Drácula, de Mike Mignola |
Nas HQs, o caso mais famoso talvez seja o de Bernie Krigstein. Já Mike Mignola, que está bem vivo, deu sorte: é reconhecido e festejado no mundo todo.
Mas Krigstein e Mignola tem um ponto em comum: ambos são mestres.
Não o fossem, edições de luxo como as de O Perfeito Estranho (de Krigstein, pela editora Mino) e Drácula (de Mignola, pela Veneta) não seriam lançadas com tamanho cuidado e capricho editorial.
Natural do Brooklyn, Nova York, Bernard Krigstein (1919 - 1990) tinha em si a marca dos grandes artistas: não se satisfazia com pouco.
“Esticava a corda”, como se diz, até conseguir o resultado que entendia ser o mais satisfatório.
Além da corda, Krigstein é mais conhecido por esticar outra coisa nos quadrinhos: o tempo. Artista plástico de formação acadêmica, o jovem Bernie queria mesmo era ser pintor.
Como nos Estados Unidos pós-crash da Bolsa isso estava fora do seu alcance, começou a trabalhar desenhando histórias em quadrinhos.
Uma das HQs de Bernie Krigstein na edição da Veneta |
Suas HQs, aos poucos, começam a ganhar certa sofisticação visual e formal, com desenhos classudos e diagramação de páginas insólitas.
Não que ele fosse o único: nomes como Winsor McCay (Little Nemo), Alex Raymond (Flash Gordon) e Will Eisner (The Spirit) já exploravam as infinitas possibilidades da narrativa sequencial antes de Krigstein.
O fato é que Krigstein, durante os anos da década de 1950 em que trabalhou na editora EC Comics, esteve na vanguarda da modernização da linguagem das histórias em quadrinhos.
O auge de sua produção é o conto Raça Superior, apontada por muitos críticos ainda hoje como a mais importante HQ já publicada.
E aí chegamos ao ponto em que Krigstein “esticou o tempo”. Cinematográfica, Raça Superior inaugurou um novo padrão de narrativa ao “descomprimir” a ação dos personagens em uma HQ.
A página de HQ mais estudada de todos os tempos |
Nela, vemos um personagem correndo passo após passo e caindo na linha do trem, o efeito do trem em movimento diante do personagem parado na estação e depois ele lentamente se virando para ir embora.
Antes de Raça Superior, esse tipo de “decupagem” cinematográfica de uma cena simplesmente não existia.
“O que é fascinante é o que acontece entre um quadrinho e outro. [...] Olhe para toda aquela ação dramática que ninguém tem a chance de ver. É entre esses quadrinhos que a coisa realmente acontece. E, a menos que o artista possa mergulhar nisso, a forma permanece infantilizada”, disse Krigstein em uma entrevista citada pelo jornalista Rogério de Campos em sua introdução.
Não a toa, Krigstein é apontado por nove entre dez quadrinistas de ponta como influência direta.
Pode por aí na conta gente do naipe de Art Spiegelman (Maus), Chris Ware (Jimmy Corrigan, O Menino Mais Esperto do Mundo) e Daniel Clowes (Ghost World).
Frank Miller (do clássico Batman: O Cavaleiro das Trevas, entre outros) diz que o copiou, mesmo, na cara dura.
Estupenda, a edição da Veneta traz dezenas de HQs da fase áurea de Krigstein, (incluindo Raça Superior) e diversos textos sobre o artista, sua obra e sua época, incluindo um de seu biógrafo, Greg Sadowski, detalhando HQ por HQ.
Jogos de luz e sombras
Drácula, de Mike Mignola |
Badaladíssimo entre os fãs (e na indústria das HQs) desde fins dos anos 1980, Mignola estourou mesmo ao criar o personagem Hellboy, lançado pela editora Dark Horse em 1994.
Sucesso estrondoso, o personagem já estrelou dois filmes longa-metragem dirigidos por Guillermo Del Toro e tem um terceiro prestes a chegar às telas em 2019.
Mas sua versão de Drácula, na verdade, surgiu antes disso, em 1992. Trata-se de uma adaptação em HQ do filme dirigido por Francis Ford Coppola, que foi um estouro de bilheteria naquele ano.
Esquecida, a HQ de Mignola ficou fora de circulação por vinte tantos anos – apesar do culto dos fãs do artista em torno da obra –, e só voltou em nova edição agora, em 2018.
Esplendorosa, a HQ, com roteiro do veteraníssimo Roy Thomas (o mais aplicado discípulo de Stan Lee), traz em si todas as qualidades que fizeram de Mignola um astro: os jogos de luz, o clima sombrio, o detalhamento de cenários, figurinos e as tomadas de ângulos insólitos.
Milhares de vezes adaptadas em todas as mídias possíveis, a obra de Bram Stoker tem nesta HQ e no filme que a originou uma de suas visões mais originais e emocionantes.
Com a arte de Mignola preservada em glorioso P&B, tem fôlego para seguir século 21 adentro como o clássico imortal que sempre foi.
O Perfeito Estranho / Bernie Krigstein / Veneta / Tradução: Dandara Palankof / 262 p. / R$ 94,90
Drácula / Bram Stoker, Roy Thomas, Mike Mignola, John Nyberg / Mino/ Tradução: Dandara Palankof/ 136 p./ R$ 84,90
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