo. O editor Toninho Mendes e o cartunista Laerte falam da experiência na época e do livro

Em outubro de 1985, uma revista de quadrinhos underground se materializou nas bancas de revista do Brasil.

Como uma maçã proibida, ela transformou todos que provaram do seu sabor ácido – e dividiu a história do cartum brasileiro em antes e depois de si.

A revista era a Chiclete Com Banana, pontapé inicial da produção em bancas da Circo Editorial, cuja história, fundamental para entender aquele período de redemocratização, é agora contada no livro Humor Paulistano – A Experiência da Circo Editorial (1984-1995).

Organizado por Toninho Mendes, editor-chefe da Circo, o volume em tamanho grande e papel cuchê recupera parte da produção antológica da Chiclete e das revistas que vieram a reboque do seu sucesso, como Geraldão (de Glauco Villas-Boas), Piratas do Tietê (de Laerte Coutinho) e Circo, que publicava HQs de vanguarda de vários autores do Brasil e do mundo.

Cada capítulo conta com um texto de abertura que narra a trajetória de cada publicação, todos assinados por especialistas, como o jornalista Ivan Finotti e mestres da academia como Waldomiro Vergueiro (USP), Nobu Chinen (Faculdades Oswaldo Cruz), Paulo Ramos (Unifesp) etc.

Em 11 anos, a Circo e suas revistas se tornaram mania entre jovens e adultos graças às  provocações e a troça que faziam de conservadores, esquerdistas, igrejas, a família tradicional, o rock nacional, hippies, punks, burgueses, feministas, machistas, paulistas, cariocas, mineiros, baianos, presidentes – de qualquer um.

Para isso, recorriam a tiras, HQs mais longas, fotonovelas, textos corridos – o que pintasse.

Na memória, deixaram personagens inesquecíveis como Bob Cuspe, Rê Bordosa, Os Skrotinhos, Bibelô, Meiaoito (Angeli), Piratas do Tietê, o Síndico, Os Gatos (Laerte),Geraldão, Doy Jorge e Casal Neuras (Glauco) entre vários outros.

“Esse livro é uma conquista”, avalia Toninho Mendes, que os leitores da Chiclete devem lembrar das fotonovelas da revista na pele do personagem O Pequeno Lobatinho, um típico mané trabalhador (e corno) da classe-média paulistana.

“É difícil uma geração tão recente ter a oportunidade de contar sua história como de fato  foi”, diz.

Toninho conta que conheceu Angeli ainda na infância. "Esta história está contada em detalhes no livro. Sou amigo de infância do Angeli. Fui uma pessoa que, por questões políticas instintivas, fui trabalhar na imprensa independente, no jornal Versus que era de um cara que teve uma influência forte sobre mim como homem e jornalista, que foi o Marcus Faerman. Através dele, conheci o Laerte, o Chico Caruso, o Luiz Gê e o Paulo Caruso. Aí criei uma reação de amizade consistente com eles. Isso foi o embrião da Circo. Era instintivo. Eu não era exatamente politizado", conta.

Além de contar a história de sua geração, o livro também serviu para Toninho desenvolver sua tese do humor paulistano – em oposição ao humor carioca, que “permeava o humor gráfico elaborado por artistas brasileiros desde o início do século XX até os anos 1970”, nota Toninho em texto assinado no livro com o professor Roberto Elísio dos Santos (USP).

“Até o fato do livro ter saído pela editora do SESI-SP é muito significativo. Desfaz um pouco a aura underground da Circo. Por que eram revistas que iam para as bancas e vendiam muito. Todo tipo de gente lia. Artistas, médicos, advogados”, conta.

A conclusão a que Toninho e Elísio chegam, no fim do livro, pode parecer pretensiosa, mas, para além de qualquer revisionimo, é muito difícil de ser negada.

“A experiência da Circo Editorial e o surgimento do humor paulistano têm para a década de 1980 e as seguintes os mesmos peso e significado que O Pasquim teve para os anos 1960 e 70: são dois marcos decisivos na história da imprensa, do humor e das histórias em quadrinhos no Brasil”, escrevem.

Fazendo história em HQ

Um dos vetores criativos da Circo, Laerte conta que, na época, ele mesmo não tinha noção da importância do trabalho que realizavam.

“Eu não tinha essa noção. O que me tomava era um sentimento de euforia por ter deixado de fazer vários trabalhos chatos e – graças ao Toninho Mendes – estar me dedicando à ficção em quadrinhos. Nunca achei que estávamos criando mais do que víamos ser produzido ali”, diz, via email.

“Nem acho que esteja fazendo história hoje. Mas sempre estamos, não?”, acrescenta.

