Em meados de 1984 uma reportagem da BBC sobre uma seca gigantesca na Etiópia mandou ondas de choque por toda a sociedade britânica. A reportagem, com cenas chocantes de miseria e fome de proporções bíblicas(palavras do repórter da BBC) provocou reações de todo tipo na Inglaterra, e despertou uma verdadeira febre de doações de dinheiro, comida, ect. . Com a repercussão do caso nos paises do primeiro mundo, organismos internacionais ampliaram o alcance de suas ações e o caso despertou atenção e simpatias recordes nos paises ricos, tomados entre a compaixão genuína e culpa.
Entre os que viram a reportagem estava Bob Geldof, líder do já decadente Boomtown Rats. Chocado com o que vira entrou em contato com outros músicos, tendo conseguido apoio de Midge Ure do Ultravox desde o inicio, para fazer algo em prol dos famintos Africanos. Juntos organizaram a gravação do single " Do They Know it's Christmas?" com as participações de rock stars da época como Boy George, Duran Duran, Wham!, Sting, Bono, Phil Collins e outros e formaram a Band Aid com toda a renda destinada a Etiópia. Outros paises seguiram a receita, notadamente os Estados Unidos com o seu U.S.A. for África, com as participações de Michael Jackson, Bruce Springsteen, Bob Dylan, Stevie Wonder, Ray Charles e outros, um cast assombroso.Tudo para mostrar que o rock se importava, afinal desde o fim do sonho dos anos 60, o rock tinha se afundado no niilismo e cinismo do punk, afogando muitas das bandeiras empunhadas no auge da contra-cultura. No entanto para o idealista Geldof isto não era suficiente.
Enfronhado pesadamente no assunto, e escolado pelo punk e pelas inúmeras iniciativas fracassadas dos 60 de se construir um mundo melhor apenas com boas intenções , Geldof partiu para organizar umas das mais ambiciosas empreitadas da historia, e ainda por cima de tudo por uma boa causa. Unindo militância, idealismo, e a nascente noção de globalizaçao, promovido principalmente pelos meios de comunicação, Geldof reuniu uma equipe que concebeu o maior broadcast da historia até então, eventos esportivos a parte, com transmissão simultânea ao vivo de dois paises, com uma participação recorde de quase todos superstars do rock,para uma audiência estimada de 2 bilhoes de pessoas. Acordos foram fechados com as mega-redes BBC e ABC, e com a nanica, mas já influentissima MTV, que garantiram a participação e atração de grandes anunciantes e alto teor de credibilidade rock garantido pelo envolvimento da então ultra-hip MTV.
Há mais de 20 anos, mais exatamente no dia 13 de Julho de 1985, boa parte do mundo pode acompanhar o rock por algumas horas determinar o rumo das coisas no mundo real. O Brasil , com seu mundo rock ainda sob impacto do Rock in Rio 1, ficou de fora da transmissão, fora alguns flashes de televisão, e o noticiário da imprensa ligada ao rock em jornais de grande circulação( JB, Folha, Globo, Estadao ). Vários paises, o mundo segundo os anglo-saxões, participaram da transmissão, como a Austrália, Rússia, Noruega, Iugoslávia, Áustria e Japão.
Vendo os 4 DVD?s do evento( lançado ano passado), com o distanciamento de 20 anos, arrisco concordar com o comentário da dinosaura Joan Baez.Presente ao evento a veterana de Woodstock arremata "Este é o Woodstock de vocês". A primeira vista nada a ver com o hippie-fest que foi Woodstock, com um festival com dois palcos transatlânticos, um em Londres no Wembley Stadium e outro no JFK Stadium na Filadefia transmitidos via satélite para uma platéia mais para yuppies que para flower children.Mas existem semelheanças , se em Woodstock se reuniu 300.000,00 pessoas para 3 dias de paz e musica, o Live Aid tinha a intenção nada modesta de alimentar o mundo( feed the world) sempre embalado por musica( no dois casos o rock), a forma de arte mais associada a revoluçao social dos nossos tempos. Claro que em Woodstock o rock vivia seu auge criativo, e comparar artistas como Hendrix, Alvin Lee, Who ( em 1969), Santana e CSN & Y com Ultravox, Simple Minds, Who ( em 1985) e Boomtown Rats é covardia. Mas o espírito ( da-lhe Kris Kristoferson) tava ali, e mesmo assim são vários os highlights e curiosidades dos shows:
- A visível diferença de participação e empolgaçao entre as platéias inglesas e americanas, a inglesa animada e participativa , a americana algo apática.
-O príncipe Charles e Lady Di abrindo junto com Saint Bob( Geldof) o evento em Wembley. Lady Di estava no auge da beleza, e nos na época não desconfiávamos que aquele conto de fadas era fake.
-O Queen no auge dos seus poderes, provavelmente a maior banda de rock do planeta na época.O set deles é devastador e o super-afetado Mercury sabia reger grandes multidoes.
