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quarta-feira, janeiro 29, 2020

RUMO AO ESQUECIMENTO

O Homem Sem Talento, de Yoshiharu Tsuge, é o mangá com menos cara de mangá que já foi publicado no Brasil. Clássico, é um périplo ao Japão dos grotões, longe da modernidade à luz neon de Tóquio

Quando se fala em mangás, logo nos vem à mente uma profusão de personagens de olhos enormes e espadas em punho, em meio à muitos efeitos de movimento e cenários fantasiosos.

Felizmente, nem só de Dragon Ball e Pokemon vivem os quadrinhos japoneses.

Um excelente exemplo que foge totalmente à estética e às temáticas usuais das HQs produzidas no Japão, O Homem Sem Talento, de Yoshiharu Tsuge, pode ser uma das melhores coisas que você vai ler neste início de 2020.

Semiautobiográfica, a HQ acompanha a vida nada interessante de Sukegawa, um homem de meia idade, casado e com um filho pequeno, que é desenhista de mangás mas desiste de trabalhar para a indústria, passando a exercer atividades absolutamente infrutíferas e desnecessárias – tentativas contínuas de auto-sabotagem.

Ele começa vendendo pedras, algo que parece completamente sem sentido para nós, ocidentais, mas que, de fato, existe como atividade comercial e espiritual no Japão.

Lá, a observação de pedras – ou suiseki – retiradas de lagos são encaradas como atividades de relaxamento e espiritualidade elevada.

Porém, as pedras catadas no rio próximo à sua casa simplesmente não tem valor.

O direito de desaparecer

Nos capítulos seguintes o loser nipônico tentará vender pássaros e câmeras fotográficas velhas, entre outras inutilidades – sempre para dar com os burros n’água e seguir na pobreza com sua mulher mal-humorada e seu filho choroso e catarrento – uma vida miserável que, no entanto, lhe parece bastante conveniente, já que ele insiste em não fazer nada realmente efetivo para tirar o pé da lama.

Descrito assim, parece horrível. No entanto, é uma das HQs mais belas já produzidas no Japão.

Sua consistência temática – e constância narrativa –, além dos desenhos belíssimos de Tsuge, constituem uma obra definida pela crítica internacional como nada menos que uma obra-prima – termo gasto, porém plenamente justificado aqui.

Em seus périplos, Sukegawa conhece tipos ainda mais excêntricos e tristes do que ele, como os participantes de um leilão de pedras, o dono de uma loja de pássaros que insiste em só comercializar aves japonesas de difícil criação doméstica e um livreiro de aspecto cadavérico e passado obscuro.

A cada parada em sua jornada rumo ao nada, Sukegawa – e os leitores – ouvem considerações e histórias extraordinárias que muito nos revelam do Japão dos grotões, muito longe da modernidade à luz neon de Tóquio, um país desconhecido, onde se contemplam pedras e pessoas podem se tornar andarilhas por livre e espontânea vontade.

O capitulo final, sugestivamente intitulado Desaparecer, é especialmente belo, quando o livreiro esquisitão vende à Sukegawa um livro de Inoue Seigetsu, poeta errante do século 19 e cuja trajetória parece amarrar com perfeição esta ode – não ao fracasso, mas à liberdade absoluta, inclusive à liberdade de não querer ser alguém ou fazer algo.

Aqui, a ode é ao direito de se desvanecer em meio à bruma, rumo ao esquecimento.

O que não deixa de ser irônico, visto que tanto Seigetsu quanto Tusge são idolatrados no Japão e fora dele.

Enfim, até para ser um fracasso é preciso talento, é preciso ter arte.

Em tempo: a edição da Veneta, primorosa, como de costume, é em capa dura e traz dois textos: um do editor Mitsuhuro Asakawa e outro do premiado brasileiro Marcello Quintanilha (Tungstênio, Luzes de Niterói), que faz um bem humorado paralelo entre a HQ, Dodeskaden (1971, o clássico de Akira de Kurosawa) e a obra-prima brasileira Vidas Secas, de Graciliano Ramos.

