No cinema brasileiro, há quem reclame que se bate muito na tecla periferia-favela-miséria. É o tal do favela movie.
Nas HQs nacionais, dois lançamentos namoram a tendência, mas felizmente, com resultados bem menos estereotipados: Morro da Favela, de André Diniz, e Almas Públicas, de Marcello Quintanilha.
O primeiro é uma biografia em quadrinhos do fotógrafo Maurício Hora, ilustre cria do Morro da Providência, ex-Morro da Favela, por ter sido, justamente, a primeira ocupação urbana a receber a denominação “favela”.
Já o segundo é uma coletânea de histórias curtas de Quintanilha, quadrinista brasileiro que mora na Espanha.
Felicidade no presídio
Morro da Favela surgiu da vontade de André Diniz, um dos mais ativos quadrinistas atuais, de “contar histórias de pessoas anônimas que você ouve e pensa: ‘daria um filme’”, conta.
Depois de conhecer o trabalho de Maurício Hora, primeiro fotógrafo a registrar a vida no morro sob domínio dos traficantes, André resolveu entrar em contato. “Nos encontramos algumas vezes para conversar, mas ele só teve ideia do que era quando viu a HQ pronta”, diz.
Histórias de favelados que superam preconceitos são um prato cheio para abordagens apelativas – armadilha que André evitou de forma simples: “Isso aqui é a visão do Maurício, ele é o narrador. Isso dá autoridade, e eu já sabia que ia sair sangue no depoimento dele, mas isso não quer dizer ele seja anestesiado para a violência”.
Mesmo assim, surpresas não deixaram de surgir no caminho: “Uma coisa que me puxou o tapete foi quando ele me disse que suas melhores lembranças da infância são as visitas que ele fazia ao pai no presídio, com 4 ou 5 anos, por que tava todo mundo feliz, tinha bolo, refrigerante, futebol”, conta.
“Para você ter uma ideia, ele até hoje não sabe arrumar o armário direito, por que toda hora a polícia ia lá revistar, por que o pai dele era traficante, e desarrumava tudo. Então ele nem se dava ao trabalho de arrumar o armário. No fundo, são os detalhes mais sutis que melhor contam sua história. Cena de tiroteio eu só botei o estritamente necessario”, conclui André.
Desenvolvimento natural
Sutilezas e histórias de gente do povo também dão a tônica de Almas Públicas, sensível tratado de brasilidade urbana de Marcello Quintanilha.
De forma muito natural, ele vem desenvolvendo uma forma de narrar que parece pescada de fragmentos de conversas entreouvidas nas ruas do Brasil.
“A naturalidade da escrita de muitos autores brasileiros foi, mais do que uma influência, um aprendizado”, conta. “Você tem razão quando usa a palavra ‘desenvolveu’, porque se trata de uma forma de escrever trabalhada ao longo de anos”.
Quintanilha, que é carioca, acredita que é essa naturalidade que o leva a “desvendar o interior de cada personagem”.
Em 2004, o artista esteve em Salvador para conhecer a cidade, dentro do projeto de álbuns Cidades Ilustradas, em que grandes nomes das HQs ofecerecem sua visão particular das metrópoles.
“Embora tendo como ponto de partida acontecimentos, conversas, impressões, todas
as histórias e personagens são ficção. E sim, muitas nasceram a partir de minha visita à Salvador. Essa viagem me marcou definitivamente, porque foi como um encontro
comigo mesmo, na medida em que a cidade está na gênese de nossa formação como
nação”, conclui.
Almas públicas / Marcello Quintanilha / Conrad Editora / 72 páginas / R$ 39,90 / www.conradeditora.com.br
Morro da Favela / André Diniz, com Fotos de Maurício da Hora / Editora Le Ya - Barba Negra / 128 páginas / R$ 39,90 / www.editorabarbanegra.com.br
Blog (que, nos seus primórdios, entre 2004-05, foi de um programa de rádio) sobre rock e cultura pop. Hoje é o blog de Chico Castro Jr., jornalista formado pela Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia. Atualmente, é repórter do Caderno 2+ do jornal A Tarde, no qual algumas das matérias vistas aqui foram anteriormente publicadas. Assina a coluna Coletânea, dedicada à música independente baiana. Nossa base é Salvador, Bahia, a cidade do axé, a cidade do terror.
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