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quarta-feira, dezembro 06, 2017

ETERNO RETORNO

Natura Musical lança hoje, com show no TCA, caixa com obra d’Os Tincoãs, com direito a apresentação de remanescentes e convidados

Mateus Aleluia, foto do blogueiro
Um dos mais importantes e representativos legados da música baiana será devidamente reverenciado hoje, com um show e um lançamento no Teatro Castro Alves: Nós, Os Tincoãs, reunirá no palco os dois remanescentes vivos do lendário grupo, que tem sua obra resgatada em uma luxuosa caixa com três CDs e um livro, via selo Natura Musical.

Mateus Aleluia, o Tincoã que voltou à Salvador em 2007 após viver décadas em Angola, receberá no palco do TCA Badu, o Tincoã que vive nas Ilhas Canárias (Espanha) e não vem ao Brasil desde os anos 1990.

Badu e Mateus não compartilham um palco há 36 anos.

O sangue Tincoã seguirá no palco com a presença dos dois filhos angolanos de Dadinho (morto em 2000), que nunca vieram ao Brasil.

Mateus Aleluia Filho, outro descendente,  assina a direção musical do show, que ainda terá participações de Margareth Menezes, Saulo Fernandes, Ana Mametto e Ganhadeiras de Itapuã, além de  músicos como Alex Mesquita, maestro Bira Reis e Luizinho do Gêge.

O caráter de gala da noite se completa com assinatura  de Gringo Cardia na cenografia.

“Os Tincoãs tentaram retratar o que a Bahia sempre foi, é e será: a uma mistura de todos aqueles que deram sua contribuição para essa cultura, para a soberania do dendê”, afirmou Mateus Aleluia, durante entrevista coletiva.

“Nesse projeto, nós mostramos a obra dos Tincoãs, essa miscigenação do afro com o barroco sustentado na cultura do povo autóctone em suas diversas nações que aqui já existiam antes da chegada dos portugueses, e que chamamos de índios”, acrescenta.

Formada no final dos anos 1950 em Cachoeira, Os Tincoãs começaram como uma banda de baile típica da época, à base de boleros e tchá-tchá-tchás.

A partir de 1963, com a entrada de Mateus Aleluia, voltaram sua atenção para a música de raiz do Recôncavo, dos terreiros de candomblé e das igrejas barrocas.

“Em 1973 gravamos o primeiro disco (com essa estética) e em 76, gravamos o último”, conta.

O próprio Mateus explica melhor a cronologia dos Tincoãs, que envolve diversos membros.

“O primeiro disco (Meu Último Bolero, 1962, Musicolor) foi com Dadinho, Heraldo e Erivaldo, e ainda era só de boleros. A partir de 73 é Dadinho, Heraldo e Mateus. Em 75, é Dadinho, Morais e Mateus, formação que gravou o disco que tem Promessa ao Gantois (O Africanto dos Tincoãs, 1975, RCA)”, conta.

“Em 76 entra Badu, que gravou o disco que tem Cordeiro de Nanã (Os Tincoãs, 1977, RCA). Badu foi quem mais ficou conosco, até 83. O último disco dos Tincoãs é somente Dadinho e Mateus (1986, CID)”, enumera.

Há dois milhões de anos

Badu, o único outro Tincoã vivo. Foto divulgação
Ancestral e ainda atual, a música d’Os Tincoãs é uma espécie de amálgama perfeito de tradições ocidentais e africanas, a despeito dos seus poucos elementos – as vozes celestiais do trio, um violão tocado de maneira percussiva e as próprias percussões de terreiro.

Não a toa, após décadas esquecida, essa obra extraordinária é reverenciada por nomes como Carlinhos Brown, Margareth Menezes, Martinho da Vila, Criolo, Emicida e outros.

“A música dos Tincoãs é a música do mundo. Tem música que nós gravamos que tem mais de 2 milhões de anos. São músicas trazidas pelos encantados, pelos orixás, pelos inquices, pelos oguns – e que extrapolam o tempo”, diz.

