Fruto de nada menos que onze anos de pesquisa e produção, a HQ Angola Janga é a afirmação definitiva do talento – e da garra – do quadrinista, mestre em história da arte pela USP, Marcelo D’Salete.
Monumental – do alto de 432 páginas –, Angola Janga, contudo, não reafirma só o talento de seu criador, já conhecido por outras elogiadas HQs, como Cumbe (2014) e Encruzilhada (2016), mas também traz uma visão épica e mais abrangente do assunto.
Em Angola Janga, aprendemos – entre outras coisas – que a história de Palmares não se resume a Zumbi, Ganga Zumba e o bandeirante Domingos Jorge Velho.
Muitos são os personagens desta história, resgatados por D’Salete através de extensa pesquisa (referenciada na vasta bibliografia ao fim do livro) e também na pesquisa de campo em Alagoas.
Adicione-se a isto a espetacular e detalhada arte em preto & branco (é visível a evolução no traço do artista desde Cumbe) e a narrativa segura, cinematográfica, da HQ – e o resultado é um só: um clássico instantâneo dos quadrinhos.
Não a toa, Angola Janga já tem sua publicação assegurada na França (agora em abril, pela editora Çà et Là), Portugal (pela Polvo), Polônia (Timof) e EUA (Fantagraphics).
“Grande parte das críticas foram positivas e nas livrarias o livro está indo muito bem”, conta D’Salete por email.
Necessária, Angola Janga deveria ser adotada em escolas pelos professores de História – mesmo correndo o absurdo risco nos dias de hoje, de ainda ser denunciado como algum tipo de “doutrinação”.
“É difícil não assumir lados. Posicionamentos contrários podem acontecer. A princípio, não é um problema. Faz parte do jogo. Por outro lado, o que vivemos agora, socialmente, não é apenas contraposição, mas uma tentativa de calar e obstruir o diálogo. Em relação a isso, é preciso se posicionar”, afirma o artista.
“Nossa história tem diversos lados, precisamos estar atentos para não privilegiar apenas uma vertente. Isso já aconteceu antes em relação a história de negros e indígenas. Quase não temos direito de contá-la ao nosso modo”, percebe.
Luta ontem e hoje
Hoje em dia é difícil ter noção do que foi Palmares (ou Angola Janga: Pequena Angola, como chamavam seus habitantes).
De pé por mais de 100 anos, entre os séculos 17 e 18, esse ajuntamento de mocambos entre Alagoas e Pernambuco foi mesmo como um pedaço da África em pleno Brasil.
Sua capital, o mocambo Macaco, chegou a ter seis mil habitantes, população equivalente a qualquer grande cidade brasileira naquele período.
Na HQ, vemos que os africanos alevantados tinham sua arquitetura, sua culinária, suas religiões, seus saberes.
“Nossa história oficial tenta negar os conflitos e toda a opressão de uma ordem fundada na escravidão, no patriarcado etc. Houve inúmeras revoltas indígenas, negras e populares no passado. Nos arredores da escravidão, havia inúmeros mocambos de escravos fugidos”, afirma D’Salete.
Palmares era formado por diversos mocambos: Andalaquituche, Amaro, Curiva, Alto Magno, Tabocas, Subupira, Zumbi, Acotirene, Aqualtune, Una, Macaco, Osenga.
A sofisticação era tal que havia mocambos para produção de alimentos e um mocambo para treinamento militar (Subupira), além da capital administrativa e política (Macaco).
“Alguns (mocambos) eram grandes e fixos, outros eram menores e móveis. A tática principal desses palmaristas era, quando atacados, fugirem para outros mocambos e atacar os luso-brasileiros em momentos oportunos”, conta.
“Para isso, era relevante ter uma rede de espias nas vilas e atalaias (vigias) na serra. Estes deveriam observar qualquer passo dos inimigos. Era uma organização complexa e muito articulada, tanto que se estendeu por mais de 120 anos”, acrescenta.
Emblema do atraso que vitima o Brasil, a escravidão deixou marcas indeléveis – e este é o ponto central da HQ: “Mesmo sendo um livro histórico, tentei trazer elementos contemporâneos à obra. Situá-la num contexto atual. Este passado ainda tem relações com nosso mundo hoje. A escravidão acabou, mas certas estruturas de poder e os grupos por trás disso, alteraram-se pouco”, afirma D’Salete.