O Homem Sem Talento / Yoshiharu Tsuge / Veneta / Tradução: Esther Sumi / 240 p. / R$ 64,90

terça-feira, janeiro 28, 2020

ELECTRO ABSTRACT

Duo eletrônico Aurata faz temporada de três datas com convidados no Cabaré dos Novos 

Aurata, foto Ananda Brasileiro
Referência em música eletrônica indie, o duo Aurata faz temporada de três datas às quartas-feiras no Cabaré dos Novos do Teatro Vila Velha a partir de amanhã.

A cada dia, um convidado, abrindo com o trio psicodélico Bagum, seguido pelo coletivo feminino Fenda (dia 5) e a banda Suavv fechando (dia 12).

Surgido em 2014 em uma leva de novas bandas indie / psicodélicas que contava com nomes como Mapa, Soft Porn e Van Der Vous, o Aurata é o experimento multimídia / pseudônimo artístico do artista visual, poeta, músico e produtor musical Ramon Gonçalves.

No ano passado, reconfigurou-se em um duo, com a efetivação do multi-instrumentista e produtor Pedro Oliveira Barbosa.

“Essa temporada surgiu muito pelo vínculo gerado entre a gente e o Vila por conta d'A Tempestade”, conta Ramón, que é diretor musical da adaptação de Shakespeare  em cartaz no TVV.

“Assinamos parte da direção musical do espetáculo e durante o processo surgiu a possibilidade de nos apresentarmos durante algumas semanas. O Vila é uma potência e estamos muito felizes em poder experimentar nossa música em diversos formatos, durante as próximas semanas”, acrescenta o artista.

Não-lugar

Coletivo Fenda, foto Milena Abreu
Essencialmente eletrônico e experimental, o som da Aurata é inclassificável sob termos convencionais, já que – pelo menos em seus trabalhos mais recentes, como o álbum Satori (2018, lançado na gringa pelo selo holandês Whirling Wolf) –, o que se ouve é uma série de peças abstratas mais para o erudito contemporâneo (descontado o academicismo) do que para canções pop.

“No começo do projeto eu estava tentando entender como produzir música sozinho, mas ainda assim refratando muito de uma lógica de ‘banda’”, conta Ramón.

“Existe um fio condutor em minha produção e alguns anos e registros depois, sinto que temos nos aproximado desse aspecto ‘não-lugar’ que talvez eu tenha buscado desde sempre, utilizando de  texturas e a elaboração de pequenas camadas para que o aspecto circular da música crie seu próprio corpo, atmosfera”, descreve.

Bagum, foto Milena Abreu
Interessante e hipnótico, o som da Aurata vale aquela conferida – ao vivo ou no streaming. E ainda rola  as bandas convidadas.

“A cada semana iremos nos apresentar e dividir algumas faixas com cada um dos projetos. Estamos ansiosos para ver quais lugares (ou não-lugares) as próximas semanas nos guiarão”, conclui.

Aurata Convida / Amanhã (com Bagum) e dias 5 (com o Coletivo Fenda) e 12 de fevereiro (com Suavv), 20 horas / Cabaré dos novos do Teatro Vila Velha / R$ 10 e R$ 5



NUETAS 

Persie no Zungu hoje

DJ e ícone fashion do underground baiano, Persie era figura recorrente na night do Rio Vermelho até alguns atrás. Residente em São Paulo desde 2011, Persie começou a desenvolver um interessante trabalho por lá, com dois EPs lançados e um terceiro chegando agora em fevereiro. Hoje ela apresenta este trabalho em um show no Zungu Iyagbá com os convidados Alex Tico (guitarra) e Jeronimo Sodré (programação). 21h30, colabore quando chapéu passar.


Game Over quinta

A ótima Game Over Riverside lança o registro ao vivo Live no Bardos Bardos – mesmo local onde foi gravado. Quinta-feira, 19 horas, R$ 10.

