Está na hora dessa gente pálida e caindo aos pedaços mostrar seu valor. De símbolo da cultura trash ao valorizado commodity atual, disputado por estúdios de cinema, produtoras de games, editoras de HQ e literatura e até canais de televisão, entre várias outras instâncias, foi um longo e tortuoso caminho – a passinhos lentos – para os zumbis.
Essa história, que tem muitos mais detalhes e significados ocultos do que se poderia imaginar, está contado de forma magistral em Zumbis: O Livro dos Mortos (Barba Negra, selo da editora LeYa), do pesquisador inglês Jamie Russell, lançado há pouco no Brasil.
Organizado de forma cronológica, o autor resgata as origens do mito do zumbi no Ocidente em documentos de mais de 100 anos, quando a revista Harper’s Magazine fez a primeira referência aos mortos-vivos em um artigo do “jornalista e antropólogo amador” Lafcadio Hearn, The Country of The Comers-Back (A Terra dos que Voltam), publicado em 1889.
A matéria de Hearn foi o resultado de sua viagem à Martinica, para onde viajou para estudar o folclore local, mas pouco trouxe de concreto aos leitores.
Em 1928, porém, o livro A Ilha da Magia (Ed. Hemus, s/d), do jornalista William Seabrook, incendiou a curiosidade e a imaginação dos norte-americanos sobre a cultura vodu do Haiti e suas histórias sobre zumbis.
E aqui talvez esteja o grande achado do livro de Jamie Russell: a ligação íntima do mito do zumbi com a escravidão e as práticas de feiticeiros vodu da ilha, que seriam capazes de, utilizando determinadas substâncias tóxicas, induzir pessoas a um estado catatônico semelhante à morte.
Depois de sepultadas, as vítimas eram desenterradas na noite seguinte ao “funeral”, e postas para trabalhar em lavouras de cana-de-açúcar em localidades distantes, para não serem reconhecidos pelos parentes.
No Haiti, esse tipo de coisa era tão comum, que virou crime previsto no Código Penal: “É considerado atentado à vida (...) o emprego de substâncias que, sem produzir a morte, causam um feito letárgico mais ou menos prolongado”, cita o autor.
A própria origem da palavra zumbi tem ramificações misteriosas: “do francês ombres (sombras); do caribenho jumbie (fantasma); do bonda africano zumbi e do kongo nzambi (espírito morto)”, escreve Russell.
Ocupado pelo exército norte-americano em 1915, as histórias de zumbis do Haiti acabaram servindo, através da propaganda e da grande imprensa, para “justificar” a invasão do país, assim como o conto das “armas de destruição em massa” no Iraque, em 2003.
Estudo extenso e acessível
Foi somente em 1932 que os zumbis chegaram ao cinema, com um filme de título bastante significativo: Zumbi Branco (White Zombie), com Bela Lugosi.
De lá para cá, os zumbis já viveram (ops) diversos altos e baixos. E, em 1968, chegaram à forma em que são conhecidos hoje, com A Noite dos Mortos-Vivos, de George Romero, considerado o Cidadão Kane dos filmes de zumbi.
No Livro dos Mortos de Russell, fãs e curiosos tem um extenso estudo desses monstros, sob os vieses da história cultural, antropologia e comunicação, em linguagem ágil e acessível.
Zumbis: o livro dos mortos / Jamie Russel / Formato: 23X20 cm / 464 páginas, R$ 44,90
ENTREVISTA: JAMIE RUSSELL
"A cultura Vodu escoou através das Américas de formas muito sutis e interessantes"
1. Por que é tão difícil convencer as pessoas de que (alguns) filmes de zumbis estão carregados de significados profundos, metáforas e simbolismos? A maioria das pessoas dão um risinho constrangido quando digo a elas que um dos meus filmes preferidos é Amanhecer dos Mortos (Dawn of The Dead, 1978, George Romero).
Jamie Russel: Não se sinta embaraçado, e sim, orgulhoso! Zumbis sempre foram a grande subclasse do cinema de horror. Eles são monstros bobos, feios e baratos. Mas - e isso é o mais importante - são muito ricos quando refletimos sobre o que eles representam e o que eles nos dizem: morte, Deus, a alma, o corpo, o proletariado, escravidão. Tudo isso está inscrito mito do zumbi desde seus primórdios. Quando comecei a escrver este livro, em 2001, quase não haviam fãs de zumbis. Estes monstros estavam quase esquecidos. Quando eu contava as pessoas sobre oque eu estava escrevendo, elas frequentemente riam. Mas hoje, os zumbis são um fenômeno. OK, as pessoas ainda riem, mas eles já conquistaram o mundo.