Ao mesmo tempo em que o trio de cartunistas atuava na grande imprensa, havia (ainda há) um indefectível tempero underground no trabalho deles - tanto em termos estéticos, quanto temáticos. Como era, para Laerte, andar nesse fio de navalha?

"São limites claros - pra mim, criatura de poucas audácias, nunca chegaram a ser opressivos. Publicar no próprio veículo era, evidentemente, um jogo muito mais livre do que em jornais e revistas de mídias com compromissos comerciais e ideológicos complexos", reflete.

Para Toninho, são "duas coisas diferentes: primeiro, nós todos já tínhamos uma experiência grande na imprensa independente e lutado contra ditadura. Na época da Circo, o pessoal já estava na grande imprensa, já tinha uma carreira. A Circo não só consolidou essas carreiras para eles e para mim, já que desovamos um material fabuloso, são quase 8 mil páginas de HQs, tiras, fotonovelas e porraloquice. Foi muita coisa. Então, sim, eu principalmente tinha, sim, noção. Eu sabia: a editora nasceu no dia das votações da emenda das diretas no Congresso. Ganhando ou não no Congresso, eu tinha noção que aquele dia mudaria o país. Mas nenhum de nós tinha noção do que ia virar com o passar dos anos. Ainda tinha o risco de apreensão (das tiragens) e ameaças. Eu sabia que era uma área de risco. Em outubro de 1985 você botar o 'Bob Cuspe para presidente' na capa da revista era testar os limites da abertura. O logo da Coca no tapa-olho do Pirata do Tietê (na capa do número da revista do Laerte) é dessacralizar a logo da Coca - que não era boba, portanto, e não falou nada", relata Toninho.

Apesar de feliz com o resultado do livro, Laerte, como quase todo artista, não curte muito olhar para trás: “Acho ótimo e muito oportuno, mas, pessoalmente, ver trabalhos que já fiz me dá um não-sei-quê. Olhar pra frente, pra falar a verdade, me dá outro não-sei-quê. Difícil explicar. Prefiro olhar pra já”.

"Não éramos um grupo tão grupal assim. O Angeli e o Toninho eram da Casa Verde, o Glauco e eu vínhamos de outras plagas. Só vim a me sentir parte de um coletivo na época de Los 3 Amigos; o filme do John Landis funcionou como uma citação, um pretexto", acrescenta Laerte.

Há cerca de dois anos, Laerte, como se sabe, decidiu desafiar a “cultura de gênero”, passando a vestir-se de mulher e referindo-se a si mesmo no feminino, como se vê nessa reflexão sobre a influência de sua geração.

“As influências sempre são cumulativas. Nossa geração ainda está em atividade; até mesmo em movimento, em transformação. Eu mesma estou acompanhando e me deixando seduzir pelo trabalho de jovens autores, ou por aquilo que os seduz hoje, em trabalhos de todas as partes do mundo“, afirma.

“Vejo muito mais jovens que se influenciaram pelo grafismo do Angeli (do que por mim ou Glauco). De todo modo, acho que você tem razão quanto a uma época que foi marcante. Fico feliz de ter feito o que fiz”, diz.

Enquanto a turma da Circo tocava o terror em São Paulo, do outro lado da Via Dutra, no Rio de Janeiro, um outro grupo bem animado e irreverente também estava fazendo sua própria revolução humorística. Eram dois grupos, na verdade: um fazia o jornal satírico O Planeta Diário. E o outro, a revista Casseta Popular. Havia alguma relação entre esses núcleos paulista e carioca?

"Rolava a camaradagem de sempre - eram duas experiências bem distintas e nada conflitantes. O Cláudio Paiva (Planeta Diário) nos chamou para integrar a redação da TV Pirata e do Sai de Baixo", conta Laerte.

"Sim, o pessoal da Circo foi convidado pelo pessoal da Casseta que foi para a TV", lembra Toninho.

"Cheguei a editar três ou 4 edições da Casseta. Bicho, eu sou um empreendedor. Não sou empresário, entende? É diferente. Não sou gerenciador de grana. Por pura falta de entendimento econômico, desfiz a sociedade", continua.

"E eu não quis fazer por falta de visão econômica, mesmo. Dinheiro não é meu negócio. Mas todo mundo sobreviveu. Ninguém ganhou rios de dinheiro, mesmo com números altos de vendagem. Não dava dinheiro por que não tinha publicidade. E com aquela inflação da época, o trabalho que dava para acertar o preço distribuir... Chegamos a ter 16 empregados na Circo: boys, estoquistas etc. Dava para pagar as contas sempre. E gerenciávamos da maneira mais eficiente que podíamos. A qualidade das revistas saiu melhor que esperávamos. A gente fazia umas putas revistas, o também demandava um puta tempo", explica Toninho.