“Talvez seja isso que faça essa conexão com a juventude e com anciãos como eu, né? É uma música atemporal”, ri  Mateus,  a sabedoria em pessoa.

Não que Os Tincoãs tenham descoberto a pólvora, mas talvez ninguém tenha feito essa abordagem de forma tão bem resolvida quanto eles.

“Antes dos Tincoãs já tinha Joãozinho da Gomeia (1914-1971), que fazia isso. Tinha o maestro Moacir Santos. Me lembro de quatro senhoras, por acaso brancas, da década de 1930, que também faziam isso, no Rio de Janeiro. Talvez nenhum desses tenha feito como Os Tincoãs fez, o amálgama de todas as culturas basilares da formação cultural brasileira em geral e baiana por excelência”, diz Mateus.

“E cantando como nós cantávamos. Eu penso que o principal atrativo d'Os Tincoãs eram os vocais. A forma afro-barroca de cantar. A forma sincopada, originada dos ritmos do candomblé, com os harmônicos dos órgãos da igreja católica”, conclui.

Nós, Os Tincoãs / Com Margareth Menezes, Saulo, Ganhadeiras de Itapuã e Ana Mametto / Hoje, 20 horas / Teatro Castro Alves / R$ 40 e  R$ 20



ENTREVISTA MATEUS ALELUIA
Mais trechos coletados durante coletiva no dia 27 de novembro

A aceitação d'Os Tincoãs: 


Senhor Mateus. Foto do blogueiro
Penso que hoje existem menos barreiras. Na época, as baterias estavam viradas para nosso trabalho. Era como se nosso trabalho estivesse se impondo sobre um mercado, sobre uma política de mercado. E não era bem isso que gente queria. Na verdade, nosso trabalho sempre foi bem aceito pela crítica. Mas ao mesmo tempo, havia um contra-vapor. Ficava aquela coisa meio morna. Hoje a aceitação está maior. A mentalidade das pessoas está mais amainada, as pessoas estão menos belicosas com relação à aceitação de uma modalidade musical. Modalidade musical que é um ícone do candomblé. E o candomblé não chegou aqui como adido cultural ou embaixador. Chegou aqui escravizado. E sem ser considerado cultura, era considerado subcultura. Quem gostava nem queria dizer que gostava. Mas livres pensadores, despojados disso, como Koelreutter, Radamés Gnatalli, grandes personagens da música, Sérgio Cabral – o pai, jornalista, fundador d'O Pasquim, viu? (risos) – reconheceram. Hoje não existe assim, esse bloqueio. Não é que exista também... sei lá, 'venha que eu te amo'. Não é isso.

Recato e digitais:
Mas os Tincoãs não teve contato com Os Afrossambas, por exemplo. Sempre fomos muito isolados, somos mesmo recuados, somos do Recôncavo. Somos tímidos, apesar de ter essa eloquência. Não é timidez, temos é o recato de quem não fala muito. Na hora de falar, diz. Não é meu dia de falar, eu não falo. Na hora de falar, me pronuncio. Então Os Tincoãs sempre foi isso. Talvez tenha sido essa postura que preservou sua forma de ser. Senão, teria sido influenciado por outros grupos, entendeu? Cada um tem que ser como é, né? Tem que obedecer isso aqui (mostra o dedão). Como chama isso aqui? Sua digital! (risos)

Precursores e Cachoeira:
Antes dos Tincoãs já tinha Joãozinho da Gomeia, que fazia isso, tinha aquele maestro de Minas Gerais que eu esqueço o nome direto... (Moacir Santos). Me lembro de quatro senhoras, por acaso brancas, da década de 30, que também faziam isso, no Rio de Janeiro. Talvez nenhum desses tenha feito como Os Tincoãs fez, o amálgama de todas as culturas basilares da formação cultural brasileira em geral e baiana por excelência. E cantando como nós cantávamos. Eu penso que o principal atrativo d'Os Tincoãs eram os vocais. A forma afro-barroca de cantar. A forma sincopada, originada dos ritmos do candomblé, com os harmônicos dos órgãos da igreja católica. Na realidade fomos embalados assim, a noite toda, pelos toques do candomblé. Pertencesse você ao ritual do candomblé ou não. Mas você tinha o elemento macro do candomblé, os toques e cantos, entrando de forma contornada. Você dormia com aquilo, tac-tac-tac...

