Centenário, Lupicínio Rodrigues foi um dos criadores do samba-canção e imortalizou a dor de cotovelo com gênero importante da MPB em inúmeros sucessos
Pobre Lupicínio Rodrigues (1914-1974). Poucos brasileiros devem ter sofrido tanto por amor.
Mas vejam o que separa o grande artista do homem comum: o primeiro transforma a dor na arte que vai consolar o segundo.
E Lupi, que hoje completaria 100 anos vivo fosse, foi um mestre neste ofício.
O gaúcho, autor de clássicos como Esses Moços, Loucura, Nunca, Ela Disse-me Assim, Felicidade, Vingança, Volta, Se Acaso Você Chegasse – a lista é enorme – vem embalando romances, rompimentos e, principalmente, a dor de cotovelo de gerações de brasileiros.
“Lupicínio, ao lado de Herivelto Martins (1912-1992), foi um dos pioneiros, um dos fixadores do samba canção na década de 1940”, define o pesquisador Rodrigo Faour, autor do livro-referência História Sexual da MPB (2006).
“Depois do seu primeiro grande sucesso, Se Acaso Você Chegasse, ele teve muitos sambas canções dor de cotovelo de sucesso, estilo que foi preponderante nos anos 1940 e 50. Foram gravados cerca de mil samba canções nesse período”, diz.
“E com essas músicas machucadas de amor ele munia o repertório de Linda Batista, Francisco Alves, Nelson Gonçalves, Isaura Garcia, Orlando Silva – todos os grandes cantores da era do rádio gravaram muito Lupicínio”, lembra Rodrigo.
E não só eles. Praticamente todos os grandes nomes da MPB pós-bossa nova também gravaram Lupicínio: Paulinho da Viola (Nervos de Aço), Maria Bethania (Foi Assim, Loucura), Gilberto Gil (Esses Moços), Gal Costa (Volta, Loucura), Elis Regina (Cadeira Vazia), Caetano Veloso (Felicidade) e essa lista também poderia seguir bem adiante.
"É muito difícil, até hoje, para quem não mora entre Rio e SP vencer na música. E o Lupicínio conseguiu isso. Pela universalidade das letras, sem dúvida. Era um compositor, coisa que na época tinha essa figura. Ele não precisava divulgar em rádios, cantar ao vivo. Não precisava fazer esse circuito tão frenético. O que o pessoal dessa época trabalhava era uma coisa insana", ensina Rodrigo.
"E ao contrário do que se costuma pensar, não foi só a bossa nova (que botou Lupicínio e os cantores do rádio de escanteio), Teve a Jovem Guarda também. A juventude arrumou outra linguagem. Tinha música de fossa também, mas era outro tipo de fossa. Não era o homem machucado, encantado com uma puta que não podia levar para casa. Era a época dos festivais, um tempo mais politizado. Aí veio a Tropicalia misturando tudo. Foi muita novidade nos anos 60. Quase todos os cantores dos tempos do rádio foram deixados embaixo do tapete nos anos 60. Mas ele continuou com sucesso ate morrer nos anos 70 por que era um ícone, não ficou ultrapassado. Ele parou de ter uma produção contemporânea, mas continuou um ícone. As pessoas mais velhas continuavam ouvindo. Os jovens que estavam em outra", explana.
"Assim como Caetano, Bethania, Gil, Chico, Gal nos dias de hoje nao perderam os tronos ainda, entende? Não teve uma geração tão forte para abafa-los. São até mais prestigiados hoje do que Lupicínio na sua época. O que ele teve foi os modismos de ocasião", acredita.
"Mas o grande interprete do Lupicínio, a voz que ele gostaria de ter tido foi Jamelão. Todos os discos do Jamelão tem canções do Lupicínio. Era a voz perfeita para cantar aquelas musicas dilacerantes e dava densidade, força, virilidade. Jamelão tinha um alcance fantástico, era um grande tenor. Minha favorita é Ela Disse-me Assim. Você não acredita que ele vai dar aquela nota, de tão alta. Mas ele vai lá e dá", observa.