No segundo semestre, pós-Copa, o editor pretende fazer uma pequena turnê por algumas capitais do país, para promover o livro.

"Uma meta minha é fazer um evento no segundo semestre aí em Salvador, até pela importância que a cidade tinha na época da revista. A gente recebia muitas cartas de Salvador", conta.

"Eu sou uma pessoa muito simples, prática e objetiva para trabalhar. O resto da minha vida é uma confusão. Eu devia ter editado minha vida como editava essas revistas", ri Toninho.

"Eu não tinha essa necessidade (de organizar o trabalho com os cartunistas da Circo) por que era um trabalho de todo mundo. As pessoas adoravam fazer. Com o tempo, perdeu a periodicidade, a carga ficou menor. As periodicidades foram vacilando, a Chiclete deveria ter tido 35 números (em vez das 24 publicadas). A Geraldão começou mensal, virou bimensal, depois trimestral", lembra.

"Eu não só juntava as pessoas: eu dava ideias, escrevia, atuava. Era um autor diferenciado no meio nossa relação, sempre de muita camaradagem. Tem as historias, né? Num dado momento, para viabilizar, eu quebrei uma lavanderia, abri uma sala e passei a pagar a eles todo mês. Eu abri uma conta corrente que foi o que permitiu que o Laerte produzisse de maneira afrontosa e de forma experimental. Somos pré-humor politicamente correto e só fazíamos o queríamos. Não era com menor intuito de nada. Fazíamos por que era o que tinha que ser feito. Não era só para provocar", relata.

"A coisa que mais destruiu a Circo foi o descontrole econômico da época. Lancei cinco revistas com o Brasil passando no mesmo período por cinco moedas diferentes. Era uma insanidade econômica aquilo que acontecia entre 1985 e 1990. A situação econômica e´uma das grande responsáveis pelo fim da Circo. Nunca tivemos publicidade, eram revistas que viviam da venda em banca - o que dificulta qualquer controle econômico. Entre o dia que a revista vai para a banca e o dia que recebo o pagamento das vendas são 40 dias. Imagina isso com inflação de 97% ao mês. O Angeli ficou sem fazer charge política para a Folha de S. Paulo por quase dez anos por que não tinha como, produzindo daquela maneira louca para a Chiclete. Então, havia uma conta a pagar a ele", conta o editor.

“Foram quase 8 mil páginas de HQs, fotonovelas e porraloquice em revistas feitas com muito suor, sangue, cocaína, cerveja, sexo e tesão, em um período em que o Brasil teve cinco moedas diferentes. Não é um livro chapa branca. É tarja preta”, conclui Toninho.

Humor Paulistano: A Experiência da Circo Editorial (1984-1995) / Toninho Mendes (Organizador) /  SESI-SP / 432 p. / R$ 120


5 comentários:

Anônimo disse...

E eu tenho TODAS as edições originais da Chiclete com Banana : 24 bimestrais, 6 especiais.


A sessão de cartas da revista tinha até "Promoção Esposa do Angeli --- envie sua foto sensual e concorra a um casamento com o autor dessa revista."


Alguns leitores se identificavam como sendo "Capitão Pauzão", "Arnoldo e Suas Negas" etc.


E as fotonovelas eram tão engraçadas quanto as tirinhas...


Ah, os anos dourados...

Ernesto Ribeiro disse...

Os desenhos animados são a prova definitiva de que a linguagem de uma mídia raramente se adapta á de outra.


Quadrinhos de humor, então, nem se fala: tiras de cartuns SEMPRE são uma linguagem própria, única, circunscrita.


Se transplantar para outra mídia, acabou. As piadas perdem a graça, o texto não flui, os personagens parecem babacas, as vozes soam artificias, o ritmo é arrastado, e tudo é forçado.


É por isso que o filme de Wood & Stock é uma merda. Até mesmo aquela que poderia ter dado certo, a dublagem da Rê Bordosa, naufragou porque veio tarde demais. Nos anos 80, daria certo. 2 décadas mais tarde, Rita Lee tem a voz de uma idosa de 90 anos. Não convence nem a vovozinha.

Ernesto Ribeiro disse...

De novo: eu posto um comentário acima e um erro meu no envio me registra como "Anônimo".


...E eu tenho TODAS as edições originais da Chiclete com Banana : 24 bimestrais, 6 especiais.


Se quiserem, eu tiro xerox de tudo.

Dênis disse...

Ainda as tem?

MCoutinho disse...

eu quero!!!!!