Finde gordo no BB

E vale o registro: a casa da Travessa Basílio da Gama caprichou demais na programação para a festa de Iemanjá. Sábado tem sarapatel (R$ 20) ao som de Chocolate com Blues, Todo Meu Ódio e outros a partir das 14 horas. E no domingo (2) tem feijoada (R$ 20) com Casapronta, Calafrio, Meus Amigos Estão Velhos, Banda de Rock e outros. 14 horas, no Bardos Bardos.

quarta-feira, janeiro 22, 2020

BOMB THE BASS

Sábado tem encontro de blueseiros na Varanda do Sesi e a noite é dos baixistas

Jerry, foto Angela Pereira
Instituição do blues na Bahia, a banda Água Suja promove neste sábado a oitava edição do seu evento anual Encontro de Blueseiros.

Desta vez, sob a temática Noite dos Baixistas, tendo à frente a lenda viva local Jerry Marlon, sujeito de larga experiência no underground desde os tempos da Delirium Tremens, depois 14º Andar, bandas antológicas do rock baiano.

No palco, além de Jerry, Oyama Bittencourt (guitarra e vocal), Zito Moura (teclado) e Brian Knave (bateria), grandes baixistas convidados: Américo Paim (Banda Spectro), Humberto Batalha (Mil Milhas), Keko Pires, Luciano Calazans, Octávio Américo e Tony Duarte (Gerônimo).

Aí quem ficou se perguntando, “noite dos baixistas, como é isso?”, merece essa resposta: “Com muito ritmo e groove, logicamente. Experimenta tirar o baixo das músicas pra ver o que acontece”, diz Jerry.

“O formato será com cada um deles se presentando com a banda e depois comigo,  juntos. Com dois baixos. Vai ser bom demais”, garante.

E tem mais: mané achando que o blues só prestigia guitarrista e gaitista, se liga só no tanto de baixista lendário que o gênero legou. “Willie Dixon (pioneiro), Donald Duck Dunn (The Blues Brothers), Jack Bruce (Cream), Abraham Laboriel (lenda viva, tocou com Deus e o mundo), Jerry Scheff (Elvis, Bob Dylan), Tommy Shannon (Stevie Ray Vaughan), enfim... (essas influências) é algo muito pessoal, até porque muitos músicos possuem conceitos sobre blues que muitas vezes incluem o jazz, que veio diretamente do blues. Longa história, assunto pra muito, muito tempo”, enumera Jerry.

Sectos e conchavos

Água Suja: Jerry, Brian, Oyama, Zito, foto Angela Pereira
Conhecidos pelo vasto repertório de standards, o Água Suja chega em 2020 com uma grande novidade: em breve, lançam seu primeiro álbum autoral.

“Estamos em pleno desenvolvimento do nosso disco e estamos nos dedicando pra ele até com cautela demais”, pondera Jerry.

Então tá combinado: sábado é a noite de Jerry Marlon na Varanda do Sesi – até porque é também aniversário da figura. Então é ele quem manda, tá OK?

“O nome (desse show) poderia ser Encontro de Baixistas Amigos de Jerry Marlon. Uma vez que tudo é feito com sectos e conchavos, eu faço o meu”, provoca.

“Ainda mais no meu aniversário. Até porque,  desses que aí estão no cast do show, apenas Octavio Américo (ex-Mojo Blues Band, do saudoso Álvaro Assmar) tem algum feedback na história do blues local. Os outros são grandes músicos e profissionais pelos quais tenho o maior apreço”, conclui.

8º Encontro de Blueseiros de Salvador: Edição especial Noite dos Baixistas / Sábado, 22h / Varanda do Sesi / R$ 35 / Informações e Reservas: 71 99686-9963 | 8164-9058

NUETAS

Falaschi na sexta

Ex-vocalista das bandas Angra e Almah, Edu Falaschi traz à cidade seu show Moonlight Celebration. Apresentação acústica, para apreciar cedo e sentado. Sexta-feira, 20 horas, no Teatro Isba, R$ 120, R$ 60. Ingresso solidário: R$ 62 + um quilo de alimento. Vendas: ingressorapido.com.br.

