Foi só bem próximo do momento da morte de sua mãe, Petra, que Antonio descobriu que ela tinha o braço esquerdo quase imóvel, incapaz de flexionar plenamente.
Foi assim que Antonio também se deu conta de que sabia muito pouco sobre ela.
No romance gráfico Asa Quebrada, o escritor Antonio Altarriba – auxiliado pela expressiva arte em preto & branco do desenhista Kim – acerta as contas com o passado de Petra Ordóñez, sua mãe.
Perplexo pela descoberta tardia, Antonio visita o asilo em que se encontra seu pai a fim de pergunta-lo sobre a deficiência de Petra. Mas o pai nem desconfiava.
Ainda mais perplexo, Antonio volta para casa, imerso em perguntas sem resposta: “Como pode ser que meu pai não soubesse que minha mãe não movia o braço? Como era a intimidade deles? Que carinhos faziam entre si? De que abraço eu nasci?”
A partir desse tapa na cara que a vida deu em Antonio, ele reconstrói toda a vida de sua mãe a partir justamente do próprio incidente que aleijou Petra: seu nascimento.
Ao dar Petra à luz, Sofia, sua mãe, morreu. O pai de Petra, Damián, um barbeiro com pretensões a ator dramático, fã de Shakespeare, enlouquece de dor ao receber a notícia.
A cena bizarra que se segue faz jus à predileção de Damián pela tragédia teatral – e também soluciona o mistério do braço curto de Petra. Contar mais é estragar a leitura de possíveis leitores da obra.
Conspiração monarquista
Obra de leitura viciante, Asa Quebrada tem pelo menos três níveis de leitura.
O primeiro e mais obvio é ser encarado como o mero relato biográfico da mãe de seu autor.
Mas também pode ser um testemunho pungente da força e da abnegação silenciosa das mulheres espanholas em uma sociedade profundamente católica, machista e dominada por uma ditadura militar sanguinária e de cunho fascista.
E por último também pode ser lida como um comentário acerca desta mesma ditadura, jogando alguma luz em personagens históricos com os quais Petra Ordóñez conviveu, como o General Juan Bautista Sánchez González (1893 - 1957).
Já adulta, após a morte do pai Petra foi trabalhar de governanta na mansão de Sánchez González, em Zaragoza.
As duas faces da Espanha franquista: acima, a babação de ovo fascista... |
Monarquista convicto, Sánchez González – sustenta Antonio Altarriba – conspirava com alguns companheiros de farda para destituir Franco do poder e restaurar o regime monárquico na Espanha.
Entre os cuidados com os filhos do general e o serviço de copa e cozinha, Petra captava aqui e ali o burburinho conspiratório na mansão do militar – porém, à moda silenciosa das mulheres de então, mantinha-se absolutamente discreta sobre tudo o que via e ouvia.
...Enquanto a perseguição aos inimigos do regime não dava tréguas |
A edição bem cuidada da Editora Veneta traz um posfácio de Altarriba, no qual ele detalha todas as descobertas que fez ao pesquisar sobre a vida da própria mãe, incluindo os fatos conhecidos e as teorias correntes sobre a morte do General Sánchez González.
Completam a edição fotos de família e os estudos de personagem do desenhista Kim, pseudônimo de Joaquim Aubert i Puig-Arnau.
Altarriba, que é Doutor em Literatura Francesa pela Universidade do País Basco, é autor de quatro romances premiados em seu país natal. Que venham outras obras de sua lavra.
Asa Quebrada / Antonio Altarriba e Kim / Veneta/ Tradução: Marcelo Barbão / 272 p./ R$ 64,90
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