Imagens cortesia da Editora Noir |
O compositor, escritor e poeta Catulo da Paixão Cearense, que ganhou recentemente dois lançamentos que buscam resgata-lo, é com certeza um desses casos.
Tratam-se de um livro e um disco. O livro é Música e Boemia: A Autobiografia Perdida de Catulo da Paixão Cearense (Editora Noir), enquanto o disco é A Paixão Segundo Catulo (Selo Sesc).
O livro é um resgate histórico inestimável do autor de Luar do Sertão, cortesia do incansável jornalista e pesquisador baiano Gonçalo Júnior.
Nele, podemos ler 31 textos escritos pelo próprio Catulo, a título de memórias, para a revista literária Vamos Ler!, publicados entre fevereiro e outubro de 1943.
“Foi por acaso (que me deparei com os textos do Catulo). Adquiri uma coleção com mais de 600 volumes da Vamos Ler!, revista importantíssima nas décadas de 1930 e 40, a mesma que lançou Clarice Lispector como jornalista e ficcionista em 1942”, conta Gonçalo.
“Fui olhar a coleção para ver o que havia de interessante ali. E me deparei com a autobiografia de Catulo, publicada em capítulos. Fui atrás do resto e constatei que saíram 31 capítulos, entre fevereiro e outubro de 1943. Ele parou porque sua saúde piorou. Tinha, então, 80 anos de idade”, relata.
Há pelo menos duas grandes razões para apontar Música & Boemia como um dos grandes lançamentos literários do ano no Brasil.
A primeira razão é óbvia: trata-se do relato autobiográfico de um artista importantíssimo para a própria formação da cultura brasileira.
“Catulo é o pai da nossa cultura popular. Foi ele quem ressuscitou o cordel nesse período. Foi dele a primeira música caipira gravada em disco, Caboca de Caxangá (1913)”, lembra Gonçalo.
Para Gonçalo, Catulo é tão importante para a cultura brasileira, que, sem ele, é bem possível que esta tivesse se mantido puramente urbana, sem a brejeirice sertaneja que desaguou em representações como Luiz Gonzaga e Guimarães Rosa.
“Costumo dizer que (a poética do Catulo) foi seminal, no sentido que trouxe para os versos o modo de falar do povo. Arrisco a dizer que sem Catulo, não teria existido o escritor Guimarães Rosa e seu Grande Sertão: Veredas. Sem ele, talvez o forró não tivesse existido, nem Patativa do Assaré ou Luiz Gonzaga”, afirma.
“Esse é apenas um aspecto. O outro é a riqueza melódica de seus versos e de sua música. E, por último, há o valor poético, de primeira grandeza. A sua capacidade engenhosa de construir versos com impressionante riqueza vocabular aparece em Caboca de Caxangá, considerada a primeira música caipira gravada em disco”, reitera Gonçalo.
Encharcado de Parati
A segunda razão para ler estas memórias é aspecto documental da sua época, lugar e figuras históricas.
Nascido em São Luís do Maranhão em 1863 e morto em 1946, Catulo se mudou com a família para o Rio de Janeiro – então Capital do Império – em 1880.
Em suas memórias, pode-se pescar muito do que era viver naquela metrópole entre as últimas duas décadas do século 19 e as duas primeiras do século seguinte.
“A riqueza de informações que esses relatos trazem é impressionante. É como acender um refletor na escuridão de um estádio”, afirma.
“Uma época pouco documentada na área de música, por exemplo. A maioria dos livros se limita a relatar a história do Carnaval. E as memórias musicais de Catulo jogam luzes de modo revelador sobre a época”, conta Gonçalo.
Para finalizar, uma terceira razão para ler estas memórias: Catulo era um pândego.
Suas lembranças são encharcadas de Parati (cachaça), suas noites eram de festa em festa, nas quais ele era – invariavelmente – a estrela principal, sempre acompanhado de seu violão.
Entre apresentações nos grandes salões da República Velha, ou varando madrugadas pelas vielas do Rio antigo, Catulo sempre tinha um causo hilariante, uma cantiga delicada ou uma doce poesia na manga.
“Eu organizei e editei o livro para que sua história e legado sejam redescobertos. Catulo é o coringa da cultura brasileira”, afirma.
Workaholic notório, Gonçalo tem sempre diversos projetos em andamento ao mesmo tempo. "Em julho, sai a biografia do pornógrafo Carlos Zéfiro. E espero, até o fim do ano, publicar, finalmente, a saga do Bandido da Luz Vermelha, pronta desde 2013. No momento, escrevo a de Jacob do Bandolim", conclui Gonçalo.
A Paixão Segundo...
Apesar da vasta produção musical, Catulo em vida não deixou nem um ai sequer gravado, muito menos um acorde de violão.
Sua produção sobreviveu graças às partituras que eram largamente vendidas ao público antes da popularização da indústria fonográfica e discos 78 rotações.
Desta forma, as canções de Catulo vem sendo gravadas há mais de um século por inúmeros artistas. A Paixão Segundo Catulo, CD recém-lançado pelo Selo Sesc, é a mais recente produção dedicada à obra do maranhense.
Produzido pelo flautista e saxofonista Mário Sève, reúne diversos artistas interpretando canções de Catulo em versões ortodoxas, sem muita “mudernage” e ressaltando as melodias e a poesia de homenageado e seus parceiros.
Liderados por Sève, artistas do porte de Joyce Moreno (Ontem Ao Luar), Leila Pinheiro (Flor Amorosa), Cláudio Nucci (Cabocla de Caxangá), Mariana Baltar (Luar do Sertão) Alfredo Del-Penho (Amenidade) e Carol Saboya (Você Não Me Dá).
Um tributo sincero, que afaga ouvidos e corações.
Música e Boemia: A autobiografia perdida de Catulo da Paixão Cearense / Catulo da Paixão Cearense / Noir/ 252 p./ R$ 49,90
A Paixão Segundo Catulo / Vários Artistas / Produzido por Mário Sève / Selo Sesc / R$ 20
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