Heitor no Bardos

O som experimental de Heitor Dantas fecha temporada aos sábados de janeiro no Bardos Bardos. 17 horas, valor sugerido: R$ 20.

Terráqueos sunset

Liderada pelo bluesman Lon Bové, a Banda Terráquea faz o pôr do sol deste domingo na Varanda do Sesi. Atenção para a gaita de Luiz Rocha e a seção de sopros dos Skanibais, todos no palco. Domingo, 17h, R$ 30. Doando camisa usada ganha ecobag de graça.

terça-feira, janeiro 14, 2020

EM CASA, DE BOA

Com álbum novo no forno, André Mendes solta EP “de verão” e quer tocar na sua rua

André, foto Cintia M.
Sujeito com uma história sui generis no rock baiano, André Mendes prepara uma volta marcante à carreira solo em 2020, após o breve retorno de sua banda original, Maria Bacana, em 2018.

Vale lembrar que naquele ano a MB lançou seu segundo disco, o adorável A Vida Boa Que Tem os Dias que Brincam Leves, fez alguns poucos shows e retornou ao estaleiro.

Há alguns meses, André tem gravado seu sétimo (!) álbum solo, já intitulado O Rei dos Animais, com lançamento previsto para “os próximos meses”, no Estúdios WR,  produzido por Apu Tude (que também produziu A Vida Boa...).

Porém, menino irrequieto, André não se segurou e soltou nos últimos dias de 2019 um EP com seis faixas, gravado em casa mesmo, via iPad: Casas Brasileiras.

“Casas Brasileiras é meu EP de verão... Um disco relaxado, um ‘ao vivo na sala de uma casa brasileira’, no caso, a minha. Um disco pra comemorar o verão. O disco novo pra valer é o Rei dos Animais, gravado com toda atenção e produzido por Apu Tude”, conta André.

“Gravei no dia 16 de dezembro. Tudo num take só, uma voz e um instrumento em cada faixa. Compus a faixa-título na hora e decidi que ela teria uma sonoridade diferente do resto, é voz e violão de nylon numa canção estilo Felicidade, de Lupicínio Rodrigues e letra inspirada em Guimarães Rosa. Apontando pro passado e pro (meu) futuro”, relata.

Como se vê, um prato cheio para fãs de registros despojados e lo fi, mas nem por isso desprovidos de pretensão artística – quem nunca, né?

"Sabe que esse disco rolou numa naturalidade tão grande que não teve uma racionalização prévia, tipo 'que tipo de som vou gravar? que disco/artista vou ter como referência?' Eu simplesmente tava tocando guitarra e cantando em casa algumas das minhas composições preferidas. Aí eu pensei 'como O Rei dos Animais ficou pra 2020, vou gravar essas musicas, como estão soando aqui, agora, na energia rústica, pra lançar o quanto antes e celebrar o verão'. Eu só sabia que queria aquelas musicas e que a capa seria amarela. Só", relata.

Aproveita a oportunidade

Caseiro por natureza, punk de coração, André não costuma fazer muitos shows.

Mas está tão de boa com essa brisa de verão que tem soprado nesta província besta e bela, (beijo, Franciel Cruz), que é capaz de aparecer uma hora dessas na esquina da sua casa, violão em punho e peito aberto.

“Quero muito tocar ao vivo nesse verão. Já me inscrevi em todas as feiras que rolam por agora em Salvador. Tô pronto com minha guitarra e meu violão pra tocar aonde me chamarem”, afirma.

Sobre a Maria Bacana, ele diz achar muito improvável uma nova reunião.

"'Nunca diga nunca', mas acho extremamente difícil que a Maria Bacana volte a tocar o disco A vida boa... Funcionou como celebração e ponto final na nossa história. Cada um foi pra um lado conceitual de levar a vida e acho que agora esse final consensual é definitivo. Foi uma ótima história pessoal e musical e os discos estão aí pra quem quiser ouvir", afirma.