"Já Nervos de Aço nunca sai de moda apesar de tudo. A regravação do Paulinho da viola ficou no repertório clássico do samba com uma abordagem até mais moderna. O Paulinho tirou um pouco do dramalhão, suavizou um pouco. Aí ela ficou como Volta, que a Gal deu uma puta suavizada, uma sensualidade inesperada. Até a bossa nova, a música brasileira não tinha muito isso. Volta falava em corpo na cama, descreve uma cena de cama, coisa rara, pois na época não tinha essa intimidade. Não se falava de sexo na MPB", lembra.
Sofisticação melódica
Até mesmo Arrigo Barnabé, um dos pilares da vanguarda paulista, se rendeu ao gênio de Lupicínio ao elaborar o show Caixa de Ódio (2011), só com canções do compositor, depois transformado em DVD.
O projeto fez tanto sucesso que, no próximo dia 10, ele estreia em São Paulo o show Caixa de Ódio 2.
“Lupicínio foi um grande criador, tinha um poder de síntese, uma capacidade de sintetizar comportamentos afetivos em observações e comentários que tem uma lucidez muito aguda”, opina Arrigo.
“Embora possam achar ele politicamente incorreto, meio machista para os dias de hoje. Ainda assim, as canções dele também foram muito cantadas por mulheres. Ele não era tão parcial assim”, ressalva.
Apesar de mais lembrado como letrista, intimamente ligado à dor de cotovelo, Arrigo nota na obra do gaúcho certa sofisticação melódica: “Apesar da aparente simplicidade melódica de suas canções, há ali várias peculiaridades, marcas de estilo do compositor”, afirma.
“Tenho a impressão de que ele foi muito influenciado pelas coisas da época: marchinhas, hinos de igreja, óperas – e tudo isso era recurso que ele tinha para compor. É interessante isso, por que ele não tocava nenhum instrumento. Ele tinha esses recursos e, com eles, produzia algo muito interessante”, nota.
Na cidade de Lupicínio
Na sua Porto Alegre natal, de onde pouco saiu em vida, Lupicínio deixou marcas profundas na cidade e seu povo. Por exemplo, é dele o hino do seu time de coração, o Grêmio.
Hoje, dia do centenário, a capital gaúcha viverá uma série de ações em homenagem ao compositor, com corais em pontos importantes da cidade, excursão a pé e de ônibus por locais que ele frequentava, shows nos bares e sessão do musical Lupi, o Musical: Uma Vida em Estado de Paixão, em cartaz desde o mês passado.
Haverá ainda uma estátua em tamanho natural, um longa-metragem (Nervos de Aço, de Maurice Capovilla), uma biografia (do jornalista Marcello Campos), palestras, versos do compositor nas laterais dos ônibus e muito mais.
“Para quem é de Porto Alegre, Lupicínio é muito forte no imaginário musical da cidade”, confirma o músico Frank Jorge, referência do rock gaúcho com a banda Graforreia Xilarmônica e professor do curso de Produção Fonográfica da Unisinos.
“Mesmo entre a minha geração, mais impactada pelo punk rock, Lupicínio sempre teve um espaço, um reconhecimento da vida dele aqui em Porto Alegre, por conta de sua natureza notívaga, boêmia”, afirma.
“Suas canções eram muito sentidas, passionais, fortes. Por algum tempo foram até vistas como de mau gosto. Mas essa visão já foi superada e hoje o que se ressalta é sua beleza inegável”, conclui o gaúcho.
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ResponderExcluirArtigo jornalístico completíssimo, bem-estruturado, edificante e exemplar. Uma aula de história da MPB visceral, passional, autêntica. Não é surpresa que o camisa de Vênus tenha coverizado o mestre da dor.
Parabéns, Chico Castro Jr. Mais uma vez, e talvez mais do que nunca, você demonstrou ser um jornalista versátil e abrangente, muito além dos limites do rock.