“O assassinato de Marielle Franco, mulher negra, periférica, extremamente articulada politicamente, é mais uma marca desta fratura social. Há grupos, beneficiados por esse apartheid social e histórico, dispostos a impedir toda e qualquer mudança”, conclui.
Angola Janga - Uma história de Palmares / Marcelo D'Salete / Veneta / 432 páginas / R$ 89,90/ www.angolajanga.com.br
ENTREVISTA COMPLETA: MARCELO D'SALETE
O livro foi lançado já há alguns meses. Como tem sido a recepção à obra? Alguma proposta de transpo-lo para alguma outra mídia? Alguma reação contrária à obra, como parece estar "na moda" hoje em dia?
Marcelo D'Salete. Foto Rafael Roncato |
Entre o início da produção da obra e seu lançamento foram 11 anos. Imagino que você mesmo mudou neste período, seus pontos de vista foram ampliados com o andamento de sua pesquisa e quem sabe até seu traço. Como foi esse processo mais íntimo seu?
MS: Minha maneira de olhar os primeiros séculos do Brasil alterou-se bastante. Sobre Palmares, diversos fatos me chamaram atenção: a tentativa de paz de Ganga Zumba; os inúmeros personagens do conflito; o contato entre os palmaristas e os colonos; o fato de Palmares ser considerado um dos principais problemas da colônia em meados do século XVll; a participação do terço negro dos Henriques contra os palmaristas; o uso de soldados luso-brasileiros nas duas margens do Atlântico, de Pernambuco até Angola; a forma como Palmares continuou mesmo depois da queda do mocambo Macaco em 1694. Enfim, o século XVll ainda é algo desconhecido para nós hoje. É distante de qualquer ideia de nação e país, aliás. Portugal tentava se afirmar no meio de conflitos entre potências europeias (França, Espanha, Holanda etc.) e os diversos povos indígenas e africanos. E, de fato, o que não faltou foram conflitos acirrados. Desenvolver o livro Cumbe (2014) e Angola Janga (2017) foi um processo longo de aprendizado em termos de possibilidades de traço, composição, texturas e formas de representar o Brasil do século XVII. Fico feliz em perceber este trabalho sendo acolhido no meio dos quadrinhos. Meu traço e modo de contar é fruto de um jeito muito pessoal de lidar com narrativas. Tem fortes influências do cinema, da música, literatura etc. Os quadrinhos têm potencial enorme para explorar narrativas e muitos modos de contar.
Entre o início da produção da obra e seu lançamento, muita coisa mudou no Brasil - e como sabemos, não para melhor, muito pelo contrário. O retrocesso em diversas áreas que vimos sofrendo, o acirramento cada vez maior dos ânimos no país influenciou de alguma forma sua produção e o resultado final que vemos no livro?
MS: A produção do livro aconteceu no meio dessas últimas ebulições sociais. Mesmo sendo um livro histórico, tentei trazer elementos contemporâneos para a obra. Situá-la num contexto atual. Este passado ainda tem relações com nosso mundo hoje. A escravidão acabou, mas certas estruturas de poder e, principalmente, os grupos por trás disso, alteraram-se pouco. O componente racial é parte da engrenagem de obstrução, por todos os meios, do acesso ao poder e ao compartilhamento dos benefícios trazidos pela sociedade. O Brasil ainda não rompeu com essas condições. De fato, nossa democracia é incompleta desde o princípio. O assassinato de Marielle Franco, uma mulher negra, periférica, extremamente articulada politicamente, é mais uma marca desta fratura social. Há grupos, beneficiadas por esse apartheid social e histórico, dispostos a impedir toda e qualquer mudança.
A visão colonialista tradicional sempre deu a entender que os escravos africanos eram pouco mais conscientes que animais, mas sabemos que as civilizações africanas tinham suas próprias culturas, arquiteturas, saberes. E isso se refletiu em Palmares. Impressionou-me especialmente saber que eles tinham um campo de treinamento militar (Subupira). Esta visão "diminuída" dos africanos seria uma das razões do racismo entranhado em nossa sociedade?