Fora isso, ele aguarda o momento de mostrar ao mundo seu novo trabalho, O Rei dos Animais.

“É muito diferente de tudo que já fiz. Se o foco da minha carreira sempre foi letra e melodia, esse foco está ainda mais intenso. É a oportunidade de gravar num estúdio profissional com um produtor sensacional, que eu não sei quando terei outra igual”, afirma.

“Tô muito fascinado pela labuta, pelo refinamento no processo da criação. Ao mesmo tempo que estamos lidando com música pop, três minutos pra passar a mensagem. A brincadeira é tentar balancear a vontade de refinar e a vontade de comunicar”, observa.

E  o que mais, André?

"Queria convidar todos que gostam de música a ouvir meus discos nas plataformas de streaming e me seguir no Instagram (@andrelrmendes ) pra ficar por dentro das novidades e das minhas ideias.
Viva a arte brasileira! Viva a arte brasileira!", conclui.

Ouça: www.andreLRmendes.com.br



NUETAS

STU sex, sab, dom

Rapeize gente fina da Vivendo do Ócio, foto sem autor (se alguém souber avisa)
STU Festival chegando bonito, com três dias free no Parque Costa Azul. Entre outros, tem Vivendo do Ócio (sexta-feira), Nação Zumbi (sábado) e Ministereo Público Sistema de Som convida BNegão (domingo). 16 horas, gratuito.

Ronei sexta também

Ronei Jorge & Os Ladrões de Bicicleta. Show único. Sexta, 21h, no  Commons. R$ 20, uma pechincha pelo show mais f... do verão. Pardon my French.

Serafim, Lacertae...

A banda Serafim & o Nordeste Experimental faz show festivo com vários convidados neste domingo:  Lacertae (SE), Morotó Slim, Marculino e Seus Belezas, Igor Caxixi, Leandro Mellid (Agentina),  Sophia Mídian e Jenny (Potugal). Varanda do Sesi, 17h, R$ 25.

quarta-feira, janeiro 08, 2020

O NÓ DAS RELAÇÕES

Ao cantar a dificuldade das relações em tempos obscuros sob estética despojada, cantora Lara Aufranc produziu um dos melhores discos de 2019, embora pouco badalado

Lara Aufranc em foto de Gal Oppido
Pode-se dizer muitas coisas de 2019 – para começar, foi um ano muito difícil, claro. Mas, ao mesmo tempo, é na dificuldade que a arte parece florescer com mais força e pungência.

Muitos artistas se destacaram neste ano, mas foram tantos que sempre escapa um ou outro que não recebeu a devida atenção. A cantora paulistana Lara Aufranc certamente pode ser incluída neste rol.

Dona de uma voz  arrepiante de tão bonita, Lara lançou em 2019 seu segundo álbum solo, Eu Você Um Nó. Muito elogiado pela crítica, este disco parece marcar  uma virada criativa em sua carreira.

Mais introspectivo e reflexivo que os anteriores, Passagem (2017) e Em Boa Hora (2015) – este último lançado  com sua antiga banda, Lara & Os Ultraleves –, Eu Você Um Nó é um pequeno-porém-precioso tratado sobre as difíceis relações humanas neste lugar e nesta época.

"É uma continuação natural. Eu Você Um Nó é um trabalho diferente, mais denso que o Passagem.  Mas tem suas semelhanças, tanto que tenho tocado músicas dos dois discos nos shows e tá rolando super bem", afirma Lara, por email.

“Vivemos um momento conturbado. As pessoas estão com muita dificuldade de se ouvir, de enxergar o outro. Falta empatia. É a era do eu, do indivíduo autocentrado. A gente precisa começar a pensar em sociedade, cidadania”, acrescenta

De fato, Eu Você Um Nó pode ser definido como um  álbum sintético: tem apenas nove faixas e arranjos quase espartanos, só no baixo, guitarra, bateria e pouco mais.

