O que levou o senhor a embarcar neste projeto específico neste momento específico? Foi um passo lógico depois da trilogia oitocentista ou foi a conjuntura do Brasil neste momento pós-golpe de 2016, pós-reforma trabalhista?
No Cais do Valongo (RJ), maior entreposto de comércio escravo das Américas |
Entre as várias viagens de pesquisa de campo que o senhor fez, cinco delas foram à África. O que mais o impressionou nestas incursões em relação ao seu objeto de estudo? Que marcas a escravidão deixou visíveis no solo e no povo africano nativo de hoje?
LG - Brasil e África já estiveram mais próximos. Como bem demonstrou Pierre Verger, até o final do século 19, havia rotas regulares de navios entre Salvador, na Bahia, e a Nigéria, por exemplo. Angola tentou aderir à independência do Brasil, em 1822. O intercâmbio econômico e cultural era bastante intenso nessa época, muito em consequência do próprio tráfico negreiro. Hoje, essas relações estão mais frias, mas marcas brasileiras são hoje bem visíveis no continente africano. Em Gana e no Benim encontrei uma numerosa comunidade descendentes de ex-escravos retornados durante o século 19. Ocupam posições importantes na hierarquia social. Alguns foram presidentes, ministros, governadores. Esses ex-escravos deixaram também contribuições importantes na arquitetura, nas artes e nos costumes em diversos países. Na cidade Porto Novo, no Benim, por exemplo, há uma mesquita muçulmana com traços arquitetônicos de igreja católica brasileira. Foi construída por escravos libertos da Bahia, que tinham por ofício erguer templos católicos no Brasil e levaram sua técnica de construção para a África. Essa influência continua muito forte ainda hoje. As novelas da Rede Globo têm uma audiência enorme nos países de línguas portuguesa. Ao ponto de alterar o sotaque o modo de fala o idioma nesses locais.
A escravidão, como o senhor e tantos outros autores nos lembram, sempre existiu na humanidade, em todos os continentes. Ainda assim, nunca conheceu um período tão "próspero", com o perdão da má palavra, quanto quando os europeus entraram no negócio, entre os séculos 15 e 19. E ainda hoje ela persiste em várias partes do mundo. A escravidão, portanto, é um problema da humanidade como um todo, correto?
Castelo de São Jorge da Mina, litoral de Gana, construção portuguesa, século 15 |
Muita gente não entende - ou finge não entender - a relação entre o passado de escravidão dos negros, o racismo e a clara posição de desvantagem social que estes amargam ainda hoje. O senhor poderia nos esclarecer isto, por favor?
LG - Ao contrário do que se imagina, a escravidão não é um assunto acabado, bem resolvido e congelado no passado. Ainda está vivo entre nós, como se pode ver nos discursos de campanhas eleitorais e nas discussões diárias que aparecem nas redes sociais. O preconceito é uma das marcas das nossas relações sociais no Brasil, embora sempre procuremos disfarça-lo construindo mitos a respeito de nós mesmos. Um desses mitos dizem que somos uma ‘democracia racial’ e que a escravidão entre nós foi mais benévola, patriarcal e tolerante do que eu outros territórios da América. Tudo isso é ilusório e desmentido pelas estatísticas, que mostram um fosso enorme de desigualdade entre negros e brancos no país em todos os itens analisados. Os descendentes de africanos ganham menos, moram em lugares mais insalubres, estão mais expostos aos efeitos da violência e da criminalidade e tem oportunidades em todas as áreas, incluindo emprego, saúde, educação, segurança, saneamento, moradia e acesso aos postos da administração pública. Um homem negro no Brasil tem oito vezes mais chances de morrer vítima de homicídio do que um homem branco. Esse é um legado da escravidão, mal resolvido no passado e que ainda hoje tentamos negar. Portanto, tudo o que fomos no passado, o que somos hoje e o que seremos no futuro tem a ver com as nossas raízes africanas e a forma como nos relacionamos com elas.