2. Aqui no Brasil, mais especificamente no estado em que moro, a Bahia, as religiões de matriz africana, como Candomblé e Umbanda, também exercitam um tipo de estado de transe, a partir de uma poderosa música a base de percussão e danças - assim como no Voodoo haitiano. Mas nunca tivemos relatos de algo remotamente parecido com o de zumbis.
JR: Sou mais um historiador do cinema do que um antropólogo, então não posso falar como expert, mas isto é algo sobre o qual eu definitivamente gostaria de saber mais. Fiquei bastante chocado - de uma forma muito agradável - pela resposta ao meu livro no Brasil. Nunca imaginei que haveria tanto interesse nos mortos-vivos em seu país. Estou certo de que há aí uma ligação direta com a história de colonialismo e importação de escravos da África. A cultura Voodoo escoou através das Américas de formas muito sutis e interessantes. Ainda que o Haiti tenha pemanecido como uma "central zumbi". Em parte por que havia uma preferência local por essas histórias de "pessoas mortas trabalhando nas lavouras de cana-de-açúcar", e a ideia de zumbis acabou se consagrando na própria lei haitiana (e desta forma, reforçando o mito entre os habitantes da ilha). Quando as forças armadas norte-americanas chegaram ao Haiti em 1915, a mídia ianque se interessou em brincar com esses mitos de zumbis para justificar a ocupação desta ilha "bárbara" e "sedenta de sangue", na qual forças demoníacas estavam em ação. Desta forma, vem desde aí, do envolvimento da América do Norte no Haiti, a popularidade dos zumbis nos Estados Unidos: propaganda, ocupação militar e uma tentativa de pintar a população da ilha como selvagens.
3. O senhor sabia que o maior e mais popular herói negro do Brasil se chama justamente Zumbi? Qual o simbolismo disto?
JR: Isso é muito interessante, eu não sabia disso. Eu acho que é realmente simbólico. O (significado do) mito do zumbi sempre foi sobre escravidão, sobre pessoas aprisionadas no corpo e na alma por um opressor maligno. Esse, originalmente, era o grande horror dos zumbis para as pessoas comuns: eles (os zumbis) não eram criaturas prontas para te devorar. Você não ficava com medo desses monstros de olhos vidrados e rosto sem expressão trabalhando nas lavoura de cana. Você ficava com medo de se tornar um deles. Para a maioria dos haitianos, cujas vidas eram terrivelmente duras, a simples ideia de que a morte não traria libertação, de que não haveria um paraíso, mas apenas um inferno eterno de trabalho escravo na Terra, era o próprio material de que são feitos os pesadelos.
4. O quanto o fato de que os zumbis não tem uma origem literária nobre, como Drácula e Frankenstein, afetou a percepção geral sobre eles?
JR: Os zumbis sempre foram o "segredinho sujo" da cultura norte-americana, criaturas nascidas da ocupação do Haiti e da propaganda que girava em torno disso, enquanto os americanos tentavam justificar a invasão de um estado soberano (talvez os zumbis fossem os primeiros terroristas!). Outros montros, como vampiros, lobisomens e a criação de Frankenstein, eram muito mais antigas e estáveis. Eles surgiram do folclore europeu e tiveram grandes romances escritos no século 19, como o Drácula de Bram Stoker, por exemplo. Zumbis não tiveram nada disso. Para a maior parte dos espectadores ocidentais de 1914 eles eram um monstro completamente novo - e esfarrapados, despenteados. Acho que isso ajudou a manter os zumbis como um tipo de subclasse nos círculos do horror, especialmente no cinema. O grandes filmes de horror do Universal Studios eram sobre Drácula, Frankenstein e o Lobisomem. Eles nunca fizeram um filme de zumbi.
5. Desde George Romero, os zumbis são comumente associados com uma metáfora relativa à estupidez mesquinha típica das classes média e alta, mas como o senhor mostra em seu livro, a primeira associação, através do livro A Ilha da Magia, de William Seabrook, era sobre a escravidão. Já o ensaísta Chuck Klosterman, da New York Times Magazine, compara zumbis aos emails spams que temos de eliminar a todo momento, mas ainda assim eles continuam chegando. Coisas fáceis de se livrar, mas que mesmo assim, nunca páram de nos assediar. Isso é parte do "encanto" dos zumbis? Podemos associaá-los com qualquer coisa?
JR: Colocar zumbis e emails spam lado a lado é engraçado. Eu gosto da ideia principal de Klosterman, de que a vida moderna é tão implacável que nos sentimos como se estivéssemos lutando contra zumbis. É por isso que o zumbi é tão interessante: é uma grande metáfora para nosso mundo, um mundo no qual não somos mais escravizados por magos Voodoo ou um homenzarrão com um chicote, mas por forças que tentam nos deixar tão burros quanto os zumbis. Acho muito interessante que os zumbis tenham se tornado mais populares do que nunca durante a crise financeira global. O que ficou bem claro nos últimos três anos é como somos todos escravos da elite financeira mundial, os banqueiros. Estamos sendo esmagados pelas hipotecas (em inglês, mortgage, que deriva do francês: mort [morte], mais gage [penhor], o que parece tão apropriado!). Amamos zumbis por que eles são um espelho de nossa situação atual e também por que eles aparecem em histórias nas quais as pessoas lutam para sobreviver e serem livres.