"(Essa estética mais despojada) Foi uma escolha. Conseguimos aprovar o projeto do disco no Edital de Apoio à Criação Artística da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo – ou seja, dessa vez a gente tinha verba pra gravar. Eu quis fazer um disco cru, um som que funciona ao vivo, que não fica devendo nada pra gravação. Eu Você Um Nó é o resultado dessa escolha. Em paralelo, optei por remunerar muito bem a minha equipe, especialmente os músicos – que já foram parceiros em outros momentos, quando não tinha grana nem edital", conta.

Suas levadas são angulosas, secas às vezes, o que cria um contraste muito interessante com sua voz quente e sensual.

Em alguns momentos, lembra o que se fazia de melhor na cena paulistana dos anos 1980, entre a vanguarda paulista e o pós-punk.

“Eu gosto muito do Itamar (Assumpção) e do Jards (Macalé) – que não é paulista, mas tem a ver em loucura e criatividade. Tem um lance crítico nas letras, de contestação. Isso faz muito sentido pra mim, ainda mais nos dias de hoje”, observa.

“Talvez o momento histórico seja parecido. Tem uma desilusão, quase uma desesperança na humanidade. O som reflete essa angústia. Bowie, Iggy Pop, Nick Cave & The Bad Seeds, Portishead (já dos anos 1990). Tudo isso é muito atual”, acrescenta.



Cara, larguei o emprego

Lara. Foto Gal Oppido
Para produzir o álbum, Lara encontrou no cultuado Rômulo Fróes um valoroso aliado. Diretor artístico do disco, Rômulo ainda assina duas letras: a febril Só Dessa Vez e a contestadora Gritos na Avenida (que Lara canta em dueto com a cantora  Julia Branco).

“O diretor artístico é um cara que pensa não só a parte musical, mas também estética (capa, conceito). Foi a primeira vez que tive essa figura na hora de construir um disco. Me ajudou com a escolha do repertório, participou de todos os ensaios, deu pitaco nos arranjos… Ele foi o nosso norte, meu e da banda”, conta Lara.

Antes de se jogar na carreira musical, Lara trabalhou como editora de vídeo. Largou tudo para se dedicar à sua paixão.

“Minha trajetória não foi linear. Estudei canto e piano, e tinha banda na época da faculdade. Mas era insegura, demorei pra me assumir compositora. A música é um universo masculino, isso me intimidava – e intimida até hoje. Eu estava saindo de uma adolescência difícil e o palco me dava muito medo. Me expor era um sofrimento. Trabalhar com audiovisual foi o jeito que eu encontrei pra levar uma vida tranquila. Eu sou viciada em cinema e era feliz na ilha de edição”, relata.

“Em 2012, eu comecei a pesquisar as origens do rock e descobri várias pérolas do blues. Música do começo do século 20, visceral, feita por descendentes de escravos. Me bateu forte e eu resolvi montar uma banda. Foi aí que surgiu Lara & Os Ultraleves. Pra mim foi importante parar de editar, foi o primeiro passo. O segundo foi assumir a minha identidade, meu nome e sobrenome. Passei a criar sem as amarras de um gênero musical, e sem me esconder atrás de uma banda. E no meio disso tudo, encontrei meu lugar no palco”, conta.

Ousada, Lara não hesita em se mostrar nua tanto na capa do disco novo quanto no clipe Llena de Agua, do álbum anterior. De fato, já passou da hora disso - um corpo nu à vista - ser algo que cause escândalo, quando há tanta coisa - essas sim, indecentes - nos estapeando na cara a todo momento.

"Sim, eu vejo dessa forma. A nudez é natural. Os defensores da moral e dos bons costumes tem o olhar deturpado. Enxergam pecado nos lugares mais absurdos. Um corpo é só um corpo, não tem nada demais. Em tempos de repressão e ignorância, não podemos retroceder", afirma.