Entre os vários enfoques e detalhes da história da escravidão que o senhor explora no livro, a questão dos eunucos é especialmente impressionante, até porque a imagem que temos dessa classe de escravos é aquela que nos foi dada pela indústria cultural – portanto, edulcorada. Como sopesar aquela versão dos desenhos animados com a realidade brutal de tamanho genocídio?
LG - A escravidão é um tema doloroso, repleto de sofrimento e crueldade. Por isso, precisamos estudar e refletir sobre o que aconteceu. Os eunucos eram homens privados da virilidade mediante a castração dos órgãos genitais ainda na adolescência. Há registros dessa forma radical de escravização desde a mais remota antiguidade. Eram também muito valiosos no mercado de cativos. No Egito, uma jovem negra valia cerca de 40 dinares, e um eunuco, mais de 65. O motivo era a alta taxa de mortalidade nas cirurgias de amputação dos órgãos genitais. Cerca de 90% dos adolescentes morriam em decorrência da operação. Os que sobrevivessem ocupavam funções importantes na hierarquia escravista, encarregados de fazer a guarda dos haréns, cujas mulheres em geral eram também escravas, e desempenhar funções-chave na estrutura dos impérios, como tesoureiros, ministros, conselheiros e até comandantes militares. Havia mais de cem mil deles nos palácios chineses da dinastia Ming.
Roda de conversa no Quilombo Caiana dos Crioulos (Agreste da Paraíba) |
LG - A África sempre foi um continente muito diverso, culturalmente rico, com uma história milenar que remonta às próprias origens do ser humano na Terra. Infelizmente, a visão que se tem ainda hoje do continente reflete o preconceito e a ignorância dos próprios europeus que, na época do início do tráfico negreiro, viam todos os africanos como bárbaros, selvagens e infiéis, estranhos à fé católica e distantes da supostamente avançada civilização europeia. Isso também se reflete na maneira como nós estudamos a África no Brasil. Até muito recentemente, a história africana e da escravidão negra no Atlântico era tratada como tema secundário, quase casual, nos livros didáticos e a historiografia oficial. Isso não aconteceu por acaso. É resultado de um propósito de esquecimento. Alguns dos grandes abolicionistas do século 19, como Joaquim Nabuco e André Rebouças, diziam que não bastava acabar com a escravidão. Era preciso também enfrentar o seu legado, dando terra, trabalho, educação e oportunidades aos ex-cativos e seus descendentes. Isso o Brasil jamais fez. Nossa população afrodescendente foi abandonada à própria sorte, como mostram hoje todas as estatísticas e indicadores sociais. O projeto de abandono e esquecimento incluiu também a nossa história negra e africana, relegada a um segundo plano nos livros didáticos. Felizmente, isso está mudando. Hoje, já existe até uma lei que obriga o ensino desse tema em sala de aula.
Muita gente (branca) se ofende quando se fala em reparação histórica pela escravidão, como se isso dissesse respeito a estas pessoas - o que denota certa egolatria, diga-se de passagem - mas diz respeito à sociedade como um todo. Na opinião do senhor - ou dos especialistas com quem o senhor conversou - o que seria uma reparação realmente justa para todos - mas para com os negros, principalmente?
Senzala no Engenho Uruaé (PE): argola de ferro para imobilizar escravos |
Tendo em perspectiva o momento atual da Igreja Católica sob o pontificado do Papa Francisco, como o senhor avalia a posição da Igreja ao longo de todos aqueles séculos em relação à escravidão? Não que impressione muito, dado o comportamento da instituição durante a Inquisição (ou durante a 2ª Guerra e os escândalos de pedofilia), mas enfim.