MS: Nossa história oficial tenta negar os conflitos e toda a opressão de uma ordem fundada na escravidão, no patriarcado etc. Houve inúmeras revoltas indígenas, negras e populares no passado. Nos arredores da escravidão, havia inúmeros mocambos de escravos fugidos. Isso aconteceu na antiga Capitania de Pernambuco, nas Minas Gerais do XVIII, no Rio de Janeiro do XIX e em vários outros estados. Cada um desses mocambos tinha sua organização, economia e história própria. Em geral giravam em torno das grandes vilas, pois realizavam trocas com os colonos próximos. Palmares era formado por diversos mocambos (Andalaquituche, Amaro, Curiva, Alto Magno, Tabocas, Subupira, Zumbi, Acotirene, Aqualtune, Una, Macaco, Osenga etc.). Macaco era a capital administrativa e política, onde estava Ganga Zumba e depois Zumbi. Subupira era um centro de treinamento. Outros mocambos eram locais de produção de mantimentos: milho, cana-de- açúcar, mandioca etc. Alguns eram grandes e fixos, outros eram menores e móveis. A tática principal desses palmaristas era, quando atacados, fugirem para outros mocambos e atacar os luso-brasileiros em momentos oportunos. Para isso, era relevante ter uma rede de espias nas vilas e atalaias (vigias) na serra. Estes deveriam observar qualquer passo dos inimigos luso-brasileiros. Era uma organização complexa e muito articulada, tanto que se estendeu por mais de 120 anos. O contingente principal de pessoas na Serra da Barriga, antiga Pernambuco, eram de africanos da região dos antigos reinos de Angola e Congo. Possuíam seus próprios deuses e crenças, como Zambi, Calunga, o Quibungo etc.
Hoje em dia parece que estamos em meio a uma "guerra de versões" sobre inúmeros fatos históricos até pouco tempo atrás indiscutíveis como "nazismo é de direita", "a escravidão é culpa dos brancos europeus" etc. Guias que se pretendem "politicamente incorretos" recorrem a argumentos do tipo "ah, mas os próprios negros escravizavam e vendiam pessoas para serem escravizadas pelos brancos", como se isso justificasse alguma coisa. Como combater esse tipo de "fake history"?
MS: Os argumentos que relativizam o que foi a escravidão surgem num momento de politização e de acesso de novos grupos oprimidos à educação superior e algumas esferas de representação política. Mesmo numa escala reduzida, isso é um prenúncio de certa mudança. Os antigos grupos detentores do acesso às melhores universidades e outros postos, sentindo-se ameaçados, começaram a atacar estes primeiros. Muitos dos guias politicamente incorretos servem como luvas perfeitas para os ataques da direita às parcelas marginalizadas em ascensão. Agora, vale dizer, o termo "politicamente correto" surgiu nos EUA por volta da década de 1980, como resposta às demandas de grupos negros e periféricos no ensino superior. Nossa história é muito diferente disso. A luta de negros e negras no Brasil por uma real democracia e direito a uma vida digna vem desde o pós abolição. Aqui, quando usam o termo estrangeiro "politicamente correto" é para destratar e ignorar essa história local. É preciso rever esses fatos e reconhecer nossa própria história.
Qual seu próximo trabalho a ser publicado no Brasil?
MS: Ainda estou em fase de estudo e desenvolvimento de novas ideias. É possível que seja um trabalho mais contemporâneo.
Angola Janga vai ser publicado no exterior também?
MS: Angola Janga tem contrato assinado para publicação na França (Çà et Là), Portugal (Polvo), Polônia (Timof) e EUA (Fantagraphics). A edição francesa sai agora em abril. Cumbe já foi publicado na França, EUA, Portugal, Itália e Áustria, entre 2015 e 2017.
O sensacional Dangerous Minds relembra a arte do maravilhoso Alain Voss, aquele francês que ilustrou duas capas clássicas d'Os Mutantes:
ResponderExcluirhttps://dangerousminds.net/comments/the_legendary_mutations_of_french_comic_artist_alain_voss
De cair o queixo.
Stay alive, my man!
ResponderExcluirhttps://entretenimento.uol.com.br/noticias/redacao/2018/04/06/erasmo-carlos-tem-marca-passo-implantado-apos-descoberta-de-anomalia.htm
STAY ALIVE!!