Em plena atividade, evoluindo a cada álbum, Lara planeja agora levar seu show para outras plateias, fora de São Paulo.

"2019 foi um ano puxado pra mim. Além do disco e toda a burocracia do edital, eu fiz um curso técnico de teatro. Em 2020, quero gravar três videoclipes do Eu Você Um Nó, e também procurar outras oportunidades de atuar, especialmente no audiovisual. Gostei muito de sair de São Paulo com o disco novo, vou viajar mais no ano que vem. Tenho planos de ir para o Sul e Nordeste, talvez até uma pequena turnê na Europa. E tem outro lançamento previsto, mas ainda é surpresa!”, promete.

Então vem, Lara.

Eu você um nó / Lara Aufranc / YB Music / Disponível nas plataformas digitais

terça-feira, janeiro 07, 2020

ANTIFAFEST

Festival Saco de Vacilo domina o sábado no Mercadão CC com rock e hardcore antifa

O quarteto de hardcore crustfeminista Räivä, de Maceió. Foto Luiz Bgz
Antes de mais nada, cabe um aviso: se a sua onda  é tipo reacionarismo, misoginia, racismo e outros medievalismos a fins, evite as proximidades do Mercadão CC neste sábado.

É, tô ligado que tá na moda, mano, mas vai por mim, não vai ser bom pra você.

Neste sábado rola uma reunião de bandas antifa puro sangue no olho: é a terceira edição do Festival Saco de Vacilo.

Se liga no line up, só neguinho furioso: Räivä (hardcore crustfeminista de Alagoas), Splattered Genocide (com esse nome até eu fiquei com medo), Pastel de Miolos (veteranos do punk baiano), Macumba Love (riot grrrls), SuRRmenage (hard rock 90’s), Bosta Rala (clássica do HC local), Búfalos Vermelhos & A Orquestra de Elefantes (duo da pesada), Belzebul Drinks (a conferir), Injúria (outra veterana da cena punk HC) e Aphorism (death metal).

A realização, zero por cento patrocinada por quem quer que seja, é do coletivo contracultural Saco de Vacilo, formado por Rodrigo Gagliano, Gabriel Gomes e Eduardo Lima. “Contamos com o suporte e apoio de toda uma cena”, conta Eduardo Lima.

“Algumas dessas pessoas têm seus coletivos ou selos, que também são bem ativos na cena local: Entorte Discos, Choice Made Records, Monstrinho Reckords, Coletivo dos Pombos”, acrescenta.

O duo Búfalos Vermelhos & A Orquestra de Elefantes. Foto Denisse Salazar 
"O esquema é total Faça Você Mesmo. Na real, nunca buscamos um patrocínio, mas como disse anteriormente diversas pessoas fazem nossos eventos acontecerem. Nessa edição, por exemplo, tivemos um bom suporte de Rogério BigBross, da Big Bross Records e nossos amigos da Pojuca Crew. Não chega a ser uma patrocínio, pois não tem esse lance comercial. É uma brodagem, uma ajuda de amigos mesmo. Por não ter verba em caixa, e colocarmos o ingresso a um valor que atraiam as pessoas a colarem no evento, não temos fluxo de caixa para bancar cachê para as bandas, porém sempre garantimos a logística da banda convidada de fora do estado, ajuda de custo mesmo, e minimamente uma estrutura legal para as bandas se apresentarem, assim como os valores dos custos do evento mesmo em si, que acabamos retirando da bilheteria. As duas edições conseguiram pagar esses custos, esperamos que nessa terceira edição não seja diferente. Como já adiantei acima, Big foi o responsável por esse contato com o Mercadão CC, ele fez acontecer que Festival esse ano saísse do Centro Histórico e migrasse ao Rio Vermelho, as duas edições anteriores ocorreram no Buk Porão, que sempre nos acolheu de forma excepcional", relata Dudu.

Rock e bate-papo

Pastel de Miolos, foto Alaim
Oriundos da cena hardcore local, a iniciativa toda é 100% política, mesmo. E mais: só entra banda nordestina.

