O Homem Sem Talento, de Yoshiharu Tsuge, é o mangá com menos cara de mangá que já foi publicado no Brasil. Clássico, é um périplo ao Japão dos grotões, longe da modernidade à luz neon de Tóquio
Quando se fala em mangás, logo nos vem à mente uma profusão de personagens de olhos enormes e espadas em punho, em meio à muitos efeitos de movimento e cenários fantasiosos.
Felizmente, nem só de Dragon Ball e Pokemon vivem os quadrinhos japoneses.
Um excelente exemplo que foge totalmente à estética e às temáticas usuais das HQs produzidas no Japão, O Homem Sem Talento, de Yoshiharu Tsuge, pode ser uma das melhores coisas que você vai ler neste início de 2020.
Semiautobiográfica, a HQ acompanha a vida nada interessante de Sukegawa, um homem de meia idade, casado e com um filho pequeno, que é desenhista de mangás mas desiste de trabalhar para a indústria, passando a exercer atividades absolutamente infrutíferas e desnecessárias – tentativas contínuas de auto-sabotagem.
Ele começa vendendo pedras, algo que parece completamente sem sentido para nós, ocidentais, mas que, de fato, existe como atividade comercial e espiritual no Japão.
Lá, a observação de pedras – ou suiseki – retiradas de lagos são encaradas como atividades de relaxamento e espiritualidade elevada.
Porém, as pedras catadas no rio próximo à sua casa simplesmente não tem valor.
O direito de desaparecer
Nos capítulos seguintes o loser nipônico tentará vender pássaros e câmeras fotográficas velhas, entre outras inutilidades – sempre para dar com os burros n’água e seguir na pobreza com sua mulher mal-humorada e seu filho choroso e catarrento – uma vida miserável que, no entanto, lhe parece bastante conveniente, já que ele insiste em não fazer nada realmente efetivo para tirar o pé da lama.
Descrito assim, parece horrível. No entanto, é uma das HQs mais belas já produzidas no Japão.
Sua consistência temática – e constância narrativa –, além dos desenhos belíssimos de Tsuge, constituem uma obra definida pela crítica internacional como nada menos que uma obra-prima – termo gasto, porém plenamente justificado aqui.
Em seus périplos, Sukegawa conhece tipos ainda mais excêntricos e tristes do que ele, como os participantes de um leilão de pedras, o dono de uma loja de pássaros que insiste em só comercializar aves japonesas de difícil criação doméstica e um livreiro de aspecto cadavérico e passado obscuro.
A cada parada em sua jornada rumo ao nada, Sukegawa – e os leitores – ouvem considerações e histórias extraordinárias que muito nos revelam do Japão dos grotões, muito longe da modernidade à luz neon de Tóquio, um país desconhecido, onde se contemplam pedras e pessoas podem se tornar andarilhas por livre e espontânea vontade.
O capitulo final, sugestivamente intitulado Desaparecer, é especialmente belo, quando o livreiro esquisitão vende à Sukegawa um livro de Inoue Seigetsu, poeta errante do século 19 e cuja trajetória parece amarrar com perfeição esta ode – não ao fracasso, mas à liberdade absoluta, inclusive à liberdade de não querer ser alguém ou fazer algo.
Aqui, a ode é ao direito de se desvanecer em meio à bruma, rumo ao esquecimento.
O que não deixa de ser irônico, visto que tanto Seigetsu quanto Tusge são idolatrados no Japão e fora dele.
Enfim, até para ser um fracasso é preciso talento, é preciso ter arte.
Em tempo: a edição da Veneta, primorosa, como de costume, é em capa dura e traz dois textos: um do editor Mitsuhuro Asakawa e outro do premiado brasileiro Marcello Quintanilha (Tungstênio, Luzes de Niterói), que faz um bem humorado paralelo entre a HQ, Dodeskaden (1971, o clássico de Akira de Kurosawa) e a obra-prima brasileira Vidas Secas, de Graciliano Ramos.
O Homem Sem Talento / Yoshiharu Tsuge / Veneta / Tradução: Esther Sumi / 240 p. / R$ 64,90
Blog (que, nos seus primórdios, entre 2004-05, foi de um programa de rádio) sobre rock e cultura pop. Hoje é o blog de Chico Castro Jr., jornalista formado pela Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia. Atualmente, é repórter do Caderno 2+ do jornal A Tarde, no qual algumas das matérias vistas aqui foram anteriormente publicadas. Assina a coluna Coletânea, dedicada à música independente baiana. Nossa base é Salvador, Bahia, a cidade do axé, a cidade do terror.
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