- O U-2 em ascensão vertiginosa. E Bono já se credenciando como sucessor de Geldof como consciência do rock.
-Madonna novinha, iniciando seu reinado.
- A classe fuderosa de Bowie ( Wembley) e Clapton( JFK)
-Tina e Jagger botando pra fuder
-Nos extras uma apresentação do Run-DMC, para a visível estupefação e repudio de parte da platéia. Aquilo ali é premonitório. O rap se tornaria a força dominante na musica americana a partir dos anos 90.
- O final apoteótico e emocionante da apresentação em Wembley, com artistas e platéia em uníssono cantando " Do They Know It's Christmas?". Um dos grandes momentos da historia do rock.
-O final frouxo e caótico no JFK.
-Paula Yates ainda casada com Geldof. Ela, uma reporter consagrada na Inglaterra, era a epítome do gata cool, linda, loura e politizada. Ela protagonizaria uma historia trágica ao largar Geldof por Michael Hutchence do INXS( que se apresenta na Austrália pro Live Aid via satélite). Hutchence aparentemente se suicidou anos depois, já casado com Paula, após uma discussão com Geldof, que nunca se recuperou da separação. Paula Yates morreu após uma overdose pouco tempo depois. Os cínicos dizeram na época que Geldof gastava tempo demais na África e Yates na Austrália.
-O dueto George Michael e Elton John. Também premonitório.
- Por fim, quantos mullets!!! A era New Wave apresentou os piores cortes de cabelo da historia do rock.Destaques( negativos) para Bono, Daryl Hall, Ric Ocasek, e dezenas de outros.
O ultimo DVD, mostra como Geldof gastou os 144 milhoes de dólares levantados pela fundação Band Aid, e um documentário pungente sobre a ação da fundação Band Aid na África, os entraves burocráticos enfrentados por Geldof e Cia.Até uma pequena discusao de Geldof com Margaret Thatcher, onde ele tenta argumentar sem sucesso sobre a situação na África. Ela friamente e brevemente diz que se manda muito dinheiro pra África. Este argumento conservador acabou prevalecendo mais adiante, e a população do primeiro mundo cansou de brincar de filantropa, alem dos questionamentos de porque o dinheiro nunca resolvia a situaòao de pobreza do 3-° Mundo. A eles falta a compreensão que só caridade não resolve, os problemas são estruturais. Bono Vox advoga o cancelamento da divida de paises do 3-° Mundo, mas como bem sabemos nosotros aca , neguinho não ta afim de abrir mãos de seus privilégios, e depois de 11 de setembro de 2001 os Estados unidos ficou mais conservador do que já era. No entanto a mensagem é bonita, não obstante da reedição do Live Aid este ano ter sido embotado pelos atentados terroristas em Londres, 2 dias depois do Live 8. Geldof lançou seu melhor disco há 2 anos , o amargo Sex, Age & Death. Mais info no http://www.liveaiddvd.net/. É uma historia extraordinária. Feed The World!
Post de fôlego, Brametes. Muito legal. Já fiquei na dúvida várias vezes na locadora entre alugar (ou não) esse DVD, mas depois desse texto...
ResponderExcluirAh, amanhã (terça 8) eu posto um texto sobre o bombástico show do Cachorro Grande sexta passada no Rock In Rio. Voltem aí.
ResponderExcluirFinalmente postamos lá no Clash City Rockers as impressões de Thiago sobre o Tim Festival. Confiram.
ResponderExcluirComo diria Dada Maravilha, é uma questão complexa. É obvio que estas ações humanitarias não resolveram a fome na Africa. O proprio Geldof e Cia refere-se aos questionamentos quanto a eficacia destas ações no DVD 4 do Live Aid, onde tem um documentario sobre os procedimentos burocraticos até a chegada da ajuda( vejam o DVD).E a postura atual de Geldof é bem mais cetica, mas sempre no melhor estilo da culpa cristã e branca. No entanto na minha percepção, há algo de genuino nesta postura desesperada de "è preciso fazer alguma coisa" contida dentro da proposta do Live Aid. Sempre fui muito cetico em relação a esmolas, mas continuo achando toda a estoria bonita, e a proposta do economista Africano é bem parecida com a de Thatcher, só que com intenções diferentes.Tô com Bono, Drop The Debt.
ResponderExcluirOswaldão; passei batido por esse artigo seu, mais não é sem tempo que assino embaixo sobre tudo isso.
ResponderExcluirO Liveaid é muito pouco entendido aqui, pois fomos uma exceção no mundo, poucos países não assistiram, pois a Globo comprou os direitos só para a concorrência não passar, (inclusive atualmente nos contratos de direitos ,existe obrigação de transmissão, que é chamada "Cláusula Brazileira" por coisas como essa), a Bandeirantes tinham interesse.
Imagine se tivesse passado, eu acho que teria uma influência grande, pois o mercado de rock estava aberto, e efervescente, apesar da qualidade amadora da maioria dos artistas.