“Não apenas o festival, como todas as atividades que fazemos durante o ano tem a filosofia básica do punk, que é o Faça Você Mesmo. Como gostamos de frisar, somos um coletivo hardcore e hardcore é política. Assim, não fechamos com fachos (fascistas) ou qualquer espécie de pessoas escrotas, racistas e preconceituosas”, afirma.

“Entendemos que a cena nordestina merece seu lugar de destaque, nem que esse lugar seja conquistado na tora. Também não repetimos atrações de edições anteriores para poder abarcar a maior quantidade possível de bandas de uma cena tão rica como a que temos no Nordeste. Outros pontos que analisamos são relativos a heterogeneidade das bandas, pois apesar de sermos um coletivo hardcore, gostamos que o Festival seja um momento para as bandas se conhecerem, saírem dos seus nichos para expandir suas relações. E sempre tentamos trazer grupos novos, como a Belzebul Drinks, e clássicas, como é o caso da Bosta Rala, Pastel de Miolos e Injúria, que estarão nessa edição”, acrescenta Dudu.

Além do festival, o coletivo bate ponto toda última quinta-feira do mês no Bardos Bardos, quando promove uma roda de conversa. “É o Bate Papo Saco de Vacilo, o qual aborda diversos temas ligados ou não à cena hardcore, sempre com um convidado ou convidada para falar sobre o tema em questão. A ideia é ter pessoas com um vasto currículo, trazendo a academia, tão distante da população para um bar”, descreve Dudu.

O power trio SuRRmenage, Foto: Fernando Udo
Já teve conversa com o sindicalista Denis Soares (blog Trampo), o jornalista Fausto Arruda Filho, (A Nova Democracia), Evanilson Alves (poeta) e Leila Grave (psicóloga), entre outros.

Quem quiser sentir um gostinho do que vai ser o festival tem um pré-show nesta sexta-feira, que é a Micareta Saco de Vacilo, com a surf music da banda Ivan Motosserra e discotecagem do DJ Ivan Motosserra. 19h no Bardos Bardos.

Festival Saco de Vacilo 2020 / Com as bandas Räivä (AL), Splattered Genocide, Pastel de Miolos, Macumba Love, SuRRmenage, Bosta Rala, Búfalos Vermelhos e a Orquestra de Elefantes, Belzebul Drinks e Injúria / Sábado, 14h /  Mercadão CC (Rio Vermelho) / R$ 10

NUETAS

Sequestro no Sesi

A banda local Sequestro Relâmpago faz show acústico amanhã na Varanda do Sesi Rio Vermelho. No repertório, autorais e clássicos do rock e MPB marginal. 22h, R$ 20.

O trio carioca Pietá: sábado no Commons
Pietá no Commons

O trio carioca Pietá traz à Salvador o show do seu segundo álbum, S A N T O S O S S E G O (revisão, é coisa de artista, deixa assim mesmo!), dentro das sessions Intercenas Musicais. Diz que é o novo boom da neonovanovissimanewhype MPB. A conferir. R$ 20.

Babuca domingo

O cantor e compositor Babuca Grimaldi faz show de lançamento do seu álbum de estreia, Pindorama Utrópicos, neste domingo, 20h, no Teatro Sesi Rio Vermelho. Experimental, Babuca trabalha com referências tanto populares quanto eruditas em busca de uma linguagem própria. A conferir (mais um pra lista). R$ 20 e R$ 40.

Ronei & Ladrões dia 17

E agora o melhor show que você não vai ver neste verão porque não pode perder o Globo Repórter:   Ronei Jorge & Os Ladrões de Bicicleta, a inigualável banda de um compositor fundamental para a música baiana deste século, faz um showzinho para matar a saudade da galera. Programe-se: 17 de janeiro, sexta-feira, às  21 horas, no Commons Studio Bar. Avisei. Depois não diga que o verão foi fraco.