LG - Foram escassas as vozes dentro da hierarquia católica que se ergueram contra o cativeiro dos africanos. Havia exceções, mas eram relativamente raras. Como apontou o historiador americano David Brion Davis, a escravidão sempre foi um problema insolúvel para a sociedade ocidental. Havia enorme contradição nas leis civis e eclesiásticas que tratavam da condição dos cativos. O estado sancionava a privação da liberdade e considerava os escravos como propriedade de seus senhores, passíveis de compra e venda, como qualquer animal ou bem imóvel. Seus filhos nasciam e permaneciam no cativeiro. Mas, ao mesmo tempo, essas mesmas leis reconheciam que os escravos tinham alguns direitos mínimos, como à própria vida, que não poderia ser tirada pelo seu senhor sob pena de crime. Os códigos canônicos determinavam que os escravos deveriam ser batizados e acolhidos no rebanho cristão, participavam de confrarias, como a de Nossa Senhora do Rosário, e se faziam representadas em festas, procissões e outros rituais religiosos, mas até o final do século 19, com raras opiniões isoladas, a igreja nunca se pronunciou oficialmente e de forma inequívoca contra a escravidão. A igreja reconhecia que os cativos tinham uma alma imortal, que deveria ser salva mediante a administração dos sacramentos, mas bispos, padres e ordens religiosas eram donos de escravos e participavam ativamente do comércio negreiro. A igreja também reconhecia o casamento de cativos e defendia a proteção da família, mas isso nunca impediu que maridos e mulheres, pais e filhos fossem separados nas transações de venda de escravos.
Outro dia, uma reportagem da BBC mostrou que guias de fazendas históricas do sul dos Estados Unidos volta e meia são xingados por turistas (brancos) que se ofendem ao se deparar com a verdade na forma como os escravos eram explorados, torturados, estuprados e mortos. Dizem que os guias tem "viés esquerdista". Ser contra a escravidão virou coisa de esquerdista? Não deveria ser uma luta de todo ser humano?
LG - A escravidão não é assunto exclusivo de direita ou de esquerda, de brancos ou negros. É um tema com o qual todos nós, brasileiros, deveríamos nos preocupar. Todos nós que estamos vivos hoje somos descendentes de escravos ou de senhores de escravos. O legado da escravidão, que se traduz em desigualdade social no Brasil, é um desafio urgente, que exige nossas atenções e esforços como cidadãos, independente da nossa cor da pele e das nossas preferências político-partidárias. Esse clima de polarização e ódio me preocupa muito. Acho que em nada contribui para o estudo da escravidão nem para a construção do Brasil dos nossos sonhos. Mais preocupante é ver que a discórdia muitas vezes é semeada por quem deveria dar exemplos de serenidade, discernimento e sabedoria. Infelizmente, isso inclui o próprio presidente da República. Durante a campanha eleitoral de 2018, fiquei assustado com a crueza e a falta de sensibilidade que o candidato Jair Bolsonaro demonstrou ao tratar de temas como a escravidão, o papel das mulheres, os direitos dos homossexuais, dos emigrantes e das pessoas mais pobres na sociedade brasileira. Esse discurso de enfrentamento rendeu votos e muita gente se valeu dele para ser eleita em 2018, mas esperava que, passada a campanha eleitoral, a retórica, o comportamento e as decisões dos eleitos fossem diferentes. Não é o que está acontecendo. É preciso que o presidente deixe para trás o discurso de palanque e governe para todos os brasileiros, levando em conta principalmente os mais fracos, os mais necessitados, os mais desprotegidos. Precisamos urgente cicatrizar as feridas, superar as divisões e encontrar pontos de união, que nos ajudem a caminhar em direção ao futuro e enfrentar os desafios mais urgentes.
Escravidão Vol. I: do primeiro leilão de cativos em Portugal até a morte de Zumbi dos Palmares / Laurentino Gomes / Globo Livros/ 480 p. / R$ 49,90
Já dizem os Racionais:
ResponderExcluir"Periferias, vielas, cortiços
Você deve tá pensando "o que você tem a ver com isso?"
Desde o início por ouro e prata
Olha quem morre, então veja você quem mata"