O auto-exílio em Angola:
Não éramos funcionários nem de uma empresa nem do governo brasileiro. Chegamos lá, cantamos. Fomos numa delegação de 70 pessoas. (..) Mas já vamos ficar. Dada a receptividade de Dirceu Vieira Dias. Dirceu era para Angola, como Dorival Caymmi era para o Brasil. Mais do que isso. Dirceu era um revolucionário, esteve preso com Agostinho Neto, que foi o primeiro presidente da Angola descolonizada. Aí tivemos tanta identidade, coisa que não sabíamos. Ele foi na casa dele buscar nosso disco, Deixa a Gira Girar. Aí ele cantou "Meu pai veio da Aruanda" (trecho de Gira). Aí ele perguntou: 'Aruanda é Luanda, né'? 'Lógico que é a corruptela'! Isso, Angola nem estava ainda independente, mas era um reforço para nós. Era bem na época da Guerra Colonial, 1973, ainda estava em guerra. Angola só se emancipou em 75. Mas quem fazia a guerra eram eles lá, a gente estava 'de boa', vendo a parte poética da guerra. A vida é paz e guerra. É sim e não. É feliz e triste. Não se pode desassociar um do outro. Isso é uma ilusão. Nós aqui não estamos em guerra? Matamos mais do que lá, na época da guerra. São 72 mil (assassinatos) por ano. 

Não tem volta:

Mateus, Badu e Dadinho. Os Tincoãs (1977)
Pra mim, Os Tincoãs cumpriu sua missão. Isso (a caixa da Natura Musical) é uma revisita ao trabalho dele. Não é porque sou remanescente e Badu é remanescente que isso é a volta d'Os Tincoãs. Não é. Que fique bem claro. Pra mim é somente esse trabalho, para que as pessoas saibam que existiu. E cada um toca sua vida. 

Disco novo:
De repentemente, sai lá pra janeiro, ou fevereiro, ou março ou abril... (risos) Nesse país não adianta fazer muito plano. Mas tá pronto, do jeito que o rei mandou.

Expectativa para o show de hoje:
Cada show é uma emoção diferente, mas não deixa de ser uma emoção. Como as mulheres dizem, cada parto é um parto, mas ela sabe que vai parir. Emocionada ou não, vai parir (risos).

Intolerância racial e religiosa:
Na minha época, a intolerância era total. Não vinha só de um lado, vinha de todos. Até quem era do candomblé negava que era. Não era chique, não era politicamente correto. Não era, digamos assim, intelectualmente correto ser (do candomblé). Eram poucos. Pessoas como Jorge Amado, que nem era do candomblé, mas se comportava como se fosse. Deu a chancela dele. Isso tem um valor retado, muito grande. Mas não existe diferença de intolerância. Intolerância é intolerância, ela se basta, e ela tem que ter um basta. É a voz da razão. Por que ninguém vai conseguir levar nada pra frente com intolerância. A única forma que temos de conseguir levar a frente, é ser tolerante com eles, mas sempre dizendo, 'minha pegada é essa'. Nós não mudamos. O candomblé desde que chegou no Brasil, quando veio a primeira expressão humana africana que pisou aqui, o candomblé chegou junto. E existe até hoje. Pensa que naquela época  não existia intolerância? (Existia) Até oficializada e só Deus sabe como. E aqui nós estamos. Não preciso usar conta para dizer a qualquer um que me olhar. Eu sou candomblé. Todo. Eu não sou do candomblé. Eu sou candomblé. Eu sou a essência.

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