6. Os filmes de George Romero costumam ser menos sobre zumbis e muito mais sobre quão desprezíveis e mesquinhos, nós, os vivos, podemos ser. Seremos nós os verdadeiros zumbis, com nossas roupinhas de marca, carros modernos e iPads?
JR: Sim, definitivamente! Somos todos zumbis agora! A grande dinâmica dos filmes de zumbis é esta: você fica dividido entre se identificar com os zumbis e as pessoas que estão tentando não se tornar um deles. São monstros muito niilistas - e eu acho que as pessoas que amam zumbis tem um real desejo de ver o mundo se destroçar, os mortos levantarem e toda a podridão de nossa sociedade ser varrida em um grande apocalipse zumbi. É emocionante e aterrador ao mesmo tempo.
8. Quer dizer que se não fosse pela série de videogames Resident Evil, de enorme sucesso desde os anos 1990, não estaríamos vendo toda esta "zumbimania"?
JR: Entrevistei George Romero há uns dois anos e eu disse a ele que A Noite dos Mortos Vivos (1968) era o Cidadão Kane do cinema zumbi. Perguntei como ele se sentia tendo criado todo um subgênero do cinema de terror - o apocalipse dos zumbis canibais com um contexto sócio-político. Ele sorriu e disse achar que os videogames é que mereciam o crédito pela atual explosão dos zumbis, incluindo Resident Evil. Sou um grande apreciador desses games e acho que é o meio perfeito (para os zumbis). Eles traduzem de forma perfeita o aspecto implacável dos monstros e conseguem te fazer imergir nisso totalmente. Jogar Left 4 Dead é incrível: nunca me senti tão aterrorizado (no sentido psicológico do coração acelerado e das mãos suadas) do que jogando esse negócio. Eles realmente "fervem" a mecânica básica das histórias de zumbi - ou seja, sobrevivência - até o seu âmago.
9. O senhor acha que é mesmo verdade as histórias sobre os zumbis haitianos? Que algo realmente próximo ao conceito de zumbi realmente existiu ali?
JR: Estou certo de que houveram zumbis, eles foram documentados. A questão é se eles estavam vivos ou mortos. Pessoalmente, estou inclinado a achar que o zumbi foi mesmo só um mito que cresceu entre deficientes mentais ou pessoas que sofreram "lavagem cerebral", seja pelo poder da sugestão, seja por uso de drogas específicas. Leia o livro de Wade Davis, A Serpente e o Arco-Íris (Jorge Zahar, 1985, adaptado para o cinema por Wes Craven em 1987, com o título nacional de A Maldição dos Mortos-Vivos) e você verá que bem possível "zumbificar" alguém ainda vivo, usando os venenos corretos. Eu não acredito na ideia de mortos trazidos de volta à vida – se bem que, depois de ter assistido tantos filmes de zumbi, eu não me arriscaria a caminhar por um cemitério tarde da noite!...
10. Como o senhor avalia os últimos filmes de George Romero, Terra dos Mortos (2004), Diário dos Mortos (2007) e Ilha dos Mortos (2010)? É uma nova trilogia, um novo conceito? Ou apenas a continuação de uma linha de de raciocínio, de discussão?
JR: Para ser honesto, estou desapontado com o trabalho de Romero desde Terra dos Mortos. Ele realmente perdeu seu "mojo" (tesão) e isso é terrivelmente triste de se testemunhar. Achei Diário ocasionalmente péssimo e totalmente fora da sua esfera de expertise. Aquela coisa toda da câmera subjetiva / internet, é como assistir o papai tentando fazer um rap. Uma tentativa de soar relevante vinda de alguém que - ele mesmo já admitiu - não entende nossa era da internet. Já Ilha dos Mortos foi completamente esquecível. Mas eu realmente amo Romero e sempre assistirei tudo o que ele produzir. Ele merece todo o respeito por ter criado sozinho o moderno filme de zumbi, com a trilogia Noite, Amanhecer e Dia dos Mortos. Agora, um dos meus filmes favoritos dele é o seu conto (sem zumbis) de duelos de motocicletas: Cavaleiros de Aço (Knightriders, 1981), com Ed Harris e Tom Savini. É um filme sobre não se vender e seguir seu próprio caminho. Mas não importa o que eu pense do seus filmes recentes, eu sei que são feitos do jeito que ele projetou. Ele não recebe dinheiro de grandes estúdios (isso só aconteceu em Terra), ele não compromete sua visão... ele faz do seu próprio jeito, assim como os motoqueiros de Knightriders – e eu o amo por isso.
11. Eles estão em todos os cantos: nos filmes, na TV, games, livros, HQs, internet, música e até nas ruas (nos eventos Zombie Walks). Será esta a Era de Ouro dos Zumbis?
JR: Sim, totalmente! É algo incrível de se assistir, por que a coisa realmente cresceu. Quando meu livro foi publicado nos Estados Unidos e no Reino Unido em 2005, estava só começando. Tivemos muita sorte em publicá-lo enquanto a mania estava se estabelecendo. Sabe, acho que foram criadas mais histórias relacionadas a zumbis nos últimos seis anos do que no século 20 inteiro. É o mundo dos zumbis lá fora, nós apenas vivemos nele.
Agradecimentos ao pessoal da Editora LeYa / Barba Negra, por possibilitarem a realização desta entrevista, publicada no periódico da Avenida Tancredo Neves, no dia 19 de abril de 2011.
Blog (que, nos seus primórdios, entre 2004-05, foi de um programa de rádio) sobre rock e cultura pop. Hoje é o blog de Chico Castro Jr., jornalista formado pela Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia. Atualmente, é repórter do Caderno 2+ do jornal A Tarde, no qual algumas das matérias vistas aqui foram anteriormente publicadas. Assina a coluna Coletânea, dedicada à música independente baiana. Nossa base é Salvador, Bahia, a cidade do axé, a cidade do terror.
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9 comentários:
MGMT e Cold War Kids estão confirmados no SWU 2011, segundo Lúcio Ribeiro - soube via Omelete.
http://www.omelete.com.br/musica/swu-2011-mgmt-e-cold-war-kids-estarao-no-festival-de-itu/
Black Keys e e um tal de Darwin Deez estão quase confirmados tb, parece.
Black Keys? Agora sim, estamos almoçando na mesa dos adultos.
Parece incrível, mas Community conseguiu derrubar Big Bang Theory do posto de "minha sitcom preferida".
Olha só as fotos do novo episódio de batalha de paintball - teve um na primeira temporada, que foi um dos melhores de toda a série.
http://www.omelete.com.br/series-e-tv/community-episodio-do-paintball-ganha-muitas-novas-fotos/
Nunca pensei que ia dizer isso na minha vida, mas Chevy Chase é O Cara!
(Só por isso, meu caldeirão no inferno acaba de ganhar mais lenha na fogueira...)
Hj, quinta-feira, 11h30, tem episódio inédito no Sony. Quem puder assistir, recomeindo.
A primeira temporada tem na Video Hobby da Pituba para alugar - e é linda.
Dead Chico, meu amigo morto vivo, essa é uma das melhores matérias/entrevistas suas que já li, ever (desculpe a redundância...)!
Completa, esclarecedora, arrebatadora e, por que não, assustadora! Huuups!
"Time to diiiieee..." or not!
E pensar que eu, Poli e Cebola caminhamos naquela ponte ano passado...
Caímos fora na hora certa!
Brigado, Márcio. É como dizia aquele outro: "tente se manter perto das coisas que ama - e leve um bastão de beisebol para todas as outras".
A Marvel presta uma bonita homenagem ao artista brasileiro (da Paraíba, sacanas!) Mike Deodato Jr, um livrão de arte em capa dura.
http://www.universohq.com/quadrinhos/2011/n29042011_06.cfm
Chicão. Breaking Bad segunda temporada já está lá na VH....se jogue pois é Phodão!!!
Meu querido amigo e mestre Adalberto Meireles, um dos caras que mais entende de CINEMA (com todas as letras maiúsculas, pois não são essas bobagens que eu falo aqui) queu conheço, lança seu blog de críticas. Desde já, endereço diário obrigatório. Abaixo, seu mini release.
"Agora é definitivo: o blog .C de cinema estará no ar nos primeiros minutos de domingo, 1 de maio; temos, portanto, um encontro marcado. Quero fruir. Minha proposta é provocar, perguntar e responder: por que um filme, um cartaz, uma foto, uma sequência, uma simples imagem de cinema inquieta e emociona tanto. Para isso, tomei emprestado, como slogan, O prazer dos olhos, título de um livro de Fraçois Truffaut, um dos mais renomados cineastas franceses do pós-guerra e um teórico do cinema, do filme, da arte do filme.
O endereço é: pontocedecinema.blog.br. Vamos lá, então, ao prazer.
--
Adalberto Meireles
Jornalista e crítico de cinema"
Tô ligado, Nei! Já vi lá! Vou pegar na sequência, com certeza! Breaking Bad é a melhor série (séria) da TV hj em dia. Pelo menos, eu acho – melhor até